Wednesday, May 5, 2021

EXTREMISMOS

Um dos temas que mais tem estado em discussão nos últimos tempos tem sido o suposto incremento do extremismo na política, com o ganho de preponderância dos partidos ou líderes que defendem propostas mais distantes dos tradicionais centros políticos. Em particular, tem-se verificado o crescimento, nas democracias, dos partidos de extrema-direita e da direita populista (que também é extremada). Ao mesmo tempo, há quem identifique movimentos simétricos à esquerda, como a extrema-esquerda e a esquerda populista (ex: Podemos em Espanha).

Em Portugal, este fenómeno materializou-se através do surgimento do Chega, mas também através de alguns políticos ou candidatos do PSD (vide Suzana Garcia) e do CDS (a Tendência Esperança em Movimento). Por outro lado, há a acusação de que o PS sucumbiu ao extremismo, ao ter aceitado o PCP e o Bloco de Esquerda como partidos de suporte ao seu governo, aquando da geringonça.

À escala internacional temos Bolsonaro, Marine Le Pen, Erdogan ou Orbán (e tivemos Trump) como exemplos paradigmáticos da força desse extremismo. No Parlamento Europeu, até já há um grupo político que congrega estes extremistas, o grupo “Identidade e Democracia”.

Para muitos analistas, este é um problema, uma malignidade democrática que urge eliminar. Mas vejamos com mais atenção: a classificação de alguém, ou de algum partido, como extremista não pode ser vista, de imediato, como um atestado de aberração ou indigência moral. Na verdade, extremismo é sempre uma medida da distância face ao centro, não um qualificativo de mal. Aliás, se o centro for a barbárie, num extremismo oposto estará a virtude. Se no centro for a violência, no extremo oposto está o pacifismo.

Ao longo da história, são inúmeros os exemplos de extremistas que, hoje, seriam classificados de heróis morais. Desde Galileu a Gandhi, passando pelo Padre António Vieira, Francisco de Assis, Hypátia ou Olympe de Gouges, são inúmeros os exemplos daqueles que tinham ideias extremadas à época e que, hoje, são consideradas as ideias certas.

Não penso, portanto, que a discussão política deva ser feita no maniqueísmo “extremos mal”, “centros bem”. O que tem que ser feito é, cada um, estabelecer os seus padrões morais e encontrar os representantes políticos que mais se enquadrem nesses padrões.

Inevitavelmente, teremos pessoas com diferentes padrões morais. Em democracia, impor-se-á o padrão moral maioritário, o que não quer dizer que seja um bom padrão moral. Por isso, pouco importa o classificativo extremista.

Ao avaliarmos um partido como o Chega é irrelevante o classificativo “extremista”. O que temos que fazer é avaliar as suas propostas concretas e a ideologia subjacente. Se o Chega tivesse uma maioria absoluta, deixaria de ser um partido extremista e passaria a ser um partido do centro, um novo centro é certo, mas centro, porque teria havido uma inflexão moral no povo português.

Quem é contra as propostas anti-humanistas do Chega, pouco importa se o Chega é extremista ou representa o centro, será sempre contra essas propostas. É o conteúdo das políticas que tem que ser discutido, sendo irrelevante o adjectivo extremista (seja de esquerda ou de direita). Curiosamente, até já há aqueles que se querem apelidar de radicais do centro…

Entendamo-nos: em democracia, há lugar para todas as opiniões, estejam elas mais próximas ou mais afastadas do centro circunstancial. E o combate ideológico tem que ser feito no campo das ideias, não no campo dos adjectivos ou dos epítetos.

Alguém que, por exemplo, entenda que o capitalismo actual está a ser nocivo à sociedade e ao planeta, e defenda um outro sistema económico, será classificado de extremista. Acontece que até pode estar cheio de razão. Ou seja, classificar alguém de extremista nada diz sobre a pessoa classificada, mas diz muito sobre quem qualifica: quer rotular e não quer debater os méritos das ideias.

Eu não me importo nada que me chamem extremista na minha defesa do humanismo (que impede a pena de morte, ou qualquer tipo de castração física penal) ou na minha intransigência para com todas as formas de ditadura e de subjugação (pondo a democracia sempre à frente das ditaduras) ou ainda na defesa de um Estado Social “à países nórdicos” que muitos, hoje, consideram um extremismo socialista…

Uma democracia só é forte quando sabemos debater ideias sem insultar ou tentar diminuir os outros. Façamos esse processo de maturação.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 5 de Maio de 2021


Wednesday, April 21, 2021

O FIM DO FUTEBOL?

O debate que se gerou à volta do anúncio da criação de uma Superliga no futebol europeu (que, entretanto, já se percebeu que não vai ter condições para avançar, pelo menos para já), levantou questões interessantes relativamente à natureza do desporto, à sua relação com o mundo empresarial e aos desafios do futuro.

No programa “É ou não é?” da RTP, o director do gabinete de scouting do Shakhtar Donetsk, o português José Boto, fez uma leitura mais abrangente do problema do futebol, em que punha como principal desafio a sustentação da prática infantil e juvenil, e não tanto a criação desta ou de qualquer outra Superliga. Segundo Boto, um dos principais problemas para o futebol foi a paragem dos escalões de formação (por causa da pandemia), sem que se saibam ainda quais os impactos futuros: será esse tempo perdido recuperável, quer para jovens que estavam em formação, quer para novas entradas? Este é um problema que já existia (a produção de talentos), mas que a pandemia veio agravar.

Ao mesmo tempo, Florentino Pérez, numa entrevista à televisão, em que explicava o porquê de ter aderido ao projecto da Superliga, aludia às transformações geracionais e à desmotivação que muitos jovens têm hoje para ver jogos de futebol, nomeadamente para ver um jogo de futebol do princípio ao fim.

De facto, a geração tik-tok tem um tempo de atenção muito curto e está cada vez mais ligada ao mundo virtual. Ora, isso é incompatível com a dedicação ao treino de futebol ou, simplesmente, à assistência, quer ao vivo, quer através da televisão, a jogos completos.

A verdade é que o futebol, por ser muito agarrado às regras originais, tem mantido uma forma de jogo que é pouco espectacular. Se pensarmos bem, não tem cabimento um jogo, cujo objectivo é marcar golos, em que esse evento ocorre apenas uma, duas ou três vezes, em média, por jogo. Mais, no futebol é possível um jogo terminar com o resultado de 0 a 0, mostrando que, durante os 90 minutos, nenhuma das equipas foi capaz de concretizar o objectivo. Não há nenhum outro jogo, individual ou colectivo, onde tal suceda. Mesmo os remates enquadrados com a baliza são poucos durante um jogo típico. Costuma até acontecerem mais remates desenquadrados. Se fizéssemos a comparação com o basquete, um remate desenquadrado seria um “airball”, que é considerado um lance inadmissível num profissional. Já no futebol profissional de mais alto nível, o que mais se vê são remates que nem na baliza acertam. De facto, o futebol é um jogo muito táctico, onde as defesas têm muito maior preponderância do que os ataques, o que tira espectacularidade.

Mas a verdade é que as pessoas gostam do futebol mais pela clubite do que pelo espectáculo. As pessoas querem é que o seu clube ganhe, mesmo se jogar “feio”, mais do que assistirem a um espectáculo de elevada qualidade. O mesmo se diga das competições entre nações, em que as pessoas querem é que o seu país vença, ficando agarradas aos ecrãs a torcer pela vitória, não por um bom espectáculo.

Acontece que, com as mudanças geracionais, há, de facto, o risco de um progressivo afastamento das camadas mais jovens, quer da prática desportiva, quer da visualização dos jogos, o que compromete tanto a qualidade dos futuros futebolistas, como a sobrevivência do negócio (porque sem audiências não há receitas).

O futebol, que é uma actividade centenária, passou por muitas transformações ao longo do tempo, desde o momento em que era um desporto praticado só por amadores, até ao momento em que se profissionalizou e, mais recentemente, sofreu a transformação empresarial.

É verdade que estas transformações, nomeadamente o processo de empresarialização, ainda estão incompletas. E esse ficar no meio da ponte, em que os clubes amadores de formação fornecem as superestrelas para as empresas detentoras dos clubes de maior prestígio, e não recebem a compensação justa por tal, torna o processo iníquo e insustentável. Isso e a mudança geracional são os principais desafios de futebol.

Os mais jovens estão a canalizar a sua atenção muito mais para os videojogos do que para os espectáculos desportivos. Aliás, o mercado fluorescente é o dos e-sports, onde os jovens passam a querer ser atletas de comando na mão e as audiências passam a estar na visualização desses e-sports, que já têm enorme implantação nos países asiáticos.

Acredito, portanto, que o futebol tem que fazer uma reflexão profunda se quiser sobreviver: por um lado, não pode tornar-se uma mera actividade empresarial, descurando todo o histórico dos cubes, a sua paixão e implantação de origem regional, ou a natureza amadora do futebol de formação. Por outro, tem que se tornar mais espectacular (com eventuais mudanças nas regras do jogo) e mais competitivo (não pode suceder, com sucede, que os ganhadores da Liga dos Campeões e das Ligas Nacionais sejam sempre os mesmos).

Assim, este anúncio gorado da Superliga deve ser visto com precaução e como uma oportunidade de transformação. Caso contrário, o futebol corre o risco de desaparecer.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 21 de Abril de 2021

Tuesday, April 20, 2021

CAPITALISMO NOS OUTROS É REFRESCO


Uma das características intrínsecas, e mais notáveis, do capitalismo é sua capacidade de expansão. Uma espécie de tendência imperialista, no sentido de ser capaz de se intrometer nas mais diversas áreas da vida individual e colectiva. Se é verdade que o capitalismo se iniciou nas actividades industriais, comerciais e profissionais, rapidamente se expandiu para todos os outros domínios, desde os culturais e artísticos, passando pelos desportivos, até à esfera mais íntima.

Não é por acaso que a nossa vida pessoal é, hoje, cada vez mais capitalista. Isto é, dominada por empresas e pela lógica capitalista da competição e do lucro. Isso é visível pelos sítios onde expressamos as nossas ideias (redes socias privadas), onde contactamos com os nossos amigos (outras vez as redes socias e diferentes espaços privados de diversão), até aos sítios onde encontramos parceiros sexuais e afectivos (os Tinders desta vida).

Vem isto a propósito da criação de uma Superliga europeia de futebol, uma iniciativa de uns quantos clubes mais ricos da Europa, que pretendem criar uma liga fechada, que seja a reunião dos grandes clubes, dos grandes jogadores e das grandes receitas. Esta Superliga mais não é do que o corolário lógico da aplicação da dinâmica capitalista à esfera do futebol profissional. Aliás, o que tem acontecido ao futebol, desde a sua criação enquanto desporto amador até à contemporânea empresarialização, mais não é do que uma progressiva transformação capitalista (quantos clubes já não pertencem aos associados, mas apenas a multimilionários estrangeiros, tantas vezes com riqueza de origem duvidosa?).

Mesmo o actual formato da Liga dos Campeões já se aproxima de uma Superliga europeia (as ligas mais ricas estão sobre-representadas e só os mais ricos ganham, com a excepção do Futebol Clube do Porto em 2004). Aquilo que estes clubes, agora, decidiram fazer foi dar o (pequeno) passo lógico seguinte, no sentido de tornar essa competição o mais rentável possível, à luz do que sucede nas grandes competições desportivas norte-americanas, que há muito seguem a lógica empresarial (desde a NBA até à UFC).

No meio de tudo isto, é engraçadíssimo ver muitos que tanto pugnam pelo aprofundamento do papel das empresas, pela retracção do Estado e pelas virtudes da livre iniciativa privada, rechaçar, com repugnância, esta iniciativa empresarial. E fazê-lo, argumentando que os clubes menos ricos vão ser prejudicados, que os adeptos vão ser prejudicados, que o futebol, em geral, vai ser prejudicado. Como assim? Não terá esta Superliga jogos interessantíssimos? Não atrairá, esta Superliga, milhões de telespectadores? Se esta Superliga for um sucesso financeiro, será o mercado a dizer que as pessoas gostam dessa Superliga, preferem essa Superliga.

O capitalismo é assim, os mercados livres são assim: o consumidor, perante as alternativas oferecidas, escolhe, e com o seu comportamento (neste caso, a audiência televisiva destes jogos) determina o sucesso dos negócios.

E sim, para o capitalismo europeu e mundial, clubes como o Futebol Clube do Porto, o Benfica ou o Sporting são irrelevantes. Se desaparecerem, quem se importa? Os milhões de espectadores europeus e mundiais (que esta liga está feita a pensar na assistência mundial), que querem jogos de alta qualidade, não se interessam com tais minudências como os clubes portugueses.

Sempre achei que o desporto e o futebol dão exemplos interessantes para mostrar alguns efeitos de modelos político-económicos. Um paradigma é a NBA, que acaba por ser muito mais competitiva do que a Liga dos Campeões, por causa da imposição de regras socialistas como as do draft e dos tectos salariais. Agora, esta Superliga, um passo lógico no capitalismo futebolístico, parece apanhar alguns em contrapé.

Costuma-se dizer “com o mal dos outros posso eu bem”. No caso do capitalismo, só quando bate à porta dos nossos interesses é que nos lembramos dos seus perigos. De facto, é muito bom quando podemos desfrutar de viagens de avião a 10 €. Já não é nada bom quando somos pilotos dessas companhias e ganhamos salários muito menores do que o das companhias não “low cost” (https://www.publico.pt/2015/01/06/p3/cronica/low-cost-1822290). É muito bom irmos buscar produtos às “lojas do 1€” quando não somos nós a trabalhar 16 horas numa sweatshop num qualquer país subdesenvolvido.

Até os principais actores do capitalismo, os empresários, adoram navegar nos “oceanos azuis” (quando se é monopolista ou oligopolista) e fogem dos “oceanos vermelhos” (da concorrência muito forte e das margens de lucro irrisórias).

Os canais de TV em sinal aberto em Portugal, são um exemplo paradigmático. As guerras constantes entre a TVI e a SIC para ver quem fica líder, logo com mais lucros, operam-se num mercado duopolista, um privilégio concedido pelo Estado. Se falarmos com os donos da TVI e da SIC sobre concorrência e livre iniciativa empresarial, eles vão proclamar as habituais loas ao sistema de mercado. Porém, se defendermos a concessão de mais licenças para canais em sinal aberto, cairão sobre nós como leões. Lá esta: a concorrência nos outros é bonito, quando nos toca a nós…

Confesso que ainda não vi as reacções da Iniciativa Liberal, dos seus acólitos e de todos os pregadores da iniciativa privada acerca desta Superliga. Mas a única coisa que podem fazer, se tiverem honestidade intelectual, é aplaudi-la. Todos os outros, os que sempre perceberam os perigos que o mercado não regulado acarreta para a vida social, têm toda a legitimidade para criticar esta Superliga.

Esta Superliga é apenas mais um exemplo do funcionamento normal do capitalismo e dos mercados: a tendência para a formação de monopólios e oligopólios, em que vence quem tem muito dinheiro e poder, e é esmagado quem tem menos. Ou seja, o contrário da meritocracia, da defesa da dignidade social e da igualdade de oportunidades.

Quem está contra esta Superliga por questões como a justiça, a igualdade de oportunidades, a meritocracia ou a não subjugação de todos os valores à ganância, é boa altura para abrir os olhos e perceber o mundo em que vivemos e para onde nos dirigimos.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 20 de Abril de 2021

Thursday, April 8, 2021

PSD SEM VERGONHA

A criação do Chega podia ter sido aproveitada pelo PSD para fazer uma espécie de depuração: separar o trigo do joio, deixando o joio ao Chega e retendo o trigo no PSD. Quando Rui Rio assumiu a liderança do partido, cavalgando um discurso de imposição da ética na política, parecia que estariam reunidas as condições para se fazer essa separação das águas. É que, na verdade, o Chega é um spinoff do PSD, quer de militantes, quer de eleitores. E isso era mais uma razão para deixar a natureza seguir o seu rumo e aproveitar esse momento para reconstruir um PSD moderno, projectado para o futuro, com novos quadros, novas ideias e nova imagem. Acontece que efectuar tais transformações requer visão estratégica.

Infelizmente, a vida de um partido de poder tende a não ser compatível com tais desígnios de médio e longo prazo. Principalmente num partido que está habituado, e depende, do poder, uma decisão de curto prazo que tem custos eleitorais (logo, de poder e de financiamento) em nome de uma perspectiva de sucesso a médio e longo prazo, tende a ser rejeitada pela estrutura partidária. Ainda assim, uma direcção pode construir uma força de mudança, baseada num projecto de futuro que acabasse por ser aceite pelos militantes actuais, e até atrair nova gente.

Aquilo que a realidade nos está a mostrar é a total ausência de visão estratégica por parte de Rui Rio e sua direcção, e um foco total nos resultados eleitorais mais próximos. As asneiras começaram nos Açores, quando negociaram com o Chega para chegar ao poder, e continuam, agora, com as escolhas autárquicas efectuadas pela direcção do PSD. Se a escolha de Carlos Moedas podia indicar um novo rumo para o PSD, muitas outras comprovam o contrário. Desde António Oliveira, para Gaia, passando pela desistência da luta no Porto, até ao apoio a um ex-presidiário em Oeiras, as escolhas são elucidativas. E o zénite é a escolha de Suzana Garcia para a Câmara da Amadora, uma candidata natural do Chega.

O que o PSD percebeu, é que, eventualmente, tem tanto de trigo como de joio, pelo que separar-se do joio seria condenar-se a um desastre eleitoral e a uma significativa perda de poder e de financiamento. Vai daí, e metem-se os valores e a ética na gaveta.

Um partido político não é uma empresa em busca do lucro, nem tão-pouco tem como objectivo ganhar eleições. Um partido político existe para propor ideias e políticas à nação, esperando que, através da sua capacidade de persuasão, as pessoas adiram a essas propostas, para então sim, ganhar eleições. Caso contrário, um partido político deixa de ter ideologia e vai atrás de qualquer ideia que seja a ideia que, no momento, aumenta a chance de ganhar as eleições.

Ora, é essa a estratégia que o PSD está a seguir, despudoradamente. Aliás, a frase que José Silvano utilizou para justificar a escolha de Suzana Garcia como candidata à Câmara da Amadora pelo PSD é exemplar: se fosse para a Assembleia da República, teríamos mais critérios, como é para a Câmara da Amadora, achamos que esta é a candidata vencedora. Isto é o oposto da ética em política. Isto é a negação da ideologia. Isto é olhar para um partido político como uma empresa de fazer votos e dinheiro.

É evidente que os partidos de poder têm que pensar em ganhar eleições, mas podem fazê-lo num equilíbrio, numa ponderação, entre a sua ideologia e o melhor candidato para passar a mensagem. A escolha de Suzana Garcia não é isso: é uma escolha sem vergonha.

Daqui para a frente, o PSD vai, cada vez mais, ter que optar entre abandalhar-se (para que o Chega não lhe roube votos), ou civilizar-se a pensar no futuro.

Como já disse, sempre houve muito Chega no PSD (de Valentim Loureiro a Alberto João Jardim, passando pelo próprio André Ventura). Mas a eclosão do Chega tornou inevitável uma clarificação no PSD: ou assume, sem vergonha, esse seu lado populista bruto, ou aproveita o momento para se transformar num partido de futuro. Os militantes do PSD têm a palavra.


Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 8 de Abril de 2021

Wednesday, April 7, 2021

HABITAÇÃO: EMPURRAR A OFERTA E A COMPETIÇÃO

Uma das dimensões que funciona mal em Portugal é o mercado imobiliário, nomeadamente no que toca à satisfação das necessidades habitacionais das classes média e baixa. Em particular nas maiores cidades, onde estão concentrados a grande parte dos empregos, vive-se um desequilíbrio crónico de excesso de procura, tanto no mercado de compra, como no mercado de arrendamento. Essa situação provoca um aumento de preços (ex: 55% em Lisboa e 66% no Porto, entre 2017 e 2020) que tem gerado uma gentrificação iníqua.

Ao contrário do que sucede nos mercados competitivos, em que um excesso de procura provoca um forte aumento da oferta, não deixando os preços subir e satisfazendo quem procura, as características próprias do sector imobiliário impedem esse ajustamento da oferta. Desde os Planos Directores Municipais, à concentração dos imóveis em relativamente poucos proprietários, até à escolha pela especulação (não pôr os imóveis no mercado na expectativa de que os preços continuem a subir), tudo torna este mercado altamente ineficiente.

No que diz respeito ao arrendamento, ainda se fazem sentir as políticas salazaristas (mantidas durante a democracia, só recentemente alteradas) de congelamento de rendas, que bloquearam este mercado durante décadas.

Já a crise do subprime fez com que muitos construtores abandonassem o mercado da construção habitacional, havendo uma quase estagnação na construção de casas novas nos principais centros urbanos nos últimos 12 anos.

Tudo isto faz com que um casal que viva só dos seus salários, sem heranças ou ajudas familiares, tenha imensas dificuldades em encontrar habitação condigna, a preços sustentáveis, nas cidades (para compra ou arrendamento).

A consequência tem sido a expulsão dessas pessoas das cidades onde cresceram e trabalham, forçadas a emigrar para a periferia, com assinaláveis perdas na qualidade de vida: horrorosas deslocações casa-trabalho-casa – que são dos momentos mais stressantes na vida das pessoas, os estudos comprovam-no; afastamento da família e dos grupos de lazer – com perdas ao nível dos bens relacionais; residência em locais com baixas amenidades, o que diminui a qualidade de vida (as câmaras mais pobres não têm o capital, nem o interesse, em criar essas amenidades); aproximação a guetos com problemas criminais, gerando-se sentimentos de insegurança.

Perante este problema, importa encontrar soluções. Uns têm defendido políticas de preços máximos, para se garantir o acesso à habitação a preços compatíveis com os rendimentos. Sucede que essa estratégia está votada ao fracasso, pois, potencialmente, baixa a oferta (piorando o problema) e até cria a injustiça de só beneficiar quem tiver a sorte de conseguir as poucas habitações disponíveis a esses preços.

Sabendo-se que o problema está na baixa oferta, temos que a estimular. Assim, proponho o seguinte:

1. Imposto de inutilização em função do custo de oportunidade, da localização e do excesso da procura. Não através do IMI (que financia as Câmaras, é muito pequeno e é calculado em função dos baixos valores tributários) mas de um novo imposto cobrado pela AT e destinado ao aumento da oferta no mercado imobiliário (seja por construção pública, seja no incentivo à construção privada). Este imposto iria fazer com que quem tem imóveis parados ou abandonados, passasse a ter um incentivo forte a pô-los no mercado, pois que se vendesse ou arrendasse deixava de pagar este imposto. Este imposto teria que ser substancial. Quem escolhesse manter os imóveis parados por motivos especulativos, sentimentais, ou outros, estava no seu direito, mas contribuía com este imposto para a sociedade conseguir responder à falta de oferta.

2. Liberalização do PDM e agilização dos procedimentos de licenciamento. Um dos grandes entraves à construção de novas habitações são as regras do PDM que, tantas vezes, geram mais-valias ou luxos injustificados para os proprietários de certas áreas urbanas. No Porto, por exemplo, se há muita gente a querer morar na Foz, o que há a fazer é liberalizar o PDM da Foz, permitindo-se a construção de prédios altos nessas freguesias (obviamente, isto terá a oposição feroz dos proprietários das moradias de luxo, que não querem ter como vizinho um prédio de 7 andares…). Um PDM é, sempre, um instrumento estatal de distribuição de benefícios: o luxo de uns, é a gentrificação de outros. Se liberalizarmos, o mercado equilibrará isso. Quanto ao licenciamento, a espera absurda de anos por um parecer favorável a uma obra de reabilitação ou de construção, é incompatível com a necessidade imperiosa de aumentar a oferta.

3. Contrabalançar, pela oferta, os incentivos estatais à procura ("vistos gold”, acordos de não tributação, apoios ao turismo). Nos últimos anos, as cidades do Porto e de Lisboa têm assistido a uma explosão do turismo e da procura imobiliária internacional, que tem feito disparar os preços dos imóveis. Quer pela transformação de fogos habitacionais em hotéis ou alojamento local, quer pela compra de imóveis nessas cidades por brasileiros, suecos, franceses, chineses, ou outros estrangeiros ricos que vêm à procura de benefícios fiscais e segurança urbana, o mercado desequilibrou-se, tornando-se impraticável para quem vive com salários nacionais. Das duas uma, ou se acaba com esses privilégios para os internacionais (que prejudicam o cidadão mediano português), ou se cria oferta habitacional em massa que faça baixar os preços. Pode-se, por exemplo, subsidiar certo tipo de construção nova, ou de reabilitação, que não seja para o turismo, nem para compradores que beneficiam dos programas mencionados.

4. Estado a construir habitação. A cidade do Porto é um paradigma da construção social por toda a cidade. Não há, praticamente, uma zona da cidade que não tenha um bairro social. Isso é muito positivo, porque não só dificulta a geração de mega guetos, como proporciona a convivência interclassista e o acesso aos espaços nobres a todos, o que é um imperativo de equidade. Acontece que essas construções foram feitas há muitos anos, e eram destinadas aos mais pobres. Agora, precisamos que o Estado também intervenha ao nível das classes médias. E o Estado pode fazer uso do seu património imobiliário para esse fim, convertendo o que tem em habitação para a classe média, colocando-a no mercado em condições competitivas.

Todas estas medidas promoveriam a justiça, a equidade, a sustentabilidade ambiental e a felicidade. É tempo de as pôr em marcha.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 7 de Abril de 2021

EM NOME DE CRISTO, DO COMUNISMO E DA CIVILIZAÇÃO

Nota prévia: debater ideologia só faz sentido usando a racionalidade e a lógica. Infelizmente, o que mais se vê são discursos fanáticos a propósito de política. Acredito que, no espaço público, temos a obrigação de desconstruir as argumentações falaciosas e inflamadas. Como defensor da social-democracia, escrevo este texto sem nenhum viés “clubístico”.

Recentemente foi tema de debate uma intervenção da deputada municipal de Lisboa do PPM, Aline Beuvink, em 2019, acerca das fomes que aconteceram na Ucrânia entre 1932 e 1933 do século passado. Nessa intervenção, que veio a terreiro no programa “O tabu” de Francisco Louçã, no seu “momento zen”, a deputada diz que, durante essas fomes, houve canibalismo, e que crianças teriam desaparecido por terem sido comidas pelas próprias famílias. Seria, até, por causa disso que teria nascido o mito de que os comunistas comiam criancinhas.

Por ter entendido que Francisco Louçã gozou com o Holodomor e menosprezou as atrocidades cometidas pelos regimes comunistas, a tribo lusa direitista caiu em cima dele.

É já antiga a disputa histórica sobre quem matou mais: o capitalismo, o comunismo, o nazismo, o colonialismo, o cristianismo ou o islamismo, numa patética “comparação de pilinhas” da mortandade. Há uns anos, até se publicaram os “Livros Negros”, um atrás do outro, do comunismo e do capitalismo, cada um reivindicando o respectivo regime como o mais nefasto da história.

Essas investigações, se forem feitas com rigor histórico, são muito úteis para percebermos as consequências negativas de qualquer construção social ou económica. Mas perdem todo o interesse se forem utilizadas apenas como armas de arremesso contra uma determinada ideologia. Logo à cabeça, porque fica muito difícil fazer-se uma avaliação de causa e efeito entre um determinado sistema económico e social complexo (como comunismo ou capitalismo) e as mortes ocorridas durante a vigência desses sistemas. E, também, porque há o risco de cegueira intelectual, tomando-se as mortes do outro sistema como uma verdade insofismável, e rejeitando qualquer morte como sendo causa directa do sistema que defendemos.

Infelizmente, foi muito isso que vimos nos textos de opinião da direita publicados a propósito desse “momento zen”, acusando Louçã de ser um branqueador do comunismo ou um negacionista do Holodomor. Acontece que Louçã não fez nenhuma negação do Holodomor, apenas criticou as pessoas que acreditam que os comunistas comem criancinhas ou justificam essa mitologia. É que usar este episódio histórico como prova insofismável de que o comunismo é diabólico, é o horror, é de uma indigência intelectual insuportável. Até o silogismo: Premissa 1. Houve uma fome na Ucrânia onde os ucranianos comeram crianças por desespero; Premissa 2. Estaline foi o responsável; Conclusão: “por isso se diz que os comunistas comem crianças ao pequeno-almoço”, falha todas as regras da lógica. Aliás, a respeito da história do comunismo, o que mais se vê é uma confusão entre o discutir a ideologia e a análise das suas tentativas de implementação.

Já aqui escrevi que o comunismo ainda não existiu. Apenas existiram sistemas político-económicos que, usando a palavra comunismo, criaram realidades, muitas vezes, opostas ao ideal comunista. Aquilo que falhou nos ditos países comunistas não foi a aplicação do comunismo. O que falhou foram os sistemas de planificação central da economia (que tendem a funcionar muito mal), assim como os regimes políticos de partido único, autoritários, que esmagaram muitas liberdades individuais.

Mais, o comunismo nem sequer precisa de ser marxista: a ideia comunista é mais antiga do que Marx (vejam-se os socialismos utópicos). Também aqui já falei de Agostinho da Silva e de como ele invoca os religiosos portugueses do século XIII que anteviam um tempo da gratuidade da vida em que, usando uma linguagem comunista, “cada um faz o que pode e recebe o que precisa”.

É, assim, imbecil achar-se que o comunismo leva, inevitavelmente, a fomes, a canibalismo, a polícias políticas, a ditaduras ou quejandas barbáries. Aliás, é muito interessante verificar como alguns países da Europa de Leste, que hoje são capitalistas, mantêm uma estrutura política pouco democrática, demonstrando que essas nações parecem, culturalmente, gostar do autoritarismo (quando eram monarquias, repúblicas socialistas, ou agora, que são capitalistas), sendo a Rússia o paradigma máximo.

Para se ter uma conversa séria acerca destes temas é fundamental fazer uma distinção clara entre o que é um programa ideológico e o que são os aproveitamentos práticos dessas ideologias. A história das ideias está cheia de distorções daquilo que alguém, ou alguns, idealizaram e o que outros executaram.

O cristianismo como ideário exposto no Novo Testamento (que é muito mais antigo do que o capitalismo ou o comunismo), é uma pregação da bondade, do perdão, da fraternidade e da igualdade. Na prática, são milhões os mortos em nome de Deus, em nome de Cristo. Que culpa tem Cristo de seguidores que usaram as suas palavras para perpetrar o mal? Cristo nunca disse para queimar mulheres em fogueiras, nunca disse para violar crianças, nunca disse para se começarem guerras sangrentas (ditas santas), nem para criar uma Inquisição.

Mas alguns, ditos seguidores de Cristo (e até líderes de igrejas cristãs), especializaram-se nessas bestialidades. A culpa não é do Novo Testamento, nem do ideário cristão. A culpa é das aplicações abusivas, contranatura, desses ideais.

Com o comunismo passa-se, exactamente, o mesmo. Um ideal de busca da comunhão e da libertação da exploração dos seres humanos, uns sobre os outros, que foi transformado, na prática, em ditaduras militares absolutistas que cometeram todo o tipo de violências.

O comunismo, enquanto ideal, não tem culpa nenhuma disso, nem há nada no comunismo que obrigue a que a prática seja como foi. E as experiências que existiram não chegam como invalidação da teoria: primeiro, porque desrespeitaram a teoria; segundo, porque nem sequer foram assim tantas experiências, durante tanto tempo. O cristianismo, por exemplo, leva 2000 anos de experiências e ainda se continuam a cometer muitas atrocidades em seu nome e ainda não se conseguiu criar a “fraternidade entre humanos” prometida.

Igual raciocínio se pode fazer relativamente à Civilização. As concepções europeias de progresso foram espalhadas pelo mundo à lei da espada e da bala. Sob pretexto da civilização, dizimaram-se povos e culturas, escravizaram-se pessoas, destruíram-se patrimónios históricos e deu-se origem a inúmeras guerras.

Mais uma vez, a ideia de progresso e de civilização é boa. Nomeadamente, os ideais iluministas, utilitaristas e humanistas que emanaram da Europa têm mérito para serem globalizados. Só que não podem ser espalhados à força. E se, no passado, era a Europa, na sua vertente imperial e colonialista, que se encarregava de “espalhar o progresso”, o século XX marcou a transição desse poder para os Estados Unidos da América, que se intrometem em todo o lado, supostamente na defesa da liberdade e da democracia. Quantos têm morrido em nome disso?

Não podemos desacreditar as ideias por más concretizações. No caso do comunismo, uma crítica legítima é a que se faz à centralização estatal da economia. Mas, mesmo aí, é preciso ser cuidadoso. É que se a planificação central do século XX não resultou, foi por questões de gestão de informação, nomeadamente pela vertente tácita, contextual e subjectiva das preferências individuais, que tornam essa centralização pouco fiável. Mas nada impede que futuros sistemas de planificação central, baseados em inteligência artificial, não venham a ser mais eficazes do que os actuais sistemas de mercado (como também já aqui aludi).

Acima de tudo, tem que ficar claro que, para se discutirem ideias, não podemos recorrer a caricaturas. E justificar que se diga que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço porque houve uma fome nos anos 1930 na Ucrânia, na qual Estaline tem responsabilidades, é uma falácia argumentativa indefensável.

Quem quiser ser sério numa discussão sobre estes temas tem que se ater às ideias, não às suas concretizações deturpadas. Uma pessoa pode, do ponto de vista ideológico, ser cristã, comunista e defensora da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, tecer as mais duras críticas às igrejas cristãs, aos partidos e governos comunistas ou aos males que a imposição da civilização tem causado. Uma coisa não contraria a outra, bem pelo contrário. Se estivermos atentos e formos críticos quanto às más utilizações das ideias, mais seremos capazes de nos bater por transformações que façam uma aplicação justa e fiel dos ideais.

Um bom cristão será o primeiro a condenar a pedofilia no sacerdócio ou os negócios escuros na Santa Sé, assim como um bom comunista terá que ser o primeiro a denunciar o regime norte-coreano como um despotismo absolutista anticomunista, ou, ainda, um bom ocidental capitalista deverá insurgir-se contra a ingerência militar em países pobres (para controlar activos estratégicos) sob a capa da defesa da liberdade dos povos invadidos.

O lema deve ser: não invoques o nome de Cristo, do Comunismo ou da Civilização em vão.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 7 de Abril de 2021

Monday, March 29, 2021

A DIREITA NÃO ESTÁ EM CRISE

Muito se tem falado de uma suposta crise na direita portuguesa, europeia e americana. Creio que essa análise anda longe de ser realista. É facto que os partidos políticos da direita vão tendo oscilações nas suas votações, vão estando, ou não, nos governos e vão sofrendo transformações ao longo do tempo que, por vezes, se materializam em cisões, partidos novos (como os bem-sucedidos populistas identitários) ou no fim de antigos. Mas não penso que se deva chamar a isso “crise da direita”.

Do ponto de vista filosófico, económico e social, a direita é uma ideia, não um partido. E a ideia moderna de direita é a convicção que os interesses de certos indivíduos (os que vencem o jogo do mercado) devem prevalecer sobre outros, a noção de inviolabilidade de todas as forma de propriedade privada e uma desvalorização das desigualdades. No fundo, é a defesa da ideia de que o lado competitivo do ser humano é o mais importante (e aquele que tem que ser mais estimulado), pela crença de que é esse o caminho para a criação de riqueza material a nível global. Essa direita não está em crise.

Olhando para o panorama mundial, verificamos que o capitalismo é cada vez mais hegemónico, ao mesmo tempo que as entidades que assumem maior poder são as empresas privadas multinacionais, já não os Estados. É evidente que ainda existe poder estatal e colectivo, mas, também aí, a direita ocupa o seu lugar através dos partidos afins, que fazem o seu papel de tentar exercer o poder político. De resto, a vida nas organizações é ditada por filosofias da direita (outra vez a competição, a produtividade e a maximização do lucro como valores fundamentais) e as ideias, veiculadas nos média, na publicidade e até em muitas academias, são muito influenciadas pela direita.

Olhando para Portugal, vemos que as grandes empresas privadas (incluindo as donas de órgãos de comunicação social) e a gestão de instituições públicas de relevo estão, quase todas, dominadas por pessoas de direita. Na comunicação social, isso nota-se no protagonismo dado a certos jornalistas e colunistas de direita (o estudo do ISCTE MediaLab mostra bem esse viés).

Ao nível da União Europeia, o Partido Popular Europeu tem sido o partido dominante no poder, com a Comissão Europeia a ser dirigida por pessoas dessa área política (Barroso, Junker, von der Leyen), ou por pessoas que se deixam influenciar pela teia de interesses que todas as organizações empresariais de alto nível acabam por efectuar junto desses decisores políticos.

Em Portugal, apesar do Partido Socialista ter estado no poder nos últimos anos (mais do que o PSD e o CDS), a verdade é que muitas das políticas implementadas foram mais de direita do que de esquerda (como privatizações, desregulamentação de mercados, cortes no funcionalismo público ou alívios fiscais para o factor capital).

Obviamente, muitas pessoas à direita queixam-se que devia ter havido mais políticas de direita, que se devia cortar fortemente nos gastos públicos, no investimento público, que se devia pagar menos impostos. Mas essa ambição não estar 100% satisfeita não é sintoma de crise. Aliás, na democracia portuguesa, não só nunca o PCP nem o Bloco de Esquerda estiveram com responsabilidades governativas, como, dentro do PS, foi sempre a sua ala mais direitista, de Guterres a Sócrates, que triunfou. Mesmo durante a geringonça, o Ministério das Finanças, que é, no fundo, quem toma as decisões fulcrais, esteve sempre ocupado por pessoas filosoficamente próximas da direita.

Um resultado importante é que não foi por culpa de políticas esquerdistas que existiram os fracos resultados de crescimento económico nos últimos 20 anos em Portugal. Na verdade, foi a conjuntura à escala global, com o espalhar das políticas de direita, consagradas no Consenso de Washington (e muitas plasmadas nos Tratados Europeus), que dificultou a vida a países pequenos e com pouca capacidade de partida como Portugal. Políticas como a disciplina fiscal (para evitar défices orçamentais), as reformas fiscais (ampliando a base tributária e adoptando taxas marginais moderadas), taxas de juros moderadas (e determinadas pelo mercado) e taxas de câmbio competitivas (entregues ao BCE no caso de Portugal por causa da moeda única), livre comércio (apanágio da UE e da OMC), liberalização do investimento directo estrangeiro (vejam-se os vistos gold e outras benesses fiscais a empresa internacionais), privatização de empresas estatais (REN, EDP, CTT, PT, TAP, etc.), desregulamentação dos mercados ou a segurança jurídica para os direitos da propriedade privada, estão em progressão continuada desde os anos 80 do séc. XX e adensaram-se, em Portugal, a partir de 2000.

Obviamente que Portugal podia jogar melhor este jogo neoliberal e, por exemplo, tornar-se um paraíso fiscal. Tenho poucas dúvidas que isso contribuiria para um crescimento económico de curto e médio prazo. Tenho é dúvidas que funcionasse para aumentar a satisfação com a vida do cidadão português mediano. Por exemplo, o fenómeno da expulsão da classe média/média baixa das cidades (por troca com imigrantes ricos) adensar-se-ia num cenário de paraíso fiscal (como acontece em Londres, Dublin ou no Luxemburgo).

Acredito que o mundo precisava era de uma recentragem à esquerda (e não, não estou a falar de regimes de planificação central que, como se sabe, acabam por empancar), revitalizando a boa velha social-democracia, que rareia.

Apesar de termos, agora, Biden com algumas políticas recentradas (fugindo do radicalismo de Trump), continuamos a ter a direita no poder na Rússia, na Alemanha, na Inglaterra, na Índia, no Brasil, nas Filipinas, na Polónia, na Hungria, na Turquia, na Arábia Saudita, na Austrália, no Japão e um capitalismo de Estado na China. Esta realidade torna a implementação de uma social-democracia mundial muito difícil.

Porém, num mundo onde as desigualdades são crescentes e onde a insustentabilidade ambiental está provada, não vejo outra solução que não seja a criação de uma social-democracia à escala mundial que combata o dumping fiscal, social e ambiental. Chegado esse dia, então sim, poderemos falar de uma crise da direita, como a que sucedeu depois da segunda guerra mundial (com os sistemas de planificação central ainda a funcionarem e com a criação da social-democracia na Europa). Até lá, as notícias duma crise da direita são manifestamente exageradas.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 29 de Março de 2021


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"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos...