A economia mainstream explica que quando os mercados não são perfeitamente concorrenciais os consumidores perdem bem-estar, a economia perde eficiência e as empresas obtêm lucros extraordinários, também chamados de rendas económicas.
Segundo as teses da economia mainstream, o óptimo social só se dá quando os mercados são perfeitamente competitivos, existe informação perfeita, os produtos são homogéneos, os bens são privados e não existem externalidades. Enfim, o óptimo social só se atingiria num mundo impossível. Ainda assim, esse mundo ficcional é utilizado como benchmark para comparação com a realidade: quanto mais nos afastarmos dessas condições ideais, pior fica a situação para os consumidores e para a sociedade.
Seja qual for o sector da economia real em que pensarmos, vamos descobrir que estamos sempre longe dessas situações ideais. Isso significa que os mercados, que a economia de mercado, é sempre, em parte, ineficiente e não produz o bem-estar desejável para os consumidores.
Mas se esse afastamento pode ser pequeno, quando lidamos com mercados bastante concorrenciais, como, por exemplo, o mercado dos restaurantes ou das padarias e confeitarias, em que há muita concorrência, em que os consumidores sabem bem o que estão a consumir (e se gostam ou não), em que não existem barreiras à entrada ou à saída das empresas no mercado, em que os bens não têm especiais efeitos externos e são de natureza privada (são para o consumo de quem os adquire), há outros sectores onde estamos muito distantes dessa realidade, desse ponto ideal.
O caso dos cuidados de saúde é paradigmático. A saúde tem dimensões de bem público, apresenta muitas externalidades, a informação é assimétrica, existem fortes barreiras à entrada e economias de escala que potenciam a concentração do mercado. Isto significa, na prática, que entregar ao mercado a produção e distribuição dos serviços de saúde vai gerar altíssimas ineficiências económicas, atirando os utentes de saúde para uma situação de baixo bem-estar, com serviços de pouca qualidade relativa face ao preço. Por outro lado, os produtores de saúde gozarão de altas rendas económicas, lucros extraordinários, que só são obtidos pela perda nos excedentes dos consumidores.
Os EUA são a prova empírica deste resultado teórico. Nos EUA há um gasto em saúde exorbitante: gastavam 16,89% do seu PIB em saúde (em 2018), obtendo resultados medíocres. Por exemplo, a esperança média de vida nos EUA (78,9 anos em 2019) é mais baixa do que em Portugal (82 anos em 2019), e muito mais baixa do que nos países com melhores índices de saúde (como o Japão, com 84,6 anos em 2019), países esses que gastam significativamente menos que o EUA (Portugal 9,41% do PIB, Japão 10,95%, ambos em 2018).
Ou seja, os EUA são o país mais ineficiente do mundo na produção de saúde para a população. Isso, porque entregou aos privados e aos mercados a produção e distribuição dos serviços de saúde. Inclusivamente, juntou a questão dos seguros que, mais uma vez, é um mercado que se depara com muitas ineficiências, desta vez a propósito das altas assimetrias de informação, que fazem com que nem toda a gente consiga ter um seguro, e as pessoas que conseguem têm que pagar muito para ter as coberturas que o seguro dá. Ao mesmo tempo, a falta de centralização de informação, de cooperação e coordenação entre hospitais faz com que, no global, os serviços prestados sejam altamente ineficientes. Há vasta literatura científica na economia da saúde que demonstra como o mercado funciona mal neste sector.
Em Portugal também se percebe esta ineficiência quando constatamos que, praticamente, não há concorrência entre os prestadores privados de saúde (temos dois ou três grupos que detêm quase todos hospitais privados, o mesmo no que diz respeito aos laboratórios de análises e exames). Assim, a abrangência e a relação qualidade/preço dos serviços fica posta em causa.
Sejamos claros: um mercado bem funcionante, em concorrência perfeita, funciona melhor que qualquer alternativa na produção de bens e serviços. Mas a análise concreta não pode ser feita usando esse mercado ficcional, antes, temos que ter em conta a realidade sectorial e, em particular, as características dos bens e serviços que queremos produzir.
O caso da saúde está cheio de características que tornam a provisão através dos mercados altamente ineficiente. As decisões que um toma para a sua saúde têm impacto sobre terceiros (veja-se o caso da pandemia e a decisão de tomar ou não tomar uma vacina, ou de se proteger ou não se proteger). Isso chama-se de externalidade, algo que o mercado ignora. Também por isso, há uma dimensão de bem público, uma dimensão que diz respeito a todos e não só ao indivíduo que toma a decisão no mercado. Assim, o mercado erra.
Depois, há uma elevadíssima assimetria de informação, porque nós não sabemos o que é melhor para nós em termos de saúde, são os médicos que sabem. Também nos seguros, como as empresas de seguros não sabem o nosso verdadeiro estado de saúde, protegem-se dessa assimetria criando um sem-número de exclusões e limitações, que tornam o próprio seguro ineficaz na protecção sustentada da saúde das pessoas.
Não se trata aqui de nenhuma questão ideológica. Trata-se de uma constatação de facto: os serviços de saúde só funcionam bem se tiverem mecanismos de coordenação central, de forma a que seja possível cobrir toda a população, durante todo o seu tempo de vida e independentemente de estarem a trabalhar, no desemprego, na reforma ou a estudar. Independentemente de serem saudáveis ou de serem doentes crónicos.
Os serviços de saúde só funcionam bem se as pessoas não tiverem medo do custo do serviço para acorrerem ao dito. A saúde não é como um iogurte que compramos no supermercado. É um elemento central da nossa vida, da nossa dignidade humana.
Obviamente que a produção centralizada, seja directamente através no Estado, seja através de serviços privados contratualizados com o Estado, vai ter sempre dificuldades e falhas. Mas não se pode argumentar que a privatização da saúde é que é boa, é que faria com que tivéssemos um muito melhor sistema de saúde.
Se queremos melhorar algumas das lacunas do nosso Serviço Nacional de Saúde devemos, sim, apostar numa gestão de maior qualidade. Essa gestão deve ter em conta indicadores de produtividade, evolução das listas de espera, qualidade dos serviços prestados, satisfação dos utentes, e deve contratar e premiar os recursos humanos em função das suas capacidades efectivas, não de jogos políticos internos ou corporativos.
Na prática, nenhum sistema é perfeito. Mas, no caso da saúde, a privatização é um erro perigoso.
Portugal tem um bom Serviço Nacional de Saúde que importa preservar e melhorar. A participação dos privados pode ser bem-vinda, desde que cumpram as regras exigidas pelo sistema, exigidas pelo organismo central, e não se apropriem dos lucros extraordinários que o mercado permite.
Quanto às falhas que o Estado vai tendo na produção dos serviços de saúde, têm que ser combatidas através de melhor gestão e incentivos mais apropriados. O segredo está na boa gestão, não na privatização dos serviços que existem.
Nota final para as farmacêuticas: as dificuldades que o mundo está a ter em conseguir vacinar atempadamente toda a população mundial contra a Covid-19 (nomeadamente nos países pobres) é também uma decorrência da ineficiência na produção e distribuição privada de medicamentos, neste caso de vacinas protegidas por patentes, que permitem a obtenção de lucros extraordinários por parte das farmacêuticas.
Gabriel Leite Mota, publicado a 11 de Março de 2021