Monday, March 29, 2021

A DIREITA NÃO ESTÁ EM CRISE

Muito se tem falado de uma suposta crise na direita portuguesa, europeia e americana. Creio que essa análise anda longe de ser realista. É facto que os partidos políticos da direita vão tendo oscilações nas suas votações, vão estando, ou não, nos governos e vão sofrendo transformações ao longo do tempo que, por vezes, se materializam em cisões, partidos novos (como os bem-sucedidos populistas identitários) ou no fim de antigos. Mas não penso que se deva chamar a isso “crise da direita”.

Do ponto de vista filosófico, económico e social, a direita é uma ideia, não um partido. E a ideia moderna de direita é a convicção que os interesses de certos indivíduos (os que vencem o jogo do mercado) devem prevalecer sobre outros, a noção de inviolabilidade de todas as forma de propriedade privada e uma desvalorização das desigualdades. No fundo, é a defesa da ideia de que o lado competitivo do ser humano é o mais importante (e aquele que tem que ser mais estimulado), pela crença de que é esse o caminho para a criação de riqueza material a nível global. Essa direita não está em crise.

Olhando para o panorama mundial, verificamos que o capitalismo é cada vez mais hegemónico, ao mesmo tempo que as entidades que assumem maior poder são as empresas privadas multinacionais, já não os Estados. É evidente que ainda existe poder estatal e colectivo, mas, também aí, a direita ocupa o seu lugar através dos partidos afins, que fazem o seu papel de tentar exercer o poder político. De resto, a vida nas organizações é ditada por filosofias da direita (outra vez a competição, a produtividade e a maximização do lucro como valores fundamentais) e as ideias, veiculadas nos média, na publicidade e até em muitas academias, são muito influenciadas pela direita.

Olhando para Portugal, vemos que as grandes empresas privadas (incluindo as donas de órgãos de comunicação social) e a gestão de instituições públicas de relevo estão, quase todas, dominadas por pessoas de direita. Na comunicação social, isso nota-se no protagonismo dado a certos jornalistas e colunistas de direita (o estudo do ISCTE MediaLab mostra bem esse viés).

Ao nível da União Europeia, o Partido Popular Europeu tem sido o partido dominante no poder, com a Comissão Europeia a ser dirigida por pessoas dessa área política (Barroso, Junker, von der Leyen), ou por pessoas que se deixam influenciar pela teia de interesses que todas as organizações empresariais de alto nível acabam por efectuar junto desses decisores políticos.

Em Portugal, apesar do Partido Socialista ter estado no poder nos últimos anos (mais do que o PSD e o CDS), a verdade é que muitas das políticas implementadas foram mais de direita do que de esquerda (como privatizações, desregulamentação de mercados, cortes no funcionalismo público ou alívios fiscais para o factor capital).

Obviamente, muitas pessoas à direita queixam-se que devia ter havido mais políticas de direita, que se devia cortar fortemente nos gastos públicos, no investimento público, que se devia pagar menos impostos. Mas essa ambição não estar 100% satisfeita não é sintoma de crise. Aliás, na democracia portuguesa, não só nunca o PCP nem o Bloco de Esquerda estiveram com responsabilidades governativas, como, dentro do PS, foi sempre a sua ala mais direitista, de Guterres a Sócrates, que triunfou. Mesmo durante a geringonça, o Ministério das Finanças, que é, no fundo, quem toma as decisões fulcrais, esteve sempre ocupado por pessoas filosoficamente próximas da direita.

Um resultado importante é que não foi por culpa de políticas esquerdistas que existiram os fracos resultados de crescimento económico nos últimos 20 anos em Portugal. Na verdade, foi a conjuntura à escala global, com o espalhar das políticas de direita, consagradas no Consenso de Washington (e muitas plasmadas nos Tratados Europeus), que dificultou a vida a países pequenos e com pouca capacidade de partida como Portugal. Políticas como a disciplina fiscal (para evitar défices orçamentais), as reformas fiscais (ampliando a base tributária e adoptando taxas marginais moderadas), taxas de juros moderadas (e determinadas pelo mercado) e taxas de câmbio competitivas (entregues ao BCE no caso de Portugal por causa da moeda única), livre comércio (apanágio da UE e da OMC), liberalização do investimento directo estrangeiro (vejam-se os vistos gold e outras benesses fiscais a empresa internacionais), privatização de empresas estatais (REN, EDP, CTT, PT, TAP, etc.), desregulamentação dos mercados ou a segurança jurídica para os direitos da propriedade privada, estão em progressão continuada desde os anos 80 do séc. XX e adensaram-se, em Portugal, a partir de 2000.

Obviamente que Portugal podia jogar melhor este jogo neoliberal e, por exemplo, tornar-se um paraíso fiscal. Tenho poucas dúvidas que isso contribuiria para um crescimento económico de curto e médio prazo. Tenho é dúvidas que funcionasse para aumentar a satisfação com a vida do cidadão português mediano. Por exemplo, o fenómeno da expulsão da classe média/média baixa das cidades (por troca com imigrantes ricos) adensar-se-ia num cenário de paraíso fiscal (como acontece em Londres, Dublin ou no Luxemburgo).

Acredito que o mundo precisava era de uma recentragem à esquerda (e não, não estou a falar de regimes de planificação central que, como se sabe, acabam por empancar), revitalizando a boa velha social-democracia, que rareia.

Apesar de termos, agora, Biden com algumas políticas recentradas (fugindo do radicalismo de Trump), continuamos a ter a direita no poder na Rússia, na Alemanha, na Inglaterra, na Índia, no Brasil, nas Filipinas, na Polónia, na Hungria, na Turquia, na Arábia Saudita, na Austrália, no Japão e um capitalismo de Estado na China. Esta realidade torna a implementação de uma social-democracia mundial muito difícil.

Porém, num mundo onde as desigualdades são crescentes e onde a insustentabilidade ambiental está provada, não vejo outra solução que não seja a criação de uma social-democracia à escala mundial que combata o dumping fiscal, social e ambiental. Chegado esse dia, então sim, poderemos falar de uma crise da direita, como a que sucedeu depois da segunda guerra mundial (com os sistemas de planificação central ainda a funcionarem e com a criação da social-democracia na Europa). Até lá, as notícias duma crise da direita são manifestamente exageradas.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 29 de Março de 2021


Friday, March 26, 2021

O SUFOCANTE ASSÉDIO CONSUMISTA

Uma das palavras que os defensores do sistema de mercado capitalista mais gostam de evocar é “liberdade”. Segundo as teses desses defensores, o sistema capitalista será o mais livre dos sistemas económicos, na medida em que as pessoas podem escolher o que consumir (e o que produzir se se tornarem empresárias).

Não querendo entrar aqui nas complexidades e diversidades associadas ao sistema capitalista de mercado (que pode conviver com democracias, com ditaduras e com diferentes enquadramentos culturais ou institucionais), é muito importante desmistificar a questão da liberdade: primeiro, porque não é fácil a qualquer pessoa conseguir virar empresária (por inúmeros entraves de acesso ao capital); segundo, porque a nossa liberdade de consumo é muito ilusória. Se é certo que, no capitalismo, costumava haver abundância de escolha de bens e serviços, há, também, uma pressão intensa para o consumo.

Mais, a própria gama de escolha torna-se, muitas vezes, excessiva, na medida em que dificulta o processo de decisão, gera a ansiedade da escolha e dissonâncias cognitivas, para além de aumentar o custo de oportunidade da decisão. E, como somos levados a consumir mais do que seria óptimo para nós, mais do que maximizaria a nossa felicidade, a suposta liberdade de consumir ou não consumir, a liberdade de escolher é, na verdade, uma ilusão.

O que acontece, é que as empresas competem entre si para ver quem consegue vender mais. E competem criando inovação e pressão sobre o consumidor. Essa pressão é desenhada, de raiz, pelos responsáveis do marketing, que pensam todo o processo, desde a criação dos bens e serviços até à sua entrega aos consumidores. E os departamentos de marketing contam com contributos de especialistas da cognição e do comportamento humano, o que torna as empresas capazes de actuar sobre os mecanismos de decisão dos consumidores, levando-os a consumir ao máximo.

O caso das redes sociais é paradigmático, uma vez que elas estão estruturadas de forma a viciar os utilizadores. Não por acaso, muitos de nós estamos dependentes das redes sociais, mesmo que não nos apercebamos (e até já há clínicas de desintoxicação dessa dependência). E o que é válido para as redes sociais, é válido para quase todos os consumos que realizamos. Os centros comerciais, por exemplo, são templos de consumo onde as pessoas entram para ver e consumir, e são pressionadas a consumir.

Aliás, a pressão para o consumo é contínua: basta abrirmos os olhos, ou escutarmos os sons, para sermos invadidos pela pressão consumista (por exemplo, quando vemos carros novos na rua, quando vemos produtos na publicidade ou nas montras, quando ouvimos referências às marcas, quando observamos os bens possuídos pelas pessoas dos nossos grupos de referência ou quando acedemos à internet, nos computadores ou nos telemóveis, ou vemos televisão e ouvimos rádio).

Também não por acaso, em alguns países existem leis que restringem a publicidade, nomeadamente a dirigida a menores, por se entender que as crianças são especialmente susceptíveis às influências da dita. Mas não nos enganemos, mesmo o mais consciente dos adultos não é imune ao assédio consumista. Esse assédio é de tal forma eficaz que faz do consumo a centralidade da nossa vida. A comparação que fiz entre um centro comercial e os templos não foi inocente. No capitalismo, os valores passam a ser as posses materiais, a ideia do se ser através do que se tem.

O problema, é que isso gera ansiedade desnecessária nas pessoas. Ansiedade, porque os novos produtos desvalorizam os que já temos (que passam a obsoletos ou a fora de moda) ou porque nos obrigam a ter que acompanhar os novos paradigmas tecnológicos, assim alimentando a incessante máquina de produção e de consumo.

Isto não significa que a produção e o consumo sejam, em si mesmo, um mal. Significa que não podem é ser tidos como bens absolutos, e que temos que ter um olhar crítico sobre esta realidade. Em particular, temos de reconhecer os efeitos negativos que a pressão consumista tem sobre cada um de nós e sobre as sociedades: é que não há liberdade, felicidade e sustentabilidade quando somos constantemente assediados para consumir.

Felizmente, já há quem esteja bastante ciente deste problema, desde os economistas comportamentais até aos economistas da felicidade, passando pelos criadores de políticas públicas de nudging, todos reconhecendo que é preciso actuar a dois níveis: 1. limitar a liberdade de assédio consumista; 2. criar mecanismos de orientação das pessoas para o seu próprio bem-estar.

O nudging (ou paternalismo liberal, como alguns lhe chamam) faz isso, quer a nível das políticas públicas, quer a nível de políticas organizacionais, sempre no sentido de encaminhar as pessoas na direcção correcta para o seu bem-estar. Na prática, funciona como uma espécie de contra-assédio, um equilibrador de assédios, que promove o bem-estar sustentável.

É errado argumentar que há liberdade de escolha, que existe a soberania do consumidor (tão propalada nas aulas de economia) perante tal capacidade de manipulação nas mãos das empresas. E acreditar que a concorrência empresarial combate esses abusos, esse poder, é pueril. A realidade demonstra-nos que abundam os casos de fraca concorrência e que vivemos num sobreconsumo que está a destruir o planeta e a minar o nosso bem-estar. Se queremos salvar o planeta e maximizar a nossa felicidade, temos que refrear esse assédio e fazer uma aposta explícita no bem-estar.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 26 de Março de 2021


Thursday, March 25, 2021

O COMUNISMO AGOSTINIANO DO ESPÍRITO SANTO

Um dos grandes pensadores portugueses do século XX foi Agostinho da Silva.

Nos anos 90 desse século, regressado a Portugal depois de longa estadia no Brasil, onde teve grande impacto académico e público, Agostinho da Silva surpreendeu os portugueses com a sua filosofia na ponta da língua, particularmente durante uma série de entrevistas que deu para a RTP com o título de “Conversas vadias”, em que diferentes entrevistadores iam tentar decifrar e explorar o pensamento do filósofo. Estas entrevistas (disponíveis para visualização na internet) são um testemunho brilhante do seu pensamento, ao mesmo tempo profundo e provocador.

À época, muitos criticavam-no por entenderem que ele se contradizia, por ter o hábito de não ser absolutamente definitivo ou categórico nas suas respostas e, muitas vezes, responder com perguntas às perguntas (aí, o que Agostinho da Silva estava a fazer era, tão-só, querer ser preciso e clarificar o que realmente estava a ser perguntado). Na prática, notou-se nestas entrevistas, muitas vezes, uma décalage de profundidade filosófica entre os perguntadores e o respondente, e a perplexidade dos entrevistadores tinha muito a ver com isso.

Muitas pessoas, por preguiça mental, gostam de encaixotar a realidade de uma forma simples, compartimentada. Aquilo que Agostinho da Silva fazia era desafiar esse encaixotamento, romper as regras estabelecidas e pensar mais além. As pessoas queriam catalogá-lo, ora de religioso, ora de agnóstico/ateu e Agostinho da Silva desconstruía este dualismo, falando do misticismo como algo a que, na verdade, não devíamos dar nome nenhum. Depois, uns queriam que ele se pronunciasse a favor da monarquia ou da república e, mais uma vez, as respostas desconcertavam, ao falar dos méritos da história de Portugal (monárquica), mas também exibindo pensamentos de pendor anarquista.

Uma das temáticas que mais confundia tantos os entrevistadores como os espectadores tinha a ver com o papel das escolas e das crianças.

Agostinho da Silva, um académico de profissão, defendia que as escolas deviam ser um espaço de liberdade, um espaço de criação e de encontro do ser humano com a sua própria natureza, não uma espécie de fábrica da produção de saberes. Já nessa altura, Agostinho da Silva defendia uma escola onde os alunos decidissem o que queriam aprender, e falava da escola contemporânea como uma instituição militar ao serviço da produção e da luta económica.

Por outro lado, Agostinho da Silva antevia para Portugal, e para a cultura portuguesa, um papel decisivo no futuro: o de ensinar os outros como brincar. Aliás, dizia que achava fantástico que povos como os japoneses, os americanos ou os alemães tivessem tanto foco no trabalho, quisessem tanto trabalhar. É que Agostinho da Silva previa que chegaria o tempo da gratuidade da vida, em que as máquinas já produziriam tudo o que o ser humano precisava para viver, tornando-o livre para ser o poema que estava destinado a ser.

Este tipo de linguagem, ora filosófica, ora poética, desconcertava muito os ouvintes, que não conseguiam encaixotá-lo nas tais ideias pré-concebidas: esquerda/direita, monarquia/república, conservadorismo/progressismo ou, até, estoicismo/hedonismo.

A verdade é que Agostinho da Silva dizia que ainda não tinha chegado o tempo de se conseguir essa liberdade total, mas que esse tinha que ser o caminho, e que esse seria o caminho. Invocava, inclusivamente, o pensamento de certos religiosos portugueses e italianos do século XIII que, nessa altura, escreveram sobre a “idade do Espírito Santo”.

Nas palavras do próprio: “… primeiro que as crianças crescessem tão livremente que sua imaginação, sua espontaneidade, sua capacidade de sonhar nunca se extinguisse e, um dia, fossem capazes de dirigir o mundo; segundo lugar, que a vida ficasse a ser gratuita para toda a gente. Estamos caminhando para isso, para essa capacidade de tornar a vida gratuita para toda a gente. Como consequência disso, diziam os portugueses, porque a criança cresce livremente, ninguém a impede de ser naturalmente o quê é e, por outro lado, a vida não lança sobre nós todas as durezas de combate que costuma lançar no quotidiano, então, aí, o crime desaparecerá do mundo. Acho que caminhamos para aí, podemos caminhar para isso. Não é alguma coisa utópica, senão no sentido de que ainda não existe actualmente.”

Provocatoriamente, dizia, depois, que ser progressista, hoje, era ser um conservador do século XIII, pois que, nessa altura, já esses religiosos aventavam que o bom futuro seria esse tempo pueril de liberdade. Muitos encarniçavam-se com estas ideias e diziam que esse tempo jamais ocorreria, que era impossível a gratuidade da vida, que era impossível uma escola em que se vai aprender o que se quer (e não o que se tem que aprender).

A verdade é que há cada vez mais condições para se pôr em prática esta espécie de “comunismo Agostiniano do Espírito Santo”, esta sociedade onde cada um nasce para ser o seu próprio poema, essa sociedade em que cada vez que morre um ser humano se diz “morreu um poema”.

Quando, hoje, se fala da substituição do trabalho humano pelas máquinas e pelas inteligências artificiais, se antevê um mundo onde seja cada vez mais difícil ter trabalho e da consequente necessidade de Rendimentos Básicos Incondicionais, estamos a falar exactamente do mesmo que Agostinho da Silva prognosticava: esse tempo onde as pessoas já nasciam reformadas e tinham que aprender a ocupar esse seu tempo com o lúdico.

É óbvio que tal transição nunca se fará da noite para o dia, mas está cada vez mais claro que caminhamos nessa direcção.

Agostinho da Silva fazia, até, referência à Ilha dos Amores de Camões como sendo uma metáfora para esse tempo, e não esquecia que, enquanto essa substituição do ser humano pela máquina não ocorresse, o ser humano estava condenado a ter que trabalhar, a ter que produzir e a ter que ser educado nesse sentido. Mas não confundia uma etapa com a meta. E sabia, perfeitamente, que a meta era a Ilha dos Amores, a meta era cada um ser o poema que nasceu para ser.

Hoje, na política, no tempo em que se fala da crise das ideologias, na ascensão dos populismos e na falta de motivos de esperança, este caminho Agostiniano devia ser um claro guia da acção – caminharmos para uma sociedade gratuita e livre.

Nas palavras do próprio: “é preciso, para que essa Ilha dos Amores possa existir, que o homem possa entender que o capitalismo existe, não para ficar continuamente, tendo mais lucro, e descontando mais juros, e pagando mais dívidas ou pedido mais dinheiro emprestado, mas para terminar num ponto em que a economia desapareça completamente, em que haja tudo para todos. Primeiro ponto. Segundo ponto, que, aí, o homem possa passar à sua verdadeira vida, que é a de contemplar o mundo, ser poeta do mundo e o mundo poeta para ele, de tal maneira que nunca mais ninguém se preocupe por fazer tal ou tal obra, mas por ser tal ou tal objecto no mundo: a identidade dele, a única, o ser único que existe no mundo entre os tais biliões de seres que pelo mundo existem”.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 25 de Março de 2021

Monday, March 22, 2021

NEM TODO O CRESCIMENTO ECONÓMICO PRODUZ FELICIDADE

Um dos grandes equívocos do pensamento económico e político contemporâneo tem sido a crença dogmática de que o crescimento económico produz felicidade. Essa crença ganhou força durante o século XX, muito graças aos progressos materiais que este século testemunhou e ao baixo ponto de partida, em termos de riqueza material, que muitos países tinham.

A verdade é que o crescimento económico é, na prática, a transformação da natureza, e o aproveitamento da energia, no sentido da produção de bens e serviços que consideramos úteis à nossa vida. Duma forma demasiadamente simplista, muitos supuseram que, quanto mais produção se fizesse, mais utilidade haveria na sociedade, mais felizes ficariam as pessoas.

Acontece que o processo de criação de felicidade, através da transformação da natureza em bens e serviços, está longe de ser simples, linear, automática. Logo à cabeça, há um constante esquecimento de que os bens e os serviços não caem do céu. Fosse esse o caso e seria muito mais razoável assumir que quanto mais bens e serviços tivéssemos à disposição, mais felizes ficaríamos. Na realidade, o ser humano e as sociedades têm que se esforçar para produzir bens e serviços.

Aliás, a energia fundamental para se fazer esse processo de criação de riqueza material é a energia humana, seja energia muscular, seja a energia utilizada pela inteligência para a criação de tecnologias materiais e sociais. Isto significa que tudo o que é produzido e consumido tem custos de produção, fundamentalmente, a utilização o nosso tempo de vida. E não é claro que quanto mais produzamos mais satisfeitos fiquemos. Porque, mesmo que consigamos produzir mais e consumir mais, fazemo-lo graças a uma maior focalização das nossas vidas nessas tarefas produtivas. É certo que um dos grandes contribuintes para o crescimento económico são os ganhos de produtividade, ou seja, a capacidade de, com o mesmo trabalho, produzir-se mais. Mesmo assim, há sempre um esforço que tem que ser feito, e a forma como esse esforço é feito condiciona brutalmente a nossa felicidade.

Em 1976, o economista Tibor Scitovsky, no seu livro The Joyless Economy, já identificava que a sociedade capitalista americana (e ocidental) tinha sido muito boa a organizar-se no sentido da satisfação das necessidades de conforto do ser humano. Os bens e os serviços que o crescimento económico proporciona, cumpriam essa tarefa. Porém, estava a verificar-se, já nessa altura, uma incapacidade do crescimento económico continuado em produzir mais bem-estar. A razão avançada por Scitovsky era a incapacidade que o sistema económico tinha em produzir estímulos satisfatórios ao ser humano. Estímulos, esses, que também são fundamentais para o nosso bem-estar. O exemplo típico era o da especialização que laboral que, ao mesmo tempo que gerava aumentos exponencias da produtividade (como Adam Smith seminalmente havia identificado), tornava as tarefas profissionais mais repetitivas, aborrecidas e menos estimulantes.

Hoje em dia, a investigação profícua no domínio da economia da felicidade demonstra-nos não só que Scitovsky estava certo, como nos permite um aprofundamento do conhecimento relativamente ao que os seres humanos precisam para satisfazerem-se individual e colectivamente.

O que está completamente patente nos dados empíricos é que o crescimento económico, que se mede através das variações no Produto Interno Bruto, satisfaz apenas uma parte da nossa felicidade. Adicionalmente, surge o problema de que, para termos um PIB crescente, há dimensões da nossa vida que são afectadas: o capital relacional (a quantidade e qualidade das relações interpessoais que temos), o capital social (a confiança que temos nos outros, nos estranhos, nas instituições), a liberdade para pensar e agir (económica, social e politicamente), a saúde física e mental, a justiça, a igualdade, entre outras, são tudo dimensões fundamentais, per si, para a felicidade humana, que podem ser degradadas em nome do crescimento económico.

Analisando a realidade, constatamos que não há uma relação de causa e efeito entre crescimento económico e capital social, capital relacional, liberdade, igualdade ou saúde. Isso acontece porque o crescimento económico pode dar-se em diferentes enquadramentos institucionais e culturais que, por sua vez, são determinantes da felicidade.

Os países nórdicos são sistematicamente os mais felizes do mundo (veja-se o acabado de publicar WHR de 20220), não por serem os mais ricos do mundo, mas porque sabem conciliar o crescimento económico com as outras dimensões fundamentais do bem-estar: tempo para a vida profissional, para a vida pessoal e para o lazer, igualdade de oportunidades e discriminação positiva dos desfavorecidos, seguros sociais de diferentes formas (que minimizam o risco da vida) e forte capital social.

Nos países latinos (europeus e americanos), onde não há tanta afluência económica nem tão bons índices de capital social, obtém-se satisfação através do capital relacional (a qualidade das relações interpessoais, nomeadamente entre a família e com amigos).

Por outro lado, países asiáticos como o Japão e a Coreia do Sul são excelentes na produtividade e na produção, mas perdem muito no capital relacional e no lazer, sendo países que estão completamente subaproveitados ao nível do bem-estar, da felicidade.

A lição que temos que tirar é que não é qualquer crescimento económico que nos serve. O crescimento económico não é o objectivo, terá sempre que ser utilizado como meio para. É, apenas, mais uma ferramenta que nos ajuda a sermos felizes.

Aliás, é possível estagnar, ou até decrescer, economicamente e produzir mais felicidade, se se aumentar a justiça, fizer uma melhor redistribuição do rendimento e da riqueza, distribuir melhor o trabalho entre as pessoas ou aumentar a confiança nas instituições.

O passo que a Espanha está a dar (aliás como países nórdicos também já têm experimentado) de reduzir a carga laboral é um exemplo claro do caminho certo para a felicidade. Não interessa sermos o país do mundo que mais produz, que tem o PIB maior. Interessa sermos o mais feliz.

Reduzir as cargas de trabalho, reduzindo, assim, o desemprego, aumentar salários mínimos e, até, equacionar as questões dos rendimentos mínimos incondicionais, serão tudo ferramentas que, à luz dos resultados científicos disponíveis, nos permitiriam caminhar para mais felicidade e com mais sustentabilidade ambiental.

Mais, estes tipos de medidas, muito provavelmente, contribuiriam até para um crescimento económico saudável, com inovação e criação de empregos.

O contrário disto é uma espécie de “ditadura do crescimento económico” em que o ser humano é reduzido a uma máquina de produção, que só tem tempo para produzir e consumir produtos conspícuos, e morrer de exaustão (fenómeno muito preocupante no Japão). Essa não é a vida que se quer. A boa vida não é isso.

Por isso, do ponto de vista das políticas públicas e das políticas económicas, o foco tem que ser posto na obtenção da felicidade máxima. Isso consegue-se não confundindo o meio (crescimento económico) com o fim (felicidade) e percebendo qual a forma mais feliz de produzir. Isso passa pela gestão das organizações, pela qualidade das instituições, pelo respeito pela família, lazer e tempo livre e passa por uma boa distribuição da riqueza e do rendimento.

A ciência também demonstra que pessoas felizes são mais criativas, mais cooperantes, mais produtivas e mais saudáveis. O segredo está na criação de círculos virtuosos de felicidade e crescimento económico, mas em que o ponto de partida e de chega é a felicidade. O meio é o crescimento económico, que tem que ser subjugado, a todo o momento à felicidade. Este é o caminho.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 22 de Março de 2021


Tuesday, March 16, 2021

VAMOS SER TODOS CHIPADOS!


Uma das teorias da conspiração actualmente preferidas das redes sociais é aquela que diz que as vacinas contra a Covid19 são, na verdade, um instrumento utilizado por Bill Gates para introduzir chips nas pessoas, que serão, depois, as ferramentas para controlar essas mesmas pessoas.

Uma característica comum a todas as teorias da conspiração é esta ideia de falta de controlo e de liberdade do cidadão comum, face a uns, poucos, governantes tácitos do mundo que, à revelia da população mundial e da democracia, tomam todas as decisões importantes para a nossa vida.

O curioso desta teoria da conspiração das vacinas é que ela agita, da mesma forma que no passado, os fantasmas da tecnologia: provavelmente, ainda existem tribos perdidas no mundo, que consideram uma máquina fotográfica um instrumento perigoso e diabólico, porque uma fotografia rouba a alma do fotografado. Um ocidental ri-se desta ingenuidade perante a tecnologia fotográfica, mas, talvez, esse mesmo ocidental esteja a partilhar nas redes sociais as teses conspirativas em que a vacina vai ser usada para introduzir um chip… É verdade que ainda não chegamos a esse ponto tecnológico, mas havemos de chegar, e ainda bem.

Se há evidência que a história recente da humanidade nos tem revelado é que a inovação tecnológica tem tido um efeito espectacular sobre a vida humana: tem permitido que mais gente exista no planeta, que mais gente viva mais anos, que mais gente tenha bons cuidados de saúde, que mais gente tenha acesso à alimentação, à habitação, ao transporte e à comunicação. Tudo factores decisivos para o bem-estar humano, desde o controle da electricidade, passando pela energia nuclear, até à manipulação de processos quânticos que nos permitem ter comunicação à distância e serviços de geo-localização. A tecnologia tem sido uma aliada da humanidade.

É claro que, também, têm existido usos nocivos da tecnologia, com o exemplo paradigmático da bomba atómica. Mas o saldo é muito positivo. E esse saldo positivo dá-nos toda a confiança para encarar os avanços futuros com muito optimismo.

Na verdade, aproximamo-nos de uma progressiva integração e interacção ser humano/máquina e inteligência artificial, sendo que os receios que muitos têm desse passo são equiparáveis aos receios que os tribais tinham em ser fotografados.

Não estará muito longe o dia em que, de livre vontade, instalaremos chips no nosso corpo que nos permitirão ter acesso a informação na internet de uma forma continuada e supereficiente, sinalizar-nos-ão problemas da nossa saúde em tempo real (prevenindo riscos de morte como AVC, ataques cardíacos, embolias ou a detecção precoce de cancro), para além de correcções automáticas do processo de envelhecimento. Assim, dar-se-á o próximo passo na esperança média de vida, que é o do aumento forte da longevidade.

Só com esta integração com a máquina será o ser humano capaz de, sustentadamente, ultrapassar os 100 anos de vida, e vivê-los com qualidade.

Obviamente que, em tal estado de integração tecnológica, o ser humano passa a enfrentar riscos que hoje não tem, desde hacks ao sistema digital integrado no nosso corpo até possibilidades de fiscalização e discriminação que hoje são impossíveis.

Mas o processo será, em tudo, igual a alguns desafios que a tecnologia nos pôs no passado. Ou seja, os riscos acrescidos que vamos enfrentar por essa integração vão ser superados pelas vantagens dessa mesma integração. Aquilo que vamos ter que fazer é encontrar as tecnologias sociais mais adequados à minimização desses riscos tecnológicos, softwares mais resilientes à pirataria, sistemas políticos mais controlados democraticamente e fortes limitações legais às possibilidades de abuso.

A história da humanidade está cheia de guerras, de violações, de processo de escravatura, mas está, também, cheia dos momentos de ultrapassagem desses abusos. Aliás, a contemporaneidade é o mais feliz de todos os momentos da humanidade: nunca no planeta viveram tantas pessoas, durante tantos anos, com tanta qualidade de vida.

Não há grandes razões para duvidarmos da capacidade da humanidade em continuar este progresso. E, sim, esse progresso far-se-á com mais tecnologia, mais inteligências artificiais, mais integração humano/máquina, mas também com inovações sociais na direcção do maior respeito pelos direitos humanos e pela liberdade.

A escravatura não precisou de tecnologia nenhuma para existir. A inquisição usou instrumentos de tortura básicos para provocar dores inimagináveis. A culpa é da maldade, não da tecnologia.

Hoje, o mundo está muito menos dominado pelas elites: nunca na história da humanidade o cidadão comum teve tanto poder e liberdade, seja através das suas decisões de consumo, seja através do seu voto, seja através da sua capacidade de influenciar outros, nomeadamente através das redes sociais.

A tecnologia e o desenvolvimento tecnológico apontam, sim, para a utilização dos chipes no corpo humano. Mas essa utilização será muito bem-vinda e será mais um passo na direcção do aumento da felicidade. E vamos adoptá-la livremente, sem necessidades de esquemas conspirativos insidiosos.

Enfim, sejamos vigilantes, mas não tenhamos medo.

Gabriel Leite Mota, publicado a 16 de Março de 2021

Thursday, March 11, 2021

A INEFICIÊNCIA ECONÓMICA DO LUCRO NA SAÚDE

A economia mainstream explica que quando os mercados não são perfeitamente concorrenciais os consumidores perdem bem-estar, a economia perde eficiência e as empresas obtêm lucros extraordinários, também chamados de rendas económicas.

Segundo as teses da economia mainstream, o óptimo social só se dá quando os mercados são perfeitamente competitivos, existe informação perfeita, os produtos são homogéneos, os bens são privados e não existem externalidades. Enfim, o óptimo social só se atingiria num mundo impossível. Ainda assim, esse mundo ficcional é utilizado como benchmark para comparação com a realidade: quanto mais nos afastarmos dessas condições ideais, pior fica a situação para os consumidores e para a sociedade.

Seja qual for o sector da economia real em que pensarmos, vamos descobrir que estamos sempre longe dessas situações ideais. Isso significa que os mercados, que a economia de mercado, é sempre, em parte, ineficiente e não produz o bem-estar desejável para os consumidores.

Mas se esse afastamento pode ser pequeno, quando lidamos com mercados bastante concorrenciais, como, por exemplo, o mercado dos restaurantes ou das padarias e confeitarias, em que há muita concorrência, em que os consumidores sabem bem o que estão a consumir (e se gostam ou não), em que não existem barreiras à entrada ou à saída das empresas no mercado, em que os bens não têm especiais efeitos externos e são de natureza privada (são para o consumo de quem os adquire), há outros sectores onde estamos muito distantes dessa realidade, desse ponto ideal.

O caso dos cuidados de saúde é paradigmático. A saúde tem dimensões de bem público, apresenta muitas externalidades, a informação é assimétrica, existem fortes barreiras à entrada e economias de escala que potenciam a concentração do mercado. Isto significa, na prática, que entregar ao mercado a produção e distribuição dos serviços de saúde vai gerar altíssimas ineficiências económicas, atirando os utentes de saúde para uma situação de baixo bem-estar, com serviços de pouca qualidade relativa face ao preço. Por outro lado, os produtores de saúde gozarão de altas rendas económicas, lucros extraordinários, que só são obtidos pela perda nos excedentes dos consumidores.

Os EUA são a prova empírica deste resultado teórico. Nos EUA há um gasto em saúde exorbitante: gastavam 16,89% do seu PIB em saúde (em 2018), obtendo resultados medíocres. Por exemplo, a esperança média de vida nos EUA (78,9 anos em 2019) é mais baixa do que em Portugal (82 anos em 2019), e muito mais baixa do que nos países com melhores índices de saúde (como o Japão, com 84,6 anos em 2019), países esses que gastam significativamente menos que o EUA (Portugal 9,41% do PIB, Japão 10,95%, ambos em 2018).

Ou seja, os EUA são o país mais ineficiente do mundo na produção de saúde para a população. Isso, porque entregou aos privados e aos mercados a produção e distribuição dos serviços de saúde. Inclusivamente, juntou a questão dos seguros que, mais uma vez, é um mercado que se depara com muitas ineficiências, desta vez a propósito das altas assimetrias de informação, que fazem com que nem toda a gente consiga ter um seguro, e as pessoas que conseguem têm que pagar muito para ter as coberturas que o seguro dá. Ao mesmo tempo, a falta de centralização de informação, de cooperação e coordenação entre hospitais faz com que, no global, os serviços prestados sejam altamente ineficientes. Há vasta literatura científica na economia da saúde que demonstra como o mercado funciona mal neste sector.

Em Portugal também se percebe esta ineficiência quando constatamos que, praticamente, não há concorrência entre os prestadores privados de saúde (temos dois ou três grupos que detêm quase todos hospitais privados, o mesmo no que diz respeito aos laboratórios de análises e exames). Assim, a abrangência e a relação qualidade/preço dos serviços fica posta em causa.

Sejamos claros: um mercado bem funcionante, em concorrência perfeita, funciona melhor que qualquer alternativa na produção de bens e serviços. Mas a análise concreta não pode ser feita usando esse mercado ficcional, antes, temos que ter em conta a realidade sectorial e, em particular, as características dos bens e serviços que queremos produzir.

O caso da saúde está cheio de características que tornam a provisão através dos mercados altamente ineficiente. As decisões que um toma para a sua saúde têm impacto sobre terceiros (veja-se o caso da pandemia e a decisão de tomar ou não tomar uma vacina, ou de se proteger ou não se proteger). Isso chama-se de externalidade, algo que o mercado ignora. Também por isso, há uma dimensão de bem público, uma dimensão que diz respeito a todos e não só ao indivíduo que toma a decisão no mercado. Assim, o mercado erra.

Depois, há uma elevadíssima assimetria de informação, porque nós não sabemos o que é melhor para nós em termos de saúde, são os médicos que sabem. Também nos seguros, como as empresas de seguros não sabem o nosso verdadeiro estado de saúde, protegem-se dessa assimetria criando um sem-número de exclusões e limitações, que tornam o próprio seguro ineficaz na protecção sustentada da saúde das pessoas.

Não se trata aqui de nenhuma questão ideológica. Trata-se de uma constatação de facto: os serviços de saúde só funcionam bem se tiverem mecanismos de coordenação central, de forma a que seja possível cobrir toda a população, durante todo o seu tempo de vida e independentemente de estarem a trabalhar, no desemprego, na reforma ou a estudar. Independentemente de serem saudáveis ou de serem doentes crónicos.

Os serviços de saúde só funcionam bem se as pessoas não tiverem medo do custo do serviço para acorrerem ao dito. A saúde não é como um iogurte que compramos no supermercado. É um elemento central da nossa vida, da nossa dignidade humana.

Obviamente que a produção centralizada, seja directamente através no Estado, seja através de serviços privados contratualizados com o Estado, vai ter sempre dificuldades e falhas. Mas não se pode argumentar que a privatização da saúde é que é boa, é que faria com que tivéssemos um muito melhor sistema de saúde.

Se queremos melhorar algumas das lacunas do nosso Serviço Nacional de Saúde devemos, sim, apostar numa gestão de maior qualidade. Essa gestão deve ter em conta indicadores de produtividade, evolução das listas de espera, qualidade dos serviços prestados, satisfação dos utentes, e deve contratar e premiar os recursos humanos em função das suas capacidades efectivas, não de jogos políticos internos ou corporativos.

Na prática, nenhum sistema é perfeito. Mas, no caso da saúde, a privatização é um erro perigoso.

Portugal tem um bom Serviço Nacional de Saúde que importa preservar e melhorar. A participação dos privados pode ser bem-vinda, desde que cumpram as regras exigidas pelo sistema, exigidas pelo organismo central, e não se apropriem dos lucros extraordinários que o mercado permite.

Quanto às falhas que o Estado vai tendo na produção dos serviços de saúde, têm que ser combatidas através de melhor gestão e incentivos mais apropriados. O segredo está na boa gestão, não na privatização dos serviços que existem.

Nota final para as farmacêuticas: as dificuldades que o mundo está a ter em conseguir vacinar atempadamente toda a população mundial contra a Covid-19 (nomeadamente nos países pobres) é também uma decorrência da ineficiência na produção e distribuição privada de medicamentos, neste caso de vacinas protegidas por patentes, que permitem a obtenção de lucros extraordinários por parte das farmacêuticas.

Gabriel Leite Mota, publicado a 11 de Março de 2021


Monday, March 8, 2021

BORA SER CHUPISTA COMO A IRLANDA!

A Irlanda costuma ser referida como um país exemplar ao nível das políticas económicas, em particular ao nível da política fiscal de atractividade do investimento directo estrangeiro. Os resultados, muitos argumentam, estão à vista: um PIB crescente, muitas sedes de multinacionais, emprego qualificado e mais dinheiro para o Estado irlandês.

Segundo esta estratégia competitiva internacional, os países devem apostar em oferecer aos capitais estrangeiros (e nacionais) as condições mais favoráveis possíveis, de forma a conseguirem os investimentos para si. É a ideia de um país ser “amigo do investimento”. Na União Europeia, não é só a Irlanda que adopta estas práticas: o Luxemburgo, a Holanda ou o Chipre também o têm feito e, agora já fora da União, o Reino Unido. Desde sempre, a Suíça.

Os defensores destas estratégias dizem que estas políticas são inteligentes porque beneficiam muito os países que as adoptam (Luxemburgo, Irlanda e Holanda são os três países da UE com mais PIB per capita), esquecendo-se que esta é uma política oportunista e de roubo: é uma política que desvia os impostos de outros países, nomeadamente dos países de onde provém esse capital, consubstanciando-se como um roubo ao Estado Social dos países de origem.

No caso da Irlanda, o facto de grandes multinacionais como a Apple, a Dropbox, o eBay, o Facebook, a Google, o LinkedIn, a Oracle, a Yahoo, a PayPal, o Airbnb ou o Twitter sediarem-se lá (para as operações fora dos EUA), beneficiando de taxas muito baixas de IRC e de esquemas de movimentação de lucros internacionais, faz com que os EUA (donde essas empresas são oriundas) tenham enormíssimas quebras na sua receita fiscal que, depois, não podem ser utilizadas em despesas de saúde ou educação, ou em diversos investimentos públicos no país. O mecanismo é simples: ao praticarem-se taxas que são verdadeiras amnistias fiscais, transformam-se umas regiões em paraísos fiscais à custa do roubo às demais.

É, ainda, interessante verificar como muito dos defensores destas políticas agressivas ao nível fiscal são fortes opositores de políticas monetárias expansionistas, de políticas de desvalorização da moeda ou de ajudas de Estado às empresas estratégicas (estas, proibidas na UE), sempre com o argumento que essas são políticas que os vizinhos podem copiar (em retaliação) e que, portanto, não são eficazes a médio prazo. Na Economia, essas políticas têm mesmo a denominação inglesa “beggar thy neighbour”.

Ora, acontece que as políticas de concorrência fiscal são exactamente políticas “beggar thy neighbour”, em que uns países vivem à custa dos outros, com esses outros a poderem retaliar, neste caso, baixando também as suas taxas IRC. Se todos os países aplicarem esta estratégia de concorrência fiscal continuada, no fim do dia, todos os países transformar-se-ão em paraísos fiscais e o capital deixará de pagar impostos. Acontece que esse é o verdadeiro objectivo, inconfessado, de quem defende estas políticas.

Na verdade, esta é uma prática imoral e insustentável: se queremos viver em Estados democráticos e sociais, precisamos de impostos para financiar os bens públicos e corrigir as enormes imperfeições dos mercados. Mais, precisamos que o factor capital pague muito mais do que paga hoje: sabemos que, nas últimas décadas, tem havido uma distorção no sentido da perda do peso dos rendimentos do trabalho, face aos rendimentos de capital, na distribuição do rendimento. Isso tem de ser corrigido.

Aquilo que a União Europeia tinha de fazer era uma política agressiva de combate aos paraísos fiscais, começando pelos que tem dentro de portas, nomeadamente, o Luxemburgo, a Holanda e a Irlanda. Tínhamos de estabelecer taxas europeias mínimas de IRC e determinar a tributação não em função da localização da sede, mas em função do local onde os proveitos são gerados. Isso sim, é justiça, isso sim, é moralidade económica. A burla fiscal da Irlanda, Luxemburgo ou Holanda equivale a querer viver à custa de outros, querer que o bem-estar próprio seja ganho através da perda do bem-estar alheio.

É, mais uma vez, curioso verificar que muitos dos defensores das tributações baixíssimas para o capital são grandes opositores dos subsídios de inserção social ou mesmo de rendimentos mínimos garantidos, por serem contra a subsidiodependência. Mas se for um capital não tributado, tudo está bem. Acontece que um capital não tributado é, na prática, uma subsidiodependência obscena: é a sociedade não cobrar ao capital o que está a cobrar ao trabalho ou ao consumo.

Sejamos sérios e defendamos políticas económicas eficazes, mas morais. Caso contrário, é a lei da selva.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 8 de Março de 2021


Monday, March 1, 2021

O PROLETARIADO INTELECTUAL EM TELETRABALHO

Em entrevista ao Jornal i, a professora de economia, Susana Peralta, declarou que uma forma de subsidiar quem está a ser muito prejudicado pelos encerramentos causados pela pandemia seria através da cobrança de impostos extraordinários àqueles que ela designou por “burguesia do teletrabalho” ou trabalhadores dos serviços, que são os mais qualificados.

Nas palavras da própria, “Houve uma parte substancial das pessoas em Portugal que não perderam rendimentos, toda a burguesia do teletrabalho, todas as pessoas do sector dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas, o que também me inclui a mim. Esta crise poupou muito as pessoas que trabalham neste sector e são as pessoas com mais escolaridade”.

Antes de começar a analisar a justeza de tal proposta, convém esclarecer um ponto inicial: tecnicamente, burguesia é a classe social dos detentores dos meios de produção para além do trabalho, isto é, os detentores do capital, donos de empresas, que contratam assalariados. Aqueles que vivem apenas dos rendimentos do seu trabalho não são burgueses, são assalariados.

Na verdade, podemos dividir esses assalariados entre proletariado e classe média. Com a distinção a ser feita em função das qualificações das pessoas e dos rendimentos auferidos.

Nos países desenvolvidos, durante o séc. XX, conseguiu-se que muitos assalariados deixassem de pertencer ao proletariado (que, no séc. XIX, eram operariado do sector industrial) porque, através de maiores qualificações académicas e de direitos laborais conquistados, obtiveram rendimentos do trabalho que lhes permitiram ter um melhor nível material de vida.

Acontece que uma das transformações significativas nos países desenvolvidos, nos últimos 40 anos, tem sido a progressiva destruição das classes médias, através da erosão dos rendimentos do trabalho das pessoas qualificadas e da perda de direitos laborais.

A partir do momento em que cada vez mais pessoas obtêm qualificações avançadas (em Portugal a escolaridade obrigatória já está no 12.º ano, e uma grande percentagem de jovens completa o ensino superior), a entrada no trabalho dessas pessoas faz-se com condições laborais muito degradadas, começando pela precariedade dos contratos e acabando nos baixíssimos salários auferidos.

Essas pessoas, por mais qualificações académicas que detenham, tornam-se parte do proletariado, já não mais da classe média. E nunca burgueses.

A partir daqui, percebe-se o erro inicial da proposta de Peralta: quando fala na “burguesia do teletrabalho”, está a utilizar uma concepção vulgar da palavra burguesia, que aponta para pessoas privilegiadas. Sendo Peralta uma professora de economia, essa confusão terminológica devia ser evitada.

Refere-se, também, ao facto de as pessoas dos serviços estarem em teletrabalho e ser nos serviços que as pessoas mais ganham (porque mais qualificadas). Aqui, escapa-lhe a complexidade da realidade: durante a pandemia, há burguesia que tem ganho e perdido, em todos os sectores de actividade, e há trabalhadores que têm mantido as suas condições de trabalho intocáveis, independentemente de pertencerem ao sector dos serviços ou não (veja-se algum pessoal da construção e da indústria). Mais, há pessoas do sector dos serviços (vide turismo e comércio) que são das mais afectadas.

Lembremo-nos que, numa economia desenvolvida como a portuguesa, a esmagadora maioria das pessoas trabalham nos serviços, pelo que estar a dizer que são essas pessoas que têm que suportar os custos da pandemia não faz sentido.

Facto é que algumas empresas do sector tecnológico (vide o caso do Zoom) têm beneficiado enormemente com os confinamentos e a necessidade das pessoas praticarem o teletrabalho. Essas empresas, sim, que são beneficiárias extraordinárias da pandemia, deviam ajudar os perdedores extraordinários da pandemia (como as pessoas da restauração, do turismo, da hotelaria ou do comércio) que viram impossibilitada a continuação dos seus trabalhos. Aliás, no turismo e comércio, todos perderam: os grandes, os pequenos e os médios burgueses, assim como os assalariados de maiores ou menores qualificações, de maior ou menor salário, ou seja, das classes médias ao proletariado.

Acresce, ainda, que temos um conjunto de pessoas que não beneficiaram, nem perderam, financeiramente com a pandemia. Muitas dessas, é certo, fazem parte do sector dos serviços e estão em teletrabalho. Mas porque pedir a essas pessoas contribuições extraordinárias, se nada estão a lucrar com a pandemia?

Mais, estamos numa situação provocada por uma catástrofe natural, que a todos prejudica, que condiciona a nossa liberdade de movimentação e de expressão. E muitas das pessoas que a Susana Peralta classifica de “burgueses do teletrabalho” estão em casa, a ter que cuidar dos filhos em ensino à distância, em situações mais complexas do que aquelas que viviam quando podiam ir para os seus escritórios e deixar os seus filhos nas escolas.

Já que a palavra burguesia foi trazida à baila, convém usá-la com rigor técnico e científico.

Aliás, a classe social é, e nunca deixou de ser, a grande clivagem económica entre as pessoas numa sociedade capitalista: aquelas que detém os meios de produção e aquelas que dependem exclusivamente do trabalho para ganhar a vida.

Note-se ainda que, na burguesia, não se incluem os profissionais liberais (muitos em teletrabalho), por mais recibos verdes que passem, ou empresas em nome individual que possuam, já que a maior parte desses profissionais liberais nem o escritório detém (pagam renda ao senhorio).

Um profissional liberal, tipicamente, era enquadrado na classe média, dadas as suas maiores qualificações académicas e os rendimentos mais generosos que tendiam a auferir. Mas isso reporta-se a um tempo que já passou. Em Portugal, há 50 anos, ser arquitecto ou advogado correspondia a ter uma posição social interessante, com a autonomia de se ser profissional liberal (dono de si próprio) e com os rendimentos generosos que eram obtidos, dada a falta de concorrência, dada a falta de pessoas qualificadas nessas áreas.

Actualmente, arquitectos e advogados estão, genericamente, proletarizados. Pessoas que, muitas vezes, já não conseguem ser profissionais independentes, e vivem como assalariados a recibos verdes, sem direitos laborais, com baixíssimos salários. Tantos, acabam mesmo por desistir dessas áreas profissionais e empregam-se noutros sectores.

O mesmo se diga de médicos e enfermeiros, qualificações profissionais que, outrora, conferiam posições económicas muito favoráveis e, actualmente, se precarizaram e proletarizaram: veja-se a quantidade enorme de enfermeiros emigrados.

O que a massificação do ensino e a concorrência internacional trouxeram a um mercado laboral como português, foi uma absoluta precarização do trabalho intelectual.

O ensino superior, aliás, é um exemplo paradigmático de um mercado dual, em que há pessoas que estão confortavelmente instaladas em universidades públicas, com bons contratos e com total estabilidade laboral, enquanto outros, pouco mais novos, não conseguiram aceder a essas oportunidades e se vêem hoje enredados em contratos precários, em bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento, ou a dar aulas em universidades privadas por metade do salário e com contratos precários. O ensino superior, também ele, se precarizou.A reacção forte de crítica, que surgiu nas redes sociais, à proposta de SP, é bem demonstrativa de como as pessoas não se reviram na classificação de “burgueses do teletrabalho”, nem sequer privilegiados do sector dos serviços.

A grande maioria das pessoas que trabalham nos serviços em Portugal é proletária, a grande maioria das pessoas que, outrora, cabiam na classe média, hoje, estão proletarizadas.

Seria completamente injusto pedir a essas pessoas uma contribuição adicional para acorrer a uma crise, quando existem, sim, os verdadeiros burgueses do mundo virtual – pense-se nos donos do Facebook, da Google ou do Zoom, que estão a lucrar imensamente com esta crise; ou pense-se nos investidores dos mercados financeiros (que continuam a bater recordes de capitalização).

Se há proposta que faria sentido, mais do que nunca, é taxar os investimentos em bolsa, a especulação financeira e as grandes empresas da internet, que abusam do seu poder de mercado para retirar dividendos extraordinários, mesmo em tempos de pandemia.

Aliás, essa discussão já estava a ser tida antes da pandemia, por causa do aproveitamento de conteúdos que empresas como a Google ou Facebook fazem, sem nada contribuírem para isso, e que, recentemente, a Austrália está a tentar corrigir impondo um imposto a essas empresas. Mas, depois, já sabemos, o poder negocial dessas mesmas empresas, desses burgueses, é tal que, mesmo Estados têm muita dificuldade em competir à mesa das negociações com essas entidades de poder supranacional.

Numa altura de dificuldade e de polarização como a que estamos a atravessar, convém acertar o alvo. Vir dizer que quem deve pagar a crise é uma suposta classe média, que quase já não existe (ainda para mais chamando-a de burguesa), é dar um tiro ao lado.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 1 de Março de 2021


Por uma produção amiga da felicidade

"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos...