Wednesday, June 2, 2021

O CRESCIMENTO ECONÓMICO E O SECURITARISMO NÃO SÃO INSPIRADORES

Em Portugal, os partidos políticos situados à direita do PS têm tido dificuldade em se recomporem da derrota eleitoral sofrida em 2015 (sim, os vencedores são aqueles que conseguem formar governo com apoio parlamentar maioritário). Mais, tendo o PS sido capaz de estabilizar as contas públicas, sem impor uma prática e uma retórica de austeridade e punição, a direita portuguesa congelou.

Os fantasmas invocados acerca da geringonça (que vinha aí o comunismo e a “venezuelização” de Portugal) permaneceram no mundo dos espectros. Na prática, entre 2015 e 2019, houve crescimento económico, criação de empregos, diminuição da emigração, explosão turística e até alguma convergência com a Europa. A ideia de que a esquerda não sabe fazer contas, caiu por terra.

Mas a direita ainda tinha uma esperança: o diabo. Estaria para vir o diabo, um qualquer desastre económico que provocaria uma nova bancarrota e uma nova intervenção externa. E não é que veio mesmo?

No fim de 2019, uma pandemia, como não se via há cem anos, atingiu o mundo e obrigou ao fechamento das economias, causando recessões globais sem precedentes históricos. Mas, onde está a implosão do governo? Em vez de troikas e austeridade, o mundo ocidental pôs-se de acordo que é preciso salvar as economias, injectando tanto dinheiro quando for necessário para a reanimação das ditas, quase sem condições.

Todos estes factos têm desorientado profundamente as direitas.

Na prática, isso tem originado uma fragmentação partidária (com o surgimento em força do Chega e da IL) que, como mostram as sondagens e os actos eleitorais, não somam votos para a direita, apenas os repartem doutra forma, penalizando o PSD e o CDS.

Do ponto de vista ideológico, a estratégia tem passado pelo extremar de posições, com o Chega a cavalgar a bandeira do securitarismo e do conservadorismo, a IL a do neoliberalismo. Acontece que nenhuma dessas bandeiras é particularmente inspiradora, entusiasmante ou mobilizadora, ainda para mais quando são agitadas sempre contra qualquer coisa, muito mais do que a favor.

O farol securitário tem muito pouco apelo em Portugal, que é só um dos países mais seguros e pacíficos do mundo, por mais que os média sensacionalistas chafurdem na lama da realidade. Não temos máfias como outros, não temos problemas de integridade do território, nem sequer estamos “invadidos” por imigrantes. É normal que esta não seja a questão que mais preocupa os portugueses.

Quanto ao conservadorismo, apesar de católico, Portugal não é um país fanático e, desde 1974, temos sido pioneiros na aprovação de leis progressistas nos costumes, com grande apoio popular.

Quando ao endeusamento do mercado, também não é religião a que os portugueses sejam muito sensíveis: apesar de se queixarem dos serviços do Estado, e de se queixarem dos impostos pagos, muitos portugueses recebem dinheiro do Estado (seja através de salários, de pensões, de subsídios ou de recebimentos por vendas ao Estado) e sabem que é o Estado a sua derradeira segurança. Ao mesmo tempo, a desconfiança que têm para com o Estado também têm para com as empresas privadas. Sentem-se, muitas vezes, enganados e maltratados por estas, seja enquanto clientes, seja enquanto trabalhadores.

Os portugueses estão, também, cientes das profundas desigualdades do país e têm noção que o crescimento económico não é uma panaceia para esse problema.

Um discurso, para ser mobilizador, necessita de ser positivo, prometer um futuro melhor, não para o país, mas para as pessoas. Um futuro onde os que ganhem pouco passem a ganhar mais, onde se trabalhe menos e haja mais tempo para o lazer e para a família, onde exista verdadeira mobilidade social, mais empregos, menos poluição, mais sustentabilidade ambiental, menos solidão, menos desemprego, mais igualdade entre géneros, etnias, grupos etários e regiões, melhor mobilidade urbana, melhores serviços públicos e privados e menos corrupção. Um discurso mobilizador é também aquele que já está a pensar nos eleitores do futuro, não só naqueles que, daqui a 15 anos, já não existem. Acontece que a direita tem-se alheado desta perspectiva.

O Chega quer cavalgar as frustrações e o ódio, e glorifica o nosso passado obscuro, ao retardador de um Trump que já foi corrido, de um Bolsonaro que está para ser e de uma Le Pen que nunca chega ao poder. Tem um discurso pela negativa, contra certas pessoas que considera “as de mal” e vê vergonhas em todo o lado.

A IL demoniza os impostos – num país onde muita gente já não paga impostos (50% da população não paga IRS e muitas empresas não pagam IRC por falta de lucros…) – insurge-se contra o Estado (vendo socialismo em toda a parte) e mistifica a iniciativa privada – num país onde foi através do emprego público que se criou o grande elevador social no pós 25 de Abril e onde ainda é no Estado que se encontram muitas das melhores condições de trabalho em certas profissões qualificadas. Tem um discurso pela negativa, contra o Estado. Sendo que o Estado são pessoas, é um discurso contra muita gente.

O PSD e o CDS andam perdidos. A direita, assim, não mobiliza gente suficiente.

A felicidade, com já referi muitas vezes (e a ciência o comprova), não está no crescimento do PIB, está na satisfação holística das diferentes dimensões da vida e na redução das distâncias sociais e económicas entre todos.

Só quem entender isso, e mostrar que tem políticas de qualidade, capazes de melhorar a vida de todos e cada um (sendo que uma vida melhor não se mede pelo nível de consumo), terá a capacidade de mobilizar eleitorado, principalmente se quiser tirar o poder ao PS. Caso contrário, as pessoas preferem ficar como estão.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 2 de Junho de 2021


Wednesday, May 19, 2021

DA IMPOTÊNCIA DO PIB

 
Há inúmera literatura científica demonstrativa de que, a partir de certos patamares de riqueza, o crescimento continuado do PIB per capita perde a sua potência de gerar bem-estar. Em concreto, a partir dos 30.000 dólares anuais de PIB per capita, o crescimento económico deixa de estar inequivocamente correlacionado com maiores níveis de bem-estar, de felicidade.

Este é um resultado robusto, que pode ser ilustrado pelo gráfico abaixo.  Aí, podemos ver como a nuvem de pontos, representativa dos países nos seus níveis de felicidade e de PIBpc, deixa de apresentar uma tendência linear e positiva (como sucede até aos 30.000 dólares), para passar a ser de tendência indefinida. Esta evidência empírica encerra uma lição política importantíssima: a partir dos 30.000 USD de PIBpc, importa muito mais o tipo de crescimento económico, ou o que se faz além desse crescimento, do que o crescimento em si.

Embora as razões explicativas para este fenómeno sejam diversas e já bem discutidas na literatura, a base do argumento é de compreensão simples: quando já reunimos as condições materiais suficientes para suprirmos as nossas necessidades mais importantes, a riqueza adicional é gasta no supérfluo, que tem retornos muito menores na nossa felicidade.

Mais, se para continuarmos a crescer economicamente prejudicarmos dimensões fundamentais do nosso bem-estar como o sono, a saúde mental, se aumentarmos o stress, a competitividade e o consumismo, diminuirmos os bens relacionais e a confiança, estaremos a diminuir a nossa felicidade, apesar de dispomos de mais bens e serviços.

Apesar de haver toda esta evidência científica, e de se realizarem fóruns onde se debatem estes problemas, tarda em os países assumirem as verdadeiras consequências deste facto. Ainda recentemente, a propósito da Cimeira Social da UE, que decorreu no Porto, um dos responsáveis europeus dizia que, por palavras mais elegantes, “isto do social é muito bonito, mas o que verdadeiramente interessa é o PIB”.

Confesso que, como estudioso do tema desde 2004, já me cansa este discurso estafado do PIB, este dogma anti-realista. Para um bloco económico rico como a Europa, já não é o crescimento do PIBpc o que verdadeiramente interessa, mas sim a coesão social, a sustentabilidade ambiental, a democracia e a diminuição das desigualdades.

Em Portugal, também abundam os religiosos do PIB, principalmente entre os economistas e os políticos, que se exibem ignorantes perante a realidade (um traço infeliz de muitos economistas).

É verdade que Portugal, sendo dos mais pobres da Europa, beneficiará com o crescimento económico. Porém, já tem um nível de riqueza que faz com que a questão mais importante seja a da qualidade e não a da quantidade. Vamos crescer aumentando salários e combatendo a precariedade (algo que, p. ex., o turismo não tem sido capaz de fazer)?  Vamos crescer libertando tempo-livre e promovendo a saúde mental (ou vamos aumentar as cargas laborais e potenciar o burnout)?

Vamos crescer respeitando a sustentabilidade ambiental (ou vamos esgotar os recursos e destruir a paisagem)? Vamos crescer diminuindo as desigualdades e a pobreza (ou aceitamos alegremente o aumento imoral nas diferenças salarias)?

No fundo, e voltando aos dados espelhados no gráfico acima, de nada nos valerá crescer muito para ficarmos como Hong-Kong (que é mais infeliz do que nós) e de pouco nos servirá crescer para o nível do Qatar (que é muito mais rico e pouco mais feliz), mas já compensará crescer (ainda que muito menos) para sermos como a Nova Zelândia ou a Finlândia. Mais, através dos dados, constatamos que podíamos até ficar mais pobres e sermos mais felizes, como sucede na Costa Rica ou no Uruguai, ou, quase mantendo a riqueza, aumentar a felicidade para os níveis da Eslováquia.

Enfim, a Europa (e Portugal) tem que ter coragem de encarar a realidade e perceber que não estamos perante um problema de quantidade, mas de qualidade. Só percebendo isto e desenhando as políticas adequadas, conseguiremos uma Europa e um Portugal mais felizes.

Contra a impotência do PIB, temos a potência dos bens relacionais, do capital social e da inovação comunitária. É esse o caminho da felicidade.



Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 19 de Maio de 2021


Wednesday, May 5, 2021

EXTREMISMOS

Um dos temas que mais tem estado em discussão nos últimos tempos tem sido o suposto incremento do extremismo na política, com o ganho de preponderância dos partidos ou líderes que defendem propostas mais distantes dos tradicionais centros políticos. Em particular, tem-se verificado o crescimento, nas democracias, dos partidos de extrema-direita e da direita populista (que também é extremada). Ao mesmo tempo, há quem identifique movimentos simétricos à esquerda, como a extrema-esquerda e a esquerda populista (ex: Podemos em Espanha).

Em Portugal, este fenómeno materializou-se através do surgimento do Chega, mas também através de alguns políticos ou candidatos do PSD (vide Suzana Garcia) e do CDS (a Tendência Esperança em Movimento). Por outro lado, há a acusação de que o PS sucumbiu ao extremismo, ao ter aceitado o PCP e o Bloco de Esquerda como partidos de suporte ao seu governo, aquando da geringonça.

À escala internacional temos Bolsonaro, Marine Le Pen, Erdogan ou Orbán (e tivemos Trump) como exemplos paradigmáticos da força desse extremismo. No Parlamento Europeu, até já há um grupo político que congrega estes extremistas, o grupo “Identidade e Democracia”.

Para muitos analistas, este é um problema, uma malignidade democrática que urge eliminar. Mas vejamos com mais atenção: a classificação de alguém, ou de algum partido, como extremista não pode ser vista, de imediato, como um atestado de aberração ou indigência moral. Na verdade, extremismo é sempre uma medida da distância face ao centro, não um qualificativo de mal. Aliás, se o centro for a barbárie, num extremismo oposto estará a virtude. Se no centro for a violência, no extremo oposto está o pacifismo.

Ao longo da história, são inúmeros os exemplos de extremistas que, hoje, seriam classificados de heróis morais. Desde Galileu a Gandhi, passando pelo Padre António Vieira, Francisco de Assis, Hypátia ou Olympe de Gouges, são inúmeros os exemplos daqueles que tinham ideias extremadas à época e que, hoje, são consideradas as ideias certas.

Não penso, portanto, que a discussão política deva ser feita no maniqueísmo “extremos mal”, “centros bem”. O que tem que ser feito é, cada um, estabelecer os seus padrões morais e encontrar os representantes políticos que mais se enquadrem nesses padrões.

Inevitavelmente, teremos pessoas com diferentes padrões morais. Em democracia, impor-se-á o padrão moral maioritário, o que não quer dizer que seja um bom padrão moral. Por isso, pouco importa o classificativo extremista.

Ao avaliarmos um partido como o Chega é irrelevante o classificativo “extremista”. O que temos que fazer é avaliar as suas propostas concretas e a ideologia subjacente. Se o Chega tivesse uma maioria absoluta, deixaria de ser um partido extremista e passaria a ser um partido do centro, um novo centro é certo, mas centro, porque teria havido uma inflexão moral no povo português.

Quem é contra as propostas anti-humanistas do Chega, pouco importa se o Chega é extremista ou representa o centro, será sempre contra essas propostas. É o conteúdo das políticas que tem que ser discutido, sendo irrelevante o adjectivo extremista (seja de esquerda ou de direita). Curiosamente, até já há aqueles que se querem apelidar de radicais do centro…

Entendamo-nos: em democracia, há lugar para todas as opiniões, estejam elas mais próximas ou mais afastadas do centro circunstancial. E o combate ideológico tem que ser feito no campo das ideias, não no campo dos adjectivos ou dos epítetos.

Alguém que, por exemplo, entenda que o capitalismo actual está a ser nocivo à sociedade e ao planeta, e defenda um outro sistema económico, será classificado de extremista. Acontece que até pode estar cheio de razão. Ou seja, classificar alguém de extremista nada diz sobre a pessoa classificada, mas diz muito sobre quem qualifica: quer rotular e não quer debater os méritos das ideias.

Eu não me importo nada que me chamem extremista na minha defesa do humanismo (que impede a pena de morte, ou qualquer tipo de castração física penal) ou na minha intransigência para com todas as formas de ditadura e de subjugação (pondo a democracia sempre à frente das ditaduras) ou ainda na defesa de um Estado Social “à países nórdicos” que muitos, hoje, consideram um extremismo socialista…

Uma democracia só é forte quando sabemos debater ideias sem insultar ou tentar diminuir os outros. Façamos esse processo de maturação.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 5 de Maio de 2021


Wednesday, April 21, 2021

O FIM DO FUTEBOL?

O debate que se gerou à volta do anúncio da criação de uma Superliga no futebol europeu (que, entretanto, já se percebeu que não vai ter condições para avançar, pelo menos para já), levantou questões interessantes relativamente à natureza do desporto, à sua relação com o mundo empresarial e aos desafios do futuro.

No programa “É ou não é?” da RTP, o director do gabinete de scouting do Shakhtar Donetsk, o português José Boto, fez uma leitura mais abrangente do problema do futebol, em que punha como principal desafio a sustentação da prática infantil e juvenil, e não tanto a criação desta ou de qualquer outra Superliga. Segundo Boto, um dos principais problemas para o futebol foi a paragem dos escalões de formação (por causa da pandemia), sem que se saibam ainda quais os impactos futuros: será esse tempo perdido recuperável, quer para jovens que estavam em formação, quer para novas entradas? Este é um problema que já existia (a produção de talentos), mas que a pandemia veio agravar.

Ao mesmo tempo, Florentino Pérez, numa entrevista à televisão, em que explicava o porquê de ter aderido ao projecto da Superliga, aludia às transformações geracionais e à desmotivação que muitos jovens têm hoje para ver jogos de futebol, nomeadamente para ver um jogo de futebol do princípio ao fim.

De facto, a geração tik-tok tem um tempo de atenção muito curto e está cada vez mais ligada ao mundo virtual. Ora, isso é incompatível com a dedicação ao treino de futebol ou, simplesmente, à assistência, quer ao vivo, quer através da televisão, a jogos completos.

A verdade é que o futebol, por ser muito agarrado às regras originais, tem mantido uma forma de jogo que é pouco espectacular. Se pensarmos bem, não tem cabimento um jogo, cujo objectivo é marcar golos, em que esse evento ocorre apenas uma, duas ou três vezes, em média, por jogo. Mais, no futebol é possível um jogo terminar com o resultado de 0 a 0, mostrando que, durante os 90 minutos, nenhuma das equipas foi capaz de concretizar o objectivo. Não há nenhum outro jogo, individual ou colectivo, onde tal suceda. Mesmo os remates enquadrados com a baliza são poucos durante um jogo típico. Costuma até acontecerem mais remates desenquadrados. Se fizéssemos a comparação com o basquete, um remate desenquadrado seria um “airball”, que é considerado um lance inadmissível num profissional. Já no futebol profissional de mais alto nível, o que mais se vê são remates que nem na baliza acertam. De facto, o futebol é um jogo muito táctico, onde as defesas têm muito maior preponderância do que os ataques, o que tira espectacularidade.

Mas a verdade é que as pessoas gostam do futebol mais pela clubite do que pelo espectáculo. As pessoas querem é que o seu clube ganhe, mesmo se jogar “feio”, mais do que assistirem a um espectáculo de elevada qualidade. O mesmo se diga das competições entre nações, em que as pessoas querem é que o seu país vença, ficando agarradas aos ecrãs a torcer pela vitória, não por um bom espectáculo.

Acontece que, com as mudanças geracionais, há, de facto, o risco de um progressivo afastamento das camadas mais jovens, quer da prática desportiva, quer da visualização dos jogos, o que compromete tanto a qualidade dos futuros futebolistas, como a sobrevivência do negócio (porque sem audiências não há receitas).

O futebol, que é uma actividade centenária, passou por muitas transformações ao longo do tempo, desde o momento em que era um desporto praticado só por amadores, até ao momento em que se profissionalizou e, mais recentemente, sofreu a transformação empresarial.

É verdade que estas transformações, nomeadamente o processo de empresarialização, ainda estão incompletas. E esse ficar no meio da ponte, em que os clubes amadores de formação fornecem as superestrelas para as empresas detentoras dos clubes de maior prestígio, e não recebem a compensação justa por tal, torna o processo iníquo e insustentável. Isso e a mudança geracional são os principais desafios de futebol.

Os mais jovens estão a canalizar a sua atenção muito mais para os videojogos do que para os espectáculos desportivos. Aliás, o mercado fluorescente é o dos e-sports, onde os jovens passam a querer ser atletas de comando na mão e as audiências passam a estar na visualização desses e-sports, que já têm enorme implantação nos países asiáticos.

Acredito, portanto, que o futebol tem que fazer uma reflexão profunda se quiser sobreviver: por um lado, não pode tornar-se uma mera actividade empresarial, descurando todo o histórico dos cubes, a sua paixão e implantação de origem regional, ou a natureza amadora do futebol de formação. Por outro, tem que se tornar mais espectacular (com eventuais mudanças nas regras do jogo) e mais competitivo (não pode suceder, com sucede, que os ganhadores da Liga dos Campeões e das Ligas Nacionais sejam sempre os mesmos).

Assim, este anúncio gorado da Superliga deve ser visto com precaução e como uma oportunidade de transformação. Caso contrário, o futebol corre o risco de desaparecer.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 21 de Abril de 2021

Tuesday, April 20, 2021

CAPITALISMO NOS OUTROS É REFRESCO


Uma das características intrínsecas, e mais notáveis, do capitalismo é sua capacidade de expansão. Uma espécie de tendência imperialista, no sentido de ser capaz de se intrometer nas mais diversas áreas da vida individual e colectiva. Se é verdade que o capitalismo se iniciou nas actividades industriais, comerciais e profissionais, rapidamente se expandiu para todos os outros domínios, desde os culturais e artísticos, passando pelos desportivos, até à esfera mais íntima.

Não é por acaso que a nossa vida pessoal é, hoje, cada vez mais capitalista. Isto é, dominada por empresas e pela lógica capitalista da competição e do lucro. Isso é visível pelos sítios onde expressamos as nossas ideias (redes socias privadas), onde contactamos com os nossos amigos (outras vez as redes socias e diferentes espaços privados de diversão), até aos sítios onde encontramos parceiros sexuais e afectivos (os Tinders desta vida).

Vem isto a propósito da criação de uma Superliga europeia de futebol, uma iniciativa de uns quantos clubes mais ricos da Europa, que pretendem criar uma liga fechada, que seja a reunião dos grandes clubes, dos grandes jogadores e das grandes receitas. Esta Superliga mais não é do que o corolário lógico da aplicação da dinâmica capitalista à esfera do futebol profissional. Aliás, o que tem acontecido ao futebol, desde a sua criação enquanto desporto amador até à contemporânea empresarialização, mais não é do que uma progressiva transformação capitalista (quantos clubes já não pertencem aos associados, mas apenas a multimilionários estrangeiros, tantas vezes com riqueza de origem duvidosa?).

Mesmo o actual formato da Liga dos Campeões já se aproxima de uma Superliga europeia (as ligas mais ricas estão sobre-representadas e só os mais ricos ganham, com a excepção do Futebol Clube do Porto em 2004). Aquilo que estes clubes, agora, decidiram fazer foi dar o (pequeno) passo lógico seguinte, no sentido de tornar essa competição o mais rentável possível, à luz do que sucede nas grandes competições desportivas norte-americanas, que há muito seguem a lógica empresarial (desde a NBA até à UFC).

No meio de tudo isto, é engraçadíssimo ver muitos que tanto pugnam pelo aprofundamento do papel das empresas, pela retracção do Estado e pelas virtudes da livre iniciativa privada, rechaçar, com repugnância, esta iniciativa empresarial. E fazê-lo, argumentando que os clubes menos ricos vão ser prejudicados, que os adeptos vão ser prejudicados, que o futebol, em geral, vai ser prejudicado. Como assim? Não terá esta Superliga jogos interessantíssimos? Não atrairá, esta Superliga, milhões de telespectadores? Se esta Superliga for um sucesso financeiro, será o mercado a dizer que as pessoas gostam dessa Superliga, preferem essa Superliga.

O capitalismo é assim, os mercados livres são assim: o consumidor, perante as alternativas oferecidas, escolhe, e com o seu comportamento (neste caso, a audiência televisiva destes jogos) determina o sucesso dos negócios.

E sim, para o capitalismo europeu e mundial, clubes como o Futebol Clube do Porto, o Benfica ou o Sporting são irrelevantes. Se desaparecerem, quem se importa? Os milhões de espectadores europeus e mundiais (que esta liga está feita a pensar na assistência mundial), que querem jogos de alta qualidade, não se interessam com tais minudências como os clubes portugueses.

Sempre achei que o desporto e o futebol dão exemplos interessantes para mostrar alguns efeitos de modelos político-económicos. Um paradigma é a NBA, que acaba por ser muito mais competitiva do que a Liga dos Campeões, por causa da imposição de regras socialistas como as do draft e dos tectos salariais. Agora, esta Superliga, um passo lógico no capitalismo futebolístico, parece apanhar alguns em contrapé.

Costuma-se dizer “com o mal dos outros posso eu bem”. No caso do capitalismo, só quando bate à porta dos nossos interesses é que nos lembramos dos seus perigos. De facto, é muito bom quando podemos desfrutar de viagens de avião a 10 €. Já não é nada bom quando somos pilotos dessas companhias e ganhamos salários muito menores do que o das companhias não “low cost” (https://www.publico.pt/2015/01/06/p3/cronica/low-cost-1822290). É muito bom irmos buscar produtos às “lojas do 1€” quando não somos nós a trabalhar 16 horas numa sweatshop num qualquer país subdesenvolvido.

Até os principais actores do capitalismo, os empresários, adoram navegar nos “oceanos azuis” (quando se é monopolista ou oligopolista) e fogem dos “oceanos vermelhos” (da concorrência muito forte e das margens de lucro irrisórias).

Os canais de TV em sinal aberto em Portugal, são um exemplo paradigmático. As guerras constantes entre a TVI e a SIC para ver quem fica líder, logo com mais lucros, operam-se num mercado duopolista, um privilégio concedido pelo Estado. Se falarmos com os donos da TVI e da SIC sobre concorrência e livre iniciativa empresarial, eles vão proclamar as habituais loas ao sistema de mercado. Porém, se defendermos a concessão de mais licenças para canais em sinal aberto, cairão sobre nós como leões. Lá esta: a concorrência nos outros é bonito, quando nos toca a nós…

Confesso que ainda não vi as reacções da Iniciativa Liberal, dos seus acólitos e de todos os pregadores da iniciativa privada acerca desta Superliga. Mas a única coisa que podem fazer, se tiverem honestidade intelectual, é aplaudi-la. Todos os outros, os que sempre perceberam os perigos que o mercado não regulado acarreta para a vida social, têm toda a legitimidade para criticar esta Superliga.

Esta Superliga é apenas mais um exemplo do funcionamento normal do capitalismo e dos mercados: a tendência para a formação de monopólios e oligopólios, em que vence quem tem muito dinheiro e poder, e é esmagado quem tem menos. Ou seja, o contrário da meritocracia, da defesa da dignidade social e da igualdade de oportunidades.

Quem está contra esta Superliga por questões como a justiça, a igualdade de oportunidades, a meritocracia ou a não subjugação de todos os valores à ganância, é boa altura para abrir os olhos e perceber o mundo em que vivemos e para onde nos dirigimos.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 20 de Abril de 2021

Thursday, April 8, 2021

PSD SEM VERGONHA

A criação do Chega podia ter sido aproveitada pelo PSD para fazer uma espécie de depuração: separar o trigo do joio, deixando o joio ao Chega e retendo o trigo no PSD. Quando Rui Rio assumiu a liderança do partido, cavalgando um discurso de imposição da ética na política, parecia que estariam reunidas as condições para se fazer essa separação das águas. É que, na verdade, o Chega é um spinoff do PSD, quer de militantes, quer de eleitores. E isso era mais uma razão para deixar a natureza seguir o seu rumo e aproveitar esse momento para reconstruir um PSD moderno, projectado para o futuro, com novos quadros, novas ideias e nova imagem. Acontece que efectuar tais transformações requer visão estratégica.

Infelizmente, a vida de um partido de poder tende a não ser compatível com tais desígnios de médio e longo prazo. Principalmente num partido que está habituado, e depende, do poder, uma decisão de curto prazo que tem custos eleitorais (logo, de poder e de financiamento) em nome de uma perspectiva de sucesso a médio e longo prazo, tende a ser rejeitada pela estrutura partidária. Ainda assim, uma direcção pode construir uma força de mudança, baseada num projecto de futuro que acabasse por ser aceite pelos militantes actuais, e até atrair nova gente.

Aquilo que a realidade nos está a mostrar é a total ausência de visão estratégica por parte de Rui Rio e sua direcção, e um foco total nos resultados eleitorais mais próximos. As asneiras começaram nos Açores, quando negociaram com o Chega para chegar ao poder, e continuam, agora, com as escolhas autárquicas efectuadas pela direcção do PSD. Se a escolha de Carlos Moedas podia indicar um novo rumo para o PSD, muitas outras comprovam o contrário. Desde António Oliveira, para Gaia, passando pela desistência da luta no Porto, até ao apoio a um ex-presidiário em Oeiras, as escolhas são elucidativas. E o zénite é a escolha de Suzana Garcia para a Câmara da Amadora, uma candidata natural do Chega.

O que o PSD percebeu, é que, eventualmente, tem tanto de trigo como de joio, pelo que separar-se do joio seria condenar-se a um desastre eleitoral e a uma significativa perda de poder e de financiamento. Vai daí, e metem-se os valores e a ética na gaveta.

Um partido político não é uma empresa em busca do lucro, nem tão-pouco tem como objectivo ganhar eleições. Um partido político existe para propor ideias e políticas à nação, esperando que, através da sua capacidade de persuasão, as pessoas adiram a essas propostas, para então sim, ganhar eleições. Caso contrário, um partido político deixa de ter ideologia e vai atrás de qualquer ideia que seja a ideia que, no momento, aumenta a chance de ganhar as eleições.

Ora, é essa a estratégia que o PSD está a seguir, despudoradamente. Aliás, a frase que José Silvano utilizou para justificar a escolha de Suzana Garcia como candidata à Câmara da Amadora pelo PSD é exemplar: se fosse para a Assembleia da República, teríamos mais critérios, como é para a Câmara da Amadora, achamos que esta é a candidata vencedora. Isto é o oposto da ética em política. Isto é a negação da ideologia. Isto é olhar para um partido político como uma empresa de fazer votos e dinheiro.

É evidente que os partidos de poder têm que pensar em ganhar eleições, mas podem fazê-lo num equilíbrio, numa ponderação, entre a sua ideologia e o melhor candidato para passar a mensagem. A escolha de Suzana Garcia não é isso: é uma escolha sem vergonha.

Daqui para a frente, o PSD vai, cada vez mais, ter que optar entre abandalhar-se (para que o Chega não lhe roube votos), ou civilizar-se a pensar no futuro.

Como já disse, sempre houve muito Chega no PSD (de Valentim Loureiro a Alberto João Jardim, passando pelo próprio André Ventura). Mas a eclosão do Chega tornou inevitável uma clarificação no PSD: ou assume, sem vergonha, esse seu lado populista bruto, ou aproveita o momento para se transformar num partido de futuro. Os militantes do PSD têm a palavra.


Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 8 de Abril de 2021

Wednesday, April 7, 2021

HABITAÇÃO: EMPURRAR A OFERTA E A COMPETIÇÃO

Uma das dimensões que funciona mal em Portugal é o mercado imobiliário, nomeadamente no que toca à satisfação das necessidades habitacionais das classes média e baixa. Em particular nas maiores cidades, onde estão concentrados a grande parte dos empregos, vive-se um desequilíbrio crónico de excesso de procura, tanto no mercado de compra, como no mercado de arrendamento. Essa situação provoca um aumento de preços (ex: 55% em Lisboa e 66% no Porto, entre 2017 e 2020) que tem gerado uma gentrificação iníqua.

Ao contrário do que sucede nos mercados competitivos, em que um excesso de procura provoca um forte aumento da oferta, não deixando os preços subir e satisfazendo quem procura, as características próprias do sector imobiliário impedem esse ajustamento da oferta. Desde os Planos Directores Municipais, à concentração dos imóveis em relativamente poucos proprietários, até à escolha pela especulação (não pôr os imóveis no mercado na expectativa de que os preços continuem a subir), tudo torna este mercado altamente ineficiente.

No que diz respeito ao arrendamento, ainda se fazem sentir as políticas salazaristas (mantidas durante a democracia, só recentemente alteradas) de congelamento de rendas, que bloquearam este mercado durante décadas.

Já a crise do subprime fez com que muitos construtores abandonassem o mercado da construção habitacional, havendo uma quase estagnação na construção de casas novas nos principais centros urbanos nos últimos 12 anos.

Tudo isto faz com que um casal que viva só dos seus salários, sem heranças ou ajudas familiares, tenha imensas dificuldades em encontrar habitação condigna, a preços sustentáveis, nas cidades (para compra ou arrendamento).

A consequência tem sido a expulsão dessas pessoas das cidades onde cresceram e trabalham, forçadas a emigrar para a periferia, com assinaláveis perdas na qualidade de vida: horrorosas deslocações casa-trabalho-casa – que são dos momentos mais stressantes na vida das pessoas, os estudos comprovam-no; afastamento da família e dos grupos de lazer – com perdas ao nível dos bens relacionais; residência em locais com baixas amenidades, o que diminui a qualidade de vida (as câmaras mais pobres não têm o capital, nem o interesse, em criar essas amenidades); aproximação a guetos com problemas criminais, gerando-se sentimentos de insegurança.

Perante este problema, importa encontrar soluções. Uns têm defendido políticas de preços máximos, para se garantir o acesso à habitação a preços compatíveis com os rendimentos. Sucede que essa estratégia está votada ao fracasso, pois, potencialmente, baixa a oferta (piorando o problema) e até cria a injustiça de só beneficiar quem tiver a sorte de conseguir as poucas habitações disponíveis a esses preços.

Sabendo-se que o problema está na baixa oferta, temos que a estimular. Assim, proponho o seguinte:

1. Imposto de inutilização em função do custo de oportunidade, da localização e do excesso da procura. Não através do IMI (que financia as Câmaras, é muito pequeno e é calculado em função dos baixos valores tributários) mas de um novo imposto cobrado pela AT e destinado ao aumento da oferta no mercado imobiliário (seja por construção pública, seja no incentivo à construção privada). Este imposto iria fazer com que quem tem imóveis parados ou abandonados, passasse a ter um incentivo forte a pô-los no mercado, pois que se vendesse ou arrendasse deixava de pagar este imposto. Este imposto teria que ser substancial. Quem escolhesse manter os imóveis parados por motivos especulativos, sentimentais, ou outros, estava no seu direito, mas contribuía com este imposto para a sociedade conseguir responder à falta de oferta.

2. Liberalização do PDM e agilização dos procedimentos de licenciamento. Um dos grandes entraves à construção de novas habitações são as regras do PDM que, tantas vezes, geram mais-valias ou luxos injustificados para os proprietários de certas áreas urbanas. No Porto, por exemplo, se há muita gente a querer morar na Foz, o que há a fazer é liberalizar o PDM da Foz, permitindo-se a construção de prédios altos nessas freguesias (obviamente, isto terá a oposição feroz dos proprietários das moradias de luxo, que não querem ter como vizinho um prédio de 7 andares…). Um PDM é, sempre, um instrumento estatal de distribuição de benefícios: o luxo de uns, é a gentrificação de outros. Se liberalizarmos, o mercado equilibrará isso. Quanto ao licenciamento, a espera absurda de anos por um parecer favorável a uma obra de reabilitação ou de construção, é incompatível com a necessidade imperiosa de aumentar a oferta.

3. Contrabalançar, pela oferta, os incentivos estatais à procura ("vistos gold”, acordos de não tributação, apoios ao turismo). Nos últimos anos, as cidades do Porto e de Lisboa têm assistido a uma explosão do turismo e da procura imobiliária internacional, que tem feito disparar os preços dos imóveis. Quer pela transformação de fogos habitacionais em hotéis ou alojamento local, quer pela compra de imóveis nessas cidades por brasileiros, suecos, franceses, chineses, ou outros estrangeiros ricos que vêm à procura de benefícios fiscais e segurança urbana, o mercado desequilibrou-se, tornando-se impraticável para quem vive com salários nacionais. Das duas uma, ou se acaba com esses privilégios para os internacionais (que prejudicam o cidadão mediano português), ou se cria oferta habitacional em massa que faça baixar os preços. Pode-se, por exemplo, subsidiar certo tipo de construção nova, ou de reabilitação, que não seja para o turismo, nem para compradores que beneficiam dos programas mencionados.

4. Estado a construir habitação. A cidade do Porto é um paradigma da construção social por toda a cidade. Não há, praticamente, uma zona da cidade que não tenha um bairro social. Isso é muito positivo, porque não só dificulta a geração de mega guetos, como proporciona a convivência interclassista e o acesso aos espaços nobres a todos, o que é um imperativo de equidade. Acontece que essas construções foram feitas há muitos anos, e eram destinadas aos mais pobres. Agora, precisamos que o Estado também intervenha ao nível das classes médias. E o Estado pode fazer uso do seu património imobiliário para esse fim, convertendo o que tem em habitação para a classe média, colocando-a no mercado em condições competitivas.

Todas estas medidas promoveriam a justiça, a equidade, a sustentabilidade ambiental e a felicidade. É tempo de as pôr em marcha.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 7 de Abril de 2021

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