Wednesday, February 2, 2022

Por uma produção amiga da felicidade

"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos explica como fazer crescer as economias. A verdade é que os autores clássicos entendiam que essa função da Economia só fazia sentido se o crescimento económico aumentasse a felicidade dos povos. Ao longo do tempo, porém, essa importante ressalva foi esquecida, principalmente durante o séc. XX, com a deriva neoclássica e a tentativa de fazer da Economia uma ciência exacta. De tal forma foi assim que se chegou ao fim do século passado com a ideia de que o crescimento económico, inexoravelmente, trazia a felicidade dos povos. Mais, com o advento do indicador estatístico PIB e sua utilização à escala global, o crescimento económico, assim medido, passou a ser a principal variável da política: os políticos dos diferentes países passaram a aferir o sucesso das suas propostas e políticas pelo impacto que tinham no PIB. Implícita estava a ideia de que, quanto mais crescermos, mais bem-estar haverá. Paradoxalmente, e similar ao que sucedeu com os clássicos, Simon Kuznets, o criador do PIB, disse que esse não era um indicador de bem-estar nacional. Mas essas palavras foram esquecidas. De tal forma tudo isto é assim que, hoje, em Portugal, nos debates televisivos entre os candidatos às legislativas de 30 de Janeiro, um dos principais temas foi a questão do crescimento económico. Que Portugal está estagnado desde o início do milénio, e que tudo se tem que fazer para inverter essa situação. Discutem-se as culpas, segmentam-se os períodos temporais (onde se cresceu e decresceu), e argumentam-se soluções. Para a direita, a solução é simples: baixar impostos e mercantilizar os bens e serviços públicos, que o mercado põe Portugal a crescer. Para o PS, o problema foi a pandemia, caso contrário, Portugal estaria a crescer bem, graças às políticas do seu Governo. Para a esquerda, há a insistência no aumento dos salários, a importância do poder de compra e dos direitos laborais. Também se falou dos problemas ambientais, com o PAN e o Livre a demonstrarem-se focados na emergência climática. No meio de tudo isso, lá foram surgindo as palavras bem-estar e felicidade. Pela boca do PAN, surgiu mesmo o termo Economia da Felicidade (embora sem explicar o que é, e fazendo uma ligação abusiva à questão do Rendimento Básico Incondicional). O Livre falou de um “novo modelo de desenvolvimento”, mas não concretizou. A verdade é que, mais uma vez, não houve um debate profundo do tema do crescimento no quadro em que deve ser tido: em que medida pode o crescimento económico produzir felicidade? Esta é uma pergunta à qual vejo ser dada, sistematicamente, uma resposta leiga: quanto mais rico for o país, mais felizes são as pessoas. Logo, toca a pôr o país a crescer. Acontece que a resposta a esta pergunta não pode mais ficar entregue ao “achismo” dos que ignoram que há milhares de estudos científicos acerca do tema. E a resposta é clara: a relação entre crescimento e felicidade é positiva, mas não linear. Isso porque o rendimento tem utilidade marginal decrescente e porque há muitas outras variáveis, além do consumo de bens e serviços, que são determinantes da nossa felicidade e que são influenciadas (positiva e negativamente) pelos processos de crescimento económico. Logo, nem sempre é bom crescer. O único debate sério que podemos ter a este respeito é aquele que analisa que tipo de crescimento económico queremos ter, muito mais do que quanto crescimento queremos ter. Portugal viveu um dos seus mais gloriosos períodos de crescimento económico durante o Estado Novo. Porque não voltar à ditadura para crescer assim? (note-se que há muitos comentadores económicos que se queixam de como as eleições de quatro em quatro anos invalidam as transformações que eles acham fundamentais para pôr Portugal a crescer). China, Arábia Saudita ou Emirados Árabes Unidos são exemplos de nações que conseguem fortes crescimentos económicos profundamente desrespeitadores dos direitos humanos. Queremos o mesmo cá? O crescimento económico tem sempre que estar subordinado à felicidade, não o contrário. E a forma como nós o obtemos define o que é o instrumento e o que é o fim último. A neo-escravatura pode ser óptima para a produção, para o lucro e para o crescimento económico, mas é destruidora de felicidade e uma violação dos direitos humanos. A verdade é que passamos grande parte das nossas horas de vida a trabalhar, a produzir. E a forma como o fazemos é fundamental para a nossa felicidade. Aumentar a produção através da sobrecarga laboral, competitividade excessiva e precariedade, que é, hoje, tão comum, é uma forma de aumentar produto e consumo, mas de destruir felicidade (a pandemia do burnout já existia antes da Covid). Pensar seriamente sobre este tema obriga a uma quadratura do círculo: precisamos de atrair o investimento, mas precisamos de mais salários, menos horas de trabalho, mais produtividade e melhor distribuição da riqueza e do rendimento. Para isso, precisamos de técnicas de gestão de ponta nas organizações que promovam a autonomia, a participação, a criatividade e o florescimento humano. E de quadros legais que premeiem quem assim se comporta, e punam quem insiste nos produtivismos do séc. XIX e XX. Podemos começa, tudo isto, já. Não temos que ficar à espera dos “amanhãs que cantam” do crescimento económico. Tal qual Amartya Sen nos explica que a democracia tem que ser a base, e vir antes do crescimento económico, o respeito pela felicidade (na vida e no trabalho), tem que ser o ponto de partida. Depois, então, virá o crescimento económico que interessa."

Gabriel Leite Mota, PhD Economia da Felicidade, Prof. Auxiliar de Economia no ISSSP

Monday, July 12, 2021

TOMATE CHERRY SIM, NEO-ESCRAVATURA NÃO

Um dos argumentos utilizados na defesa da globalização económica é a ideia de que as empresas, ao procurarem maximizar a sua rentabilidade, acabam por beneficiar as pessoas que mais precisam de trabalho, livrando-as da pobreza.

Em concreto, as empresas dos países ricos, ao se deslocalizarem para os países mais pobres, acabariam por empregar as pessoas mais pobres, fazendo com que essas pessoas, e esses países, ficassem melhor economicamente.

Da mesma forma, quando se dão movimentos de migração de pessoas pobres em direcção aos países mais ricos, as empresas que operam em sectores de menores salários dariam emprego a essa mão-de-obra imigrante, que estaria disposta a trabalhar em condições, e por preços, que os trabalhadores nacionais não aceitam.
Para além disso, as pessoas dos países ricos beneficiariam destas dinâmicas, pois passariam a poder comprar bens e serviços a preços que, de outra forma, não conseguiriam.

Como sucede na maior parte dos argumentos demagógicos, há uma parte de verdade na explanação acima. De facto, quer a deslocalização das empresas dos países ricos para os países pobres, quer a migração de pessoas dos países pobres para os países ricos, têm permitido tirar algumas pessoas da pobreza absoluta, mas a um custo elevado. Esse custo materializa-se no desemprego provocado nos países mais desenvolvidos, na poluição que “emigra” para esses países pobres (mas que contamina o globo) e no retrocesso civilizacional que estas empresas acabam por pôr em prática, nomeadamente ao nível dos direitos laborais, na medida em que praticam salários de miséria, cargas horárias excessivas, precariedade, ausência de seguros de trabalho e baixíssimas condições de salubridade.

O argumento só seria verdadeiro se as empresas dos países desenvolvidos, ao deslocalizarem-se, empregassem as pessoas dos países mais pobres com salários decentes, com horários laborais de padrão ocidental (8 horas diárias, 40 horas por semana), férias pagas, seguros de doença e permitissem a existência de sindicatos. Para além disso, essas empresas teriam que respeitar, nos países pobres, as normativas ambientais que respeitam no ocidente. O mesmo se diga do aproveitamento da mão-de-obra imigrante nos países ricos, tantas vezes ilegal, que, na prática, cria um mercado de trabalho paralelo, sem direitos, uma autêntica exploração do desespero.

Em Portugal, a pandemia acabou por destapar vários exemplos de más práticas deste tipo, perpetradas por empresários do sector agrícola, que exploram populações imigrantes, e que ainda tiveram o desplante de se agarrarem a este tipo de demagogia: ouvir um representante dos proprietários das explorações agrícolas da Costa Vicentina (produtoras de frutos vermelhos e tomate Cherry) dizer que se não fossem eles a empregar estas populações imigrantes (a ganharem tão pouco e a viverem nas condições tão más em que vivem, leia-se), não seria possível o consumidor português ter acesso a tomate Cherry, é uma afronta.

Essas explorações agrícolas não têm que ser centros de exploração do desespero dos trabalhadores. Têm é que respeitar as leis nacionais, a dignidade do trabalho e, das duas, uma: ou baixam a sua taxa de lucro para pagarem decentemente aos trabalhadores e respeitarem os direitos laborais, ou sobem o preço do tomate Cherry, e logo vêem o que acontece à sua procura no mercado. Agora, argumentar que só é possível termos tomate Cherry à venda nos supermercados se se praticar esta neo-escravatura sobre as populações migrantes é um argumento miserável. E nem sequer é novo: era exactamente isso que os esclavagistas norte-americanos argumentavam antes da guerra civil, dizendo que as plantações de algodão não eram rentáveis senão com trabalho escravo. A história mostrou que, obviamente, esse argumento era mentiroso, e apenas protector desses péssimos “empresários”.

Se há alguém que está mal, e que tem que sair no meio desta história toda, são os empresários que não sabem ganhar dinheiro senão com neo-escravatura.


Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Público a 12 de Julho de 2021



Tuesday, July 6, 2021

PARA PORTUGAL, A HOMOSSEXUALIDADE É MORAL



Foi notícia, outra vez, o caso de dois estudantes cujos pais os impedem de frequentar as aulas de cidadania, com o argumento de que questões de sexualidade e de moral não são da competência da escola, apenas da família.

Acontece que, num Estado democrático, com sistema de ensino obrigatório, os conteúdos leccionados não se restringem à ciência: passam pela história, pela cultura, pela filosofia, pelo direito, ou seja, passam pelos valores morais.

Se pegarmos no caso da homossexualidade, podemos, inclusivamente, constatar que, quer a ciência, quer a história, quer o direito, têm muito a dizer sobre ela. A ciência, porque já a considerou uma doença, e hoje não considera, antes a estuda e tenta compreender os seus determinantes genéticos, epigenéticos e sociais; historicamente, é um tema de grande relevância, face às oscilações de frequência e aceitação que a homossexualidade foi tendo ao longo da história – lembremo-nos dos gregos e romanos, que a aceitavam tranquilamente; do ponto de vista do direito, é também um tema fundamental, pois que o enquadramento da homossexualidade no quadro jurídico tem vindo a variar, desde os tempos em que era criminalizada e penalizada, até à actualidade, em que os homossexuais se podem casar, podem adotar crianças ou, recorrendo a inseminação artificial ou barrigas de aluguer, terem filhos próprios (ex: pode gerar-se uma criança no ventre de uma mulher, com óvulos da companheira, numa relação lésbica); na filosofia, importa discutir o papel da sexualidade na vida, mostrando as várias visões possíveis, desde aquelas que concebem a sexualidade apenas como um meio para a reprodução, até outras que a concebem, essencialmente, como um meio para o prazer.

É, assim, completamente errada a posição daqueles que acham que à escola não cabe a discussão de certos temas porque têm cargas valorativas e morais.

Aliás, o texto fundamental da nossa democracia, a Constituição da República Portuguesa, é um sumário desses mesmos valores. E a consideração dos direitos humanos nesse documento significa que, para Portugal, a homossexualidade é moral (o amor recíproco entre seres humanos é sempre moral), e isso tem que ser ensinado.

Certo é que há pessoas que pensam diferente, porque assim vem escrito em livros com mais de 2000 anos. Mas essa não é a posição de Portugal. As famílias têm todo o direito de ensinar a moral que quiserem às suas crianças, não podem é impedir que o país, através do seu sistema de ensino obrigatório, transmita aos estudantes a moral da nação, e as diferentes visões científicas e filosóficas sobre os problemas.

Quem se incomodar muito com isso, sempre pode emigrar para nações que tenham uma visão moral mais perto da sua, nomeadamente países como a Arábia Saudita ou o Irão.

Na Europa, o padrão é o respeito pelos direitos humanos, pelo que se tende a impedir essas visões fanáticas, apesar dos maus exemplos como a Hungria ou a Polónia.

Esta problemática está, também, a ser discutida em Itália, com o parlamento a querer aprovar uma lei que penaliza o discurso de ódio e discriminatório, nomeadamente a homofobia, tendo o Vaticano ficado preocupado por temer que a sua doutrina possa ser considerada homofóbica e impedida de ser ensinada. Se é certo que não se pode impedir que as famílias ensinem o que quiserem às suas crianças, já fica difícil aceitar que as instituições de ensino acreditadas pelo Estado possam propagar valores contrários à moral nacional. Caso contrário, teríamos que aceitar escolas que ensinassem o assassinato como moral (e tantas vezes a homofobia leva a assassinatos).

Portanto, sim, se uma nação decidir que a homofobia é um crime, todas as escolas deverão ficar impedidos de transmitir uma visão que olha para homossexualidade como uma imoralidade.

Não há, no mundo, nenhum Estado neutro em valores, nem nenhuma escola neutra em valores.

Portugal é uma República democrática laica, por muito que custe a pessoas que sejam monárquicas, religiosas ou antidemocráticas. Os valores fundamentais são transmitidos nas escolas e a normalidade moral da homossexualidade é um deles. Quem quiser pregar o contrário, pode fazê-lo, mas fora do ambiente escolar.
Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Público a 6 de Julho de 2021

Monday, June 14, 2021

AS PESSOAS QUE ODEIAM ABRIL


Tem sido tema de debate as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril, que agora conheceram o seu comissário. À direita, houve grande alarido pela escolha de Pedro Adão e Silva. Parece-me muito pouco interessante discutir os detalhes das comemorações, assim como a escolha que foi feita. Muito mais profundo é o debate acerca da reacção.

Na verdade, desde que a Iniciativa Liberal e o Chega ganharam representação parlamentar, as celebrações anuais do 25 de Abril têm sido objecto de ataque, seja à festa em si, seja à relevância da Revolução como evento benéfico para Portugal.

A Iniciativa Liberal expressa, essencialmente, o seu fascínio pelo 25 de Novembro, não aceitando dissociar a democracia que temos dessa data posterior. Já o Chega vai mais longe e diz que a República que emergiu do 25 de Abril (e do 25 de Novembro) é uma República podre e corrupta, e que temos que avançar para uma nova era.

No PSD e no CDS, que são partidos da fundação da democracia, as críticas tendem a não ser tão explícitas, embora existam há muito (só vocalizadas na autonomia madeirense, por Alberto João Jardim). Na prática, à medida que o tempo passa, fica cada vez mais fácil, para aqueles que nunca gostaram do 25 de Abril, criticá-lo.

É fundamental entender que o 25 de Abril não foi uma transição pacífica de um modelo político para outro. O 25 de Abril foi uma revolução, foi um golpe de Estado, um golpe militar praticado por jovens capitães (não por Marechais instalados) que, só depois, obteve alargadíssimo apoio popular. Isso significa que o 25 de Abril foi a vitória de muitos, mas a derrota de outros.

Acontece que esses que perderam ainda existem, têm descendentes e nem sequer são poucos. Se somarmos todos os que estavam bem instalados no regime ditatorial (seja em funções públicas – de PIDE a parlamentares, passando por magistrados – seja nas grandes empresas amigas do regime), os que tinham vastas propriedades em território nacional, ou nos territórios ultramarinos, e todas as pessoas que perderam as suas posses, e até o seu país, com a descolonização, vamos apanhar muitíssimos perdedores de Abril.

Há muitos portugueses que ficaram pior depois desse dia. É entre essas pessoas que mais encontramos aqueles que nunca gostaram da data, nunca a celebraram, mas foram mantendo o seu ressentimento mais escondido. À medida que o tempo passa, e o “ar do regime” vai mudando, esses ressabiamentos ficam mais livres para emergir.

De facto, é nestes últimos tempos que temos visto muita gente ligada aos perdedores de Abril a aproveitarem tudo para minimizar os ganhos da Revolução, argumentando que a Revolução conduziu a um regime democrático, mas corrupto e pobre, ou tentando suavizar o fascismo com narrativas de que, afinal, o fascismo nem era assim tão mau, que até alfabetizou as crianças e fez o PIB convergir com a Europa.

O 25 de Abril fez-se para acabar com a guerra colonial (a morte de muitos jovens e o sofrimento vão de muitas famílias) e implantar uma democracia liberal, e teve o apoio popular imediato porque o regime estava podre, pobre e era imbecil.

Aliás, comparando a evolução do desenvolvimento humano de Portugal, durante a ditadura e em democracia, torna-se cristalino o quanto a ditadura foi má para a esmagadora maioria dos portugueses, e a democracia benéfica para a maioria, nomeadamente para os mais pobres e para uma classe média que, entretanto, se formou.

Mas há aqueles que tinham beneficiado mais se o regime tivesse continuado ditatorial e tivesse havido uma transição gradual para um regime de democracia musculada (que muito agradaria aos que odeiam Abril).

Se é verdade que muitos donos de grandes empresas do Estado Novo recuperaram o seu poder a partir dos anos 80/90 (a tempo de perpetuarem a nossa fragilidade económica – veja-se o caso de Ricardo Salgado e da família Espírito Santo), outros há que não conseguiram tal recuperação, pelo que estariam melhor se nunca tivesse existido o 25 de Abril.

Quando se pretende celebrar os 50 anos do 25 de Abril, obviamente, está-se a celebrar o regime que existe, o Portugal que existe, a democracia que existe e, sim, os que venceram com Abril (que são a grande maioria dos portugueses). Não é, portanto, de espantar que os que perderam não sejam grandes fãs da festa.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 14 de Junho de 2021

Wednesday, June 2, 2021

O CRESCIMENTO ECONÓMICO E O SECURITARISMO NÃO SÃO INSPIRADORES

Em Portugal, os partidos políticos situados à direita do PS têm tido dificuldade em se recomporem da derrota eleitoral sofrida em 2015 (sim, os vencedores são aqueles que conseguem formar governo com apoio parlamentar maioritário). Mais, tendo o PS sido capaz de estabilizar as contas públicas, sem impor uma prática e uma retórica de austeridade e punição, a direita portuguesa congelou.

Os fantasmas invocados acerca da geringonça (que vinha aí o comunismo e a “venezuelização” de Portugal) permaneceram no mundo dos espectros. Na prática, entre 2015 e 2019, houve crescimento económico, criação de empregos, diminuição da emigração, explosão turística e até alguma convergência com a Europa. A ideia de que a esquerda não sabe fazer contas, caiu por terra.

Mas a direita ainda tinha uma esperança: o diabo. Estaria para vir o diabo, um qualquer desastre económico que provocaria uma nova bancarrota e uma nova intervenção externa. E não é que veio mesmo?

No fim de 2019, uma pandemia, como não se via há cem anos, atingiu o mundo e obrigou ao fechamento das economias, causando recessões globais sem precedentes históricos. Mas, onde está a implosão do governo? Em vez de troikas e austeridade, o mundo ocidental pôs-se de acordo que é preciso salvar as economias, injectando tanto dinheiro quando for necessário para a reanimação das ditas, quase sem condições.

Todos estes factos têm desorientado profundamente as direitas.

Na prática, isso tem originado uma fragmentação partidária (com o surgimento em força do Chega e da IL) que, como mostram as sondagens e os actos eleitorais, não somam votos para a direita, apenas os repartem doutra forma, penalizando o PSD e o CDS.

Do ponto de vista ideológico, a estratégia tem passado pelo extremar de posições, com o Chega a cavalgar a bandeira do securitarismo e do conservadorismo, a IL a do neoliberalismo. Acontece que nenhuma dessas bandeiras é particularmente inspiradora, entusiasmante ou mobilizadora, ainda para mais quando são agitadas sempre contra qualquer coisa, muito mais do que a favor.

O farol securitário tem muito pouco apelo em Portugal, que é só um dos países mais seguros e pacíficos do mundo, por mais que os média sensacionalistas chafurdem na lama da realidade. Não temos máfias como outros, não temos problemas de integridade do território, nem sequer estamos “invadidos” por imigrantes. É normal que esta não seja a questão que mais preocupa os portugueses.

Quanto ao conservadorismo, apesar de católico, Portugal não é um país fanático e, desde 1974, temos sido pioneiros na aprovação de leis progressistas nos costumes, com grande apoio popular.

Quando ao endeusamento do mercado, também não é religião a que os portugueses sejam muito sensíveis: apesar de se queixarem dos serviços do Estado, e de se queixarem dos impostos pagos, muitos portugueses recebem dinheiro do Estado (seja através de salários, de pensões, de subsídios ou de recebimentos por vendas ao Estado) e sabem que é o Estado a sua derradeira segurança. Ao mesmo tempo, a desconfiança que têm para com o Estado também têm para com as empresas privadas. Sentem-se, muitas vezes, enganados e maltratados por estas, seja enquanto clientes, seja enquanto trabalhadores.

Os portugueses estão, também, cientes das profundas desigualdades do país e têm noção que o crescimento económico não é uma panaceia para esse problema.

Um discurso, para ser mobilizador, necessita de ser positivo, prometer um futuro melhor, não para o país, mas para as pessoas. Um futuro onde os que ganhem pouco passem a ganhar mais, onde se trabalhe menos e haja mais tempo para o lazer e para a família, onde exista verdadeira mobilidade social, mais empregos, menos poluição, mais sustentabilidade ambiental, menos solidão, menos desemprego, mais igualdade entre géneros, etnias, grupos etários e regiões, melhor mobilidade urbana, melhores serviços públicos e privados e menos corrupção. Um discurso mobilizador é também aquele que já está a pensar nos eleitores do futuro, não só naqueles que, daqui a 15 anos, já não existem. Acontece que a direita tem-se alheado desta perspectiva.

O Chega quer cavalgar as frustrações e o ódio, e glorifica o nosso passado obscuro, ao retardador de um Trump que já foi corrido, de um Bolsonaro que está para ser e de uma Le Pen que nunca chega ao poder. Tem um discurso pela negativa, contra certas pessoas que considera “as de mal” e vê vergonhas em todo o lado.

A IL demoniza os impostos – num país onde muita gente já não paga impostos (50% da população não paga IRS e muitas empresas não pagam IRC por falta de lucros…) – insurge-se contra o Estado (vendo socialismo em toda a parte) e mistifica a iniciativa privada – num país onde foi através do emprego público que se criou o grande elevador social no pós 25 de Abril e onde ainda é no Estado que se encontram muitas das melhores condições de trabalho em certas profissões qualificadas. Tem um discurso pela negativa, contra o Estado. Sendo que o Estado são pessoas, é um discurso contra muita gente.

O PSD e o CDS andam perdidos. A direita, assim, não mobiliza gente suficiente.

A felicidade, com já referi muitas vezes (e a ciência o comprova), não está no crescimento do PIB, está na satisfação holística das diferentes dimensões da vida e na redução das distâncias sociais e económicas entre todos.

Só quem entender isso, e mostrar que tem políticas de qualidade, capazes de melhorar a vida de todos e cada um (sendo que uma vida melhor não se mede pelo nível de consumo), terá a capacidade de mobilizar eleitorado, principalmente se quiser tirar o poder ao PS. Caso contrário, as pessoas preferem ficar como estão.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 2 de Junho de 2021


Wednesday, May 19, 2021

DA IMPOTÊNCIA DO PIB

 
Há inúmera literatura científica demonstrativa de que, a partir de certos patamares de riqueza, o crescimento continuado do PIB per capita perde a sua potência de gerar bem-estar. Em concreto, a partir dos 30.000 dólares anuais de PIB per capita, o crescimento económico deixa de estar inequivocamente correlacionado com maiores níveis de bem-estar, de felicidade.

Este é um resultado robusto, que pode ser ilustrado pelo gráfico abaixo.  Aí, podemos ver como a nuvem de pontos, representativa dos países nos seus níveis de felicidade e de PIBpc, deixa de apresentar uma tendência linear e positiva (como sucede até aos 30.000 dólares), para passar a ser de tendência indefinida. Esta evidência empírica encerra uma lição política importantíssima: a partir dos 30.000 USD de PIBpc, importa muito mais o tipo de crescimento económico, ou o que se faz além desse crescimento, do que o crescimento em si.

Embora as razões explicativas para este fenómeno sejam diversas e já bem discutidas na literatura, a base do argumento é de compreensão simples: quando já reunimos as condições materiais suficientes para suprirmos as nossas necessidades mais importantes, a riqueza adicional é gasta no supérfluo, que tem retornos muito menores na nossa felicidade.

Mais, se para continuarmos a crescer economicamente prejudicarmos dimensões fundamentais do nosso bem-estar como o sono, a saúde mental, se aumentarmos o stress, a competitividade e o consumismo, diminuirmos os bens relacionais e a confiança, estaremos a diminuir a nossa felicidade, apesar de dispomos de mais bens e serviços.

Apesar de haver toda esta evidência científica, e de se realizarem fóruns onde se debatem estes problemas, tarda em os países assumirem as verdadeiras consequências deste facto. Ainda recentemente, a propósito da Cimeira Social da UE, que decorreu no Porto, um dos responsáveis europeus dizia que, por palavras mais elegantes, “isto do social é muito bonito, mas o que verdadeiramente interessa é o PIB”.

Confesso que, como estudioso do tema desde 2004, já me cansa este discurso estafado do PIB, este dogma anti-realista. Para um bloco económico rico como a Europa, já não é o crescimento do PIBpc o que verdadeiramente interessa, mas sim a coesão social, a sustentabilidade ambiental, a democracia e a diminuição das desigualdades.

Em Portugal, também abundam os religiosos do PIB, principalmente entre os economistas e os políticos, que se exibem ignorantes perante a realidade (um traço infeliz de muitos economistas).

É verdade que Portugal, sendo dos mais pobres da Europa, beneficiará com o crescimento económico. Porém, já tem um nível de riqueza que faz com que a questão mais importante seja a da qualidade e não a da quantidade. Vamos crescer aumentando salários e combatendo a precariedade (algo que, p. ex., o turismo não tem sido capaz de fazer)?  Vamos crescer libertando tempo-livre e promovendo a saúde mental (ou vamos aumentar as cargas laborais e potenciar o burnout)?

Vamos crescer respeitando a sustentabilidade ambiental (ou vamos esgotar os recursos e destruir a paisagem)? Vamos crescer diminuindo as desigualdades e a pobreza (ou aceitamos alegremente o aumento imoral nas diferenças salarias)?

No fundo, e voltando aos dados espelhados no gráfico acima, de nada nos valerá crescer muito para ficarmos como Hong-Kong (que é mais infeliz do que nós) e de pouco nos servirá crescer para o nível do Qatar (que é muito mais rico e pouco mais feliz), mas já compensará crescer (ainda que muito menos) para sermos como a Nova Zelândia ou a Finlândia. Mais, através dos dados, constatamos que podíamos até ficar mais pobres e sermos mais felizes, como sucede na Costa Rica ou no Uruguai, ou, quase mantendo a riqueza, aumentar a felicidade para os níveis da Eslováquia.

Enfim, a Europa (e Portugal) tem que ter coragem de encarar a realidade e perceber que não estamos perante um problema de quantidade, mas de qualidade. Só percebendo isto e desenhando as políticas adequadas, conseguiremos uma Europa e um Portugal mais felizes.

Contra a impotência do PIB, temos a potência dos bens relacionais, do capital social e da inovação comunitária. É esse o caminho da felicidade.



Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 19 de Maio de 2021


Wednesday, May 5, 2021

EXTREMISMOS

Um dos temas que mais tem estado em discussão nos últimos tempos tem sido o suposto incremento do extremismo na política, com o ganho de preponderância dos partidos ou líderes que defendem propostas mais distantes dos tradicionais centros políticos. Em particular, tem-se verificado o crescimento, nas democracias, dos partidos de extrema-direita e da direita populista (que também é extremada). Ao mesmo tempo, há quem identifique movimentos simétricos à esquerda, como a extrema-esquerda e a esquerda populista (ex: Podemos em Espanha).

Em Portugal, este fenómeno materializou-se através do surgimento do Chega, mas também através de alguns políticos ou candidatos do PSD (vide Suzana Garcia) e do CDS (a Tendência Esperança em Movimento). Por outro lado, há a acusação de que o PS sucumbiu ao extremismo, ao ter aceitado o PCP e o Bloco de Esquerda como partidos de suporte ao seu governo, aquando da geringonça.

À escala internacional temos Bolsonaro, Marine Le Pen, Erdogan ou Orbán (e tivemos Trump) como exemplos paradigmáticos da força desse extremismo. No Parlamento Europeu, até já há um grupo político que congrega estes extremistas, o grupo “Identidade e Democracia”.

Para muitos analistas, este é um problema, uma malignidade democrática que urge eliminar. Mas vejamos com mais atenção: a classificação de alguém, ou de algum partido, como extremista não pode ser vista, de imediato, como um atestado de aberração ou indigência moral. Na verdade, extremismo é sempre uma medida da distância face ao centro, não um qualificativo de mal. Aliás, se o centro for a barbárie, num extremismo oposto estará a virtude. Se no centro for a violência, no extremo oposto está o pacifismo.

Ao longo da história, são inúmeros os exemplos de extremistas que, hoje, seriam classificados de heróis morais. Desde Galileu a Gandhi, passando pelo Padre António Vieira, Francisco de Assis, Hypátia ou Olympe de Gouges, são inúmeros os exemplos daqueles que tinham ideias extremadas à época e que, hoje, são consideradas as ideias certas.

Não penso, portanto, que a discussão política deva ser feita no maniqueísmo “extremos mal”, “centros bem”. O que tem que ser feito é, cada um, estabelecer os seus padrões morais e encontrar os representantes políticos que mais se enquadrem nesses padrões.

Inevitavelmente, teremos pessoas com diferentes padrões morais. Em democracia, impor-se-á o padrão moral maioritário, o que não quer dizer que seja um bom padrão moral. Por isso, pouco importa o classificativo extremista.

Ao avaliarmos um partido como o Chega é irrelevante o classificativo “extremista”. O que temos que fazer é avaliar as suas propostas concretas e a ideologia subjacente. Se o Chega tivesse uma maioria absoluta, deixaria de ser um partido extremista e passaria a ser um partido do centro, um novo centro é certo, mas centro, porque teria havido uma inflexão moral no povo português.

Quem é contra as propostas anti-humanistas do Chega, pouco importa se o Chega é extremista ou representa o centro, será sempre contra essas propostas. É o conteúdo das políticas que tem que ser discutido, sendo irrelevante o adjectivo extremista (seja de esquerda ou de direita). Curiosamente, até já há aqueles que se querem apelidar de radicais do centro…

Entendamo-nos: em democracia, há lugar para todas as opiniões, estejam elas mais próximas ou mais afastadas do centro circunstancial. E o combate ideológico tem que ser feito no campo das ideias, não no campo dos adjectivos ou dos epítetos.

Alguém que, por exemplo, entenda que o capitalismo actual está a ser nocivo à sociedade e ao planeta, e defenda um outro sistema económico, será classificado de extremista. Acontece que até pode estar cheio de razão. Ou seja, classificar alguém de extremista nada diz sobre a pessoa classificada, mas diz muito sobre quem qualifica: quer rotular e não quer debater os méritos das ideias.

Eu não me importo nada que me chamem extremista na minha defesa do humanismo (que impede a pena de morte, ou qualquer tipo de castração física penal) ou na minha intransigência para com todas as formas de ditadura e de subjugação (pondo a democracia sempre à frente das ditaduras) ou ainda na defesa de um Estado Social “à países nórdicos” que muitos, hoje, consideram um extremismo socialista…

Uma democracia só é forte quando sabemos debater ideias sem insultar ou tentar diminuir os outros. Façamos esse processo de maturação.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 5 de Maio de 2021


Por uma produção amiga da felicidade

"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos...