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Wednesday, February 2, 2022

Por uma produção amiga da felicidade

"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos explica como fazer crescer as economias. A verdade é que os autores clássicos entendiam que essa função da Economia só fazia sentido se o crescimento económico aumentasse a felicidade dos povos. Ao longo do tempo, porém, essa importante ressalva foi esquecida, principalmente durante o séc. XX, com a deriva neoclássica e a tentativa de fazer da Economia uma ciência exacta. De tal forma foi assim que se chegou ao fim do século passado com a ideia de que o crescimento económico, inexoravelmente, trazia a felicidade dos povos. Mais, com o advento do indicador estatístico PIB e sua utilização à escala global, o crescimento económico, assim medido, passou a ser a principal variável da política: os políticos dos diferentes países passaram a aferir o sucesso das suas propostas e políticas pelo impacto que tinham no PIB. Implícita estava a ideia de que, quanto mais crescermos, mais bem-estar haverá. Paradoxalmente, e similar ao que sucedeu com os clássicos, Simon Kuznets, o criador do PIB, disse que esse não era um indicador de bem-estar nacional. Mas essas palavras foram esquecidas. De tal forma tudo isto é assim que, hoje, em Portugal, nos debates televisivos entre os candidatos às legislativas de 30 de Janeiro, um dos principais temas foi a questão do crescimento económico. Que Portugal está estagnado desde o início do milénio, e que tudo se tem que fazer para inverter essa situação. Discutem-se as culpas, segmentam-se os períodos temporais (onde se cresceu e decresceu), e argumentam-se soluções. Para a direita, a solução é simples: baixar impostos e mercantilizar os bens e serviços públicos, que o mercado põe Portugal a crescer. Para o PS, o problema foi a pandemia, caso contrário, Portugal estaria a crescer bem, graças às políticas do seu Governo. Para a esquerda, há a insistência no aumento dos salários, a importância do poder de compra e dos direitos laborais. Também se falou dos problemas ambientais, com o PAN e o Livre a demonstrarem-se focados na emergência climática. No meio de tudo isso, lá foram surgindo as palavras bem-estar e felicidade. Pela boca do PAN, surgiu mesmo o termo Economia da Felicidade (embora sem explicar o que é, e fazendo uma ligação abusiva à questão do Rendimento Básico Incondicional). O Livre falou de um “novo modelo de desenvolvimento”, mas não concretizou. A verdade é que, mais uma vez, não houve um debate profundo do tema do crescimento no quadro em que deve ser tido: em que medida pode o crescimento económico produzir felicidade? Esta é uma pergunta à qual vejo ser dada, sistematicamente, uma resposta leiga: quanto mais rico for o país, mais felizes são as pessoas. Logo, toca a pôr o país a crescer. Acontece que a resposta a esta pergunta não pode mais ficar entregue ao “achismo” dos que ignoram que há milhares de estudos científicos acerca do tema. E a resposta é clara: a relação entre crescimento e felicidade é positiva, mas não linear. Isso porque o rendimento tem utilidade marginal decrescente e porque há muitas outras variáveis, além do consumo de bens e serviços, que são determinantes da nossa felicidade e que são influenciadas (positiva e negativamente) pelos processos de crescimento económico. Logo, nem sempre é bom crescer. O único debate sério que podemos ter a este respeito é aquele que analisa que tipo de crescimento económico queremos ter, muito mais do que quanto crescimento queremos ter. Portugal viveu um dos seus mais gloriosos períodos de crescimento económico durante o Estado Novo. Porque não voltar à ditadura para crescer assim? (note-se que há muitos comentadores económicos que se queixam de como as eleições de quatro em quatro anos invalidam as transformações que eles acham fundamentais para pôr Portugal a crescer). China, Arábia Saudita ou Emirados Árabes Unidos são exemplos de nações que conseguem fortes crescimentos económicos profundamente desrespeitadores dos direitos humanos. Queremos o mesmo cá? O crescimento económico tem sempre que estar subordinado à felicidade, não o contrário. E a forma como nós o obtemos define o que é o instrumento e o que é o fim último. A neo-escravatura pode ser óptima para a produção, para o lucro e para o crescimento económico, mas é destruidora de felicidade e uma violação dos direitos humanos. A verdade é que passamos grande parte das nossas horas de vida a trabalhar, a produzir. E a forma como o fazemos é fundamental para a nossa felicidade. Aumentar a produção através da sobrecarga laboral, competitividade excessiva e precariedade, que é, hoje, tão comum, é uma forma de aumentar produto e consumo, mas de destruir felicidade (a pandemia do burnout já existia antes da Covid). Pensar seriamente sobre este tema obriga a uma quadratura do círculo: precisamos de atrair o investimento, mas precisamos de mais salários, menos horas de trabalho, mais produtividade e melhor distribuição da riqueza e do rendimento. Para isso, precisamos de técnicas de gestão de ponta nas organizações que promovam a autonomia, a participação, a criatividade e o florescimento humano. E de quadros legais que premeiem quem assim se comporta, e punam quem insiste nos produtivismos do séc. XIX e XX. Podemos começa, tudo isto, já. Não temos que ficar à espera dos “amanhãs que cantam” do crescimento económico. Tal qual Amartya Sen nos explica que a democracia tem que ser a base, e vir antes do crescimento económico, o respeito pela felicidade (na vida e no trabalho), tem que ser o ponto de partida. Depois, então, virá o crescimento económico que interessa."

Gabriel Leite Mota, PhD Economia da Felicidade, Prof. Auxiliar de Economia no ISSSP

Monday, July 12, 2021

TOMATE CHERRY SIM, NEO-ESCRAVATURA NÃO

Um dos argumentos utilizados na defesa da globalização económica é a ideia de que as empresas, ao procurarem maximizar a sua rentabilidade, acabam por beneficiar as pessoas que mais precisam de trabalho, livrando-as da pobreza.

Em concreto, as empresas dos países ricos, ao se deslocalizarem para os países mais pobres, acabariam por empregar as pessoas mais pobres, fazendo com que essas pessoas, e esses países, ficassem melhor economicamente.

Da mesma forma, quando se dão movimentos de migração de pessoas pobres em direcção aos países mais ricos, as empresas que operam em sectores de menores salários dariam emprego a essa mão-de-obra imigrante, que estaria disposta a trabalhar em condições, e por preços, que os trabalhadores nacionais não aceitam.
Para além disso, as pessoas dos países ricos beneficiariam destas dinâmicas, pois passariam a poder comprar bens e serviços a preços que, de outra forma, não conseguiriam.

Como sucede na maior parte dos argumentos demagógicos, há uma parte de verdade na explanação acima. De facto, quer a deslocalização das empresas dos países ricos para os países pobres, quer a migração de pessoas dos países pobres para os países ricos, têm permitido tirar algumas pessoas da pobreza absoluta, mas a um custo elevado. Esse custo materializa-se no desemprego provocado nos países mais desenvolvidos, na poluição que “emigra” para esses países pobres (mas que contamina o globo) e no retrocesso civilizacional que estas empresas acabam por pôr em prática, nomeadamente ao nível dos direitos laborais, na medida em que praticam salários de miséria, cargas horárias excessivas, precariedade, ausência de seguros de trabalho e baixíssimas condições de salubridade.

O argumento só seria verdadeiro se as empresas dos países desenvolvidos, ao deslocalizarem-se, empregassem as pessoas dos países mais pobres com salários decentes, com horários laborais de padrão ocidental (8 horas diárias, 40 horas por semana), férias pagas, seguros de doença e permitissem a existência de sindicatos. Para além disso, essas empresas teriam que respeitar, nos países pobres, as normativas ambientais que respeitam no ocidente. O mesmo se diga do aproveitamento da mão-de-obra imigrante nos países ricos, tantas vezes ilegal, que, na prática, cria um mercado de trabalho paralelo, sem direitos, uma autêntica exploração do desespero.

Em Portugal, a pandemia acabou por destapar vários exemplos de más práticas deste tipo, perpetradas por empresários do sector agrícola, que exploram populações imigrantes, e que ainda tiveram o desplante de se agarrarem a este tipo de demagogia: ouvir um representante dos proprietários das explorações agrícolas da Costa Vicentina (produtoras de frutos vermelhos e tomate Cherry) dizer que se não fossem eles a empregar estas populações imigrantes (a ganharem tão pouco e a viverem nas condições tão más em que vivem, leia-se), não seria possível o consumidor português ter acesso a tomate Cherry, é uma afronta.

Essas explorações agrícolas não têm que ser centros de exploração do desespero dos trabalhadores. Têm é que respeitar as leis nacionais, a dignidade do trabalho e, das duas, uma: ou baixam a sua taxa de lucro para pagarem decentemente aos trabalhadores e respeitarem os direitos laborais, ou sobem o preço do tomate Cherry, e logo vêem o que acontece à sua procura no mercado. Agora, argumentar que só é possível termos tomate Cherry à venda nos supermercados se se praticar esta neo-escravatura sobre as populações migrantes é um argumento miserável. E nem sequer é novo: era exactamente isso que os esclavagistas norte-americanos argumentavam antes da guerra civil, dizendo que as plantações de algodão não eram rentáveis senão com trabalho escravo. A história mostrou que, obviamente, esse argumento era mentiroso, e apenas protector desses péssimos “empresários”.

Se há alguém que está mal, e que tem que sair no meio desta história toda, são os empresários que não sabem ganhar dinheiro senão com neo-escravatura.


Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Público a 12 de Julho de 2021



Monday, June 14, 2021

AS PESSOAS QUE ODEIAM ABRIL


Tem sido tema de debate as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril, que agora conheceram o seu comissário. À direita, houve grande alarido pela escolha de Pedro Adão e Silva. Parece-me muito pouco interessante discutir os detalhes das comemorações, assim como a escolha que foi feita. Muito mais profundo é o debate acerca da reacção.

Na verdade, desde que a Iniciativa Liberal e o Chega ganharam representação parlamentar, as celebrações anuais do 25 de Abril têm sido objecto de ataque, seja à festa em si, seja à relevância da Revolução como evento benéfico para Portugal.

A Iniciativa Liberal expressa, essencialmente, o seu fascínio pelo 25 de Novembro, não aceitando dissociar a democracia que temos dessa data posterior. Já o Chega vai mais longe e diz que a República que emergiu do 25 de Abril (e do 25 de Novembro) é uma República podre e corrupta, e que temos que avançar para uma nova era.

No PSD e no CDS, que são partidos da fundação da democracia, as críticas tendem a não ser tão explícitas, embora existam há muito (só vocalizadas na autonomia madeirense, por Alberto João Jardim). Na prática, à medida que o tempo passa, fica cada vez mais fácil, para aqueles que nunca gostaram do 25 de Abril, criticá-lo.

É fundamental entender que o 25 de Abril não foi uma transição pacífica de um modelo político para outro. O 25 de Abril foi uma revolução, foi um golpe de Estado, um golpe militar praticado por jovens capitães (não por Marechais instalados) que, só depois, obteve alargadíssimo apoio popular. Isso significa que o 25 de Abril foi a vitória de muitos, mas a derrota de outros.

Acontece que esses que perderam ainda existem, têm descendentes e nem sequer são poucos. Se somarmos todos os que estavam bem instalados no regime ditatorial (seja em funções públicas – de PIDE a parlamentares, passando por magistrados – seja nas grandes empresas amigas do regime), os que tinham vastas propriedades em território nacional, ou nos territórios ultramarinos, e todas as pessoas que perderam as suas posses, e até o seu país, com a descolonização, vamos apanhar muitíssimos perdedores de Abril.

Há muitos portugueses que ficaram pior depois desse dia. É entre essas pessoas que mais encontramos aqueles que nunca gostaram da data, nunca a celebraram, mas foram mantendo o seu ressentimento mais escondido. À medida que o tempo passa, e o “ar do regime” vai mudando, esses ressabiamentos ficam mais livres para emergir.

De facto, é nestes últimos tempos que temos visto muita gente ligada aos perdedores de Abril a aproveitarem tudo para minimizar os ganhos da Revolução, argumentando que a Revolução conduziu a um regime democrático, mas corrupto e pobre, ou tentando suavizar o fascismo com narrativas de que, afinal, o fascismo nem era assim tão mau, que até alfabetizou as crianças e fez o PIB convergir com a Europa.

O 25 de Abril fez-se para acabar com a guerra colonial (a morte de muitos jovens e o sofrimento vão de muitas famílias) e implantar uma democracia liberal, e teve o apoio popular imediato porque o regime estava podre, pobre e era imbecil.

Aliás, comparando a evolução do desenvolvimento humano de Portugal, durante a ditadura e em democracia, torna-se cristalino o quanto a ditadura foi má para a esmagadora maioria dos portugueses, e a democracia benéfica para a maioria, nomeadamente para os mais pobres e para uma classe média que, entretanto, se formou.

Mas há aqueles que tinham beneficiado mais se o regime tivesse continuado ditatorial e tivesse havido uma transição gradual para um regime de democracia musculada (que muito agradaria aos que odeiam Abril).

Se é verdade que muitos donos de grandes empresas do Estado Novo recuperaram o seu poder a partir dos anos 80/90 (a tempo de perpetuarem a nossa fragilidade económica – veja-se o caso de Ricardo Salgado e da família Espírito Santo), outros há que não conseguiram tal recuperação, pelo que estariam melhor se nunca tivesse existido o 25 de Abril.

Quando se pretende celebrar os 50 anos do 25 de Abril, obviamente, está-se a celebrar o regime que existe, o Portugal que existe, a democracia que existe e, sim, os que venceram com Abril (que são a grande maioria dos portugueses). Não é, portanto, de espantar que os que perderam não sejam grandes fãs da festa.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 14 de Junho de 2021

Wednesday, April 21, 2021

O FIM DO FUTEBOL?

O debate que se gerou à volta do anúncio da criação de uma Superliga no futebol europeu (que, entretanto, já se percebeu que não vai ter condições para avançar, pelo menos para já), levantou questões interessantes relativamente à natureza do desporto, à sua relação com o mundo empresarial e aos desafios do futuro.

No programa “É ou não é?” da RTP, o director do gabinete de scouting do Shakhtar Donetsk, o português José Boto, fez uma leitura mais abrangente do problema do futebol, em que punha como principal desafio a sustentação da prática infantil e juvenil, e não tanto a criação desta ou de qualquer outra Superliga. Segundo Boto, um dos principais problemas para o futebol foi a paragem dos escalões de formação (por causa da pandemia), sem que se saibam ainda quais os impactos futuros: será esse tempo perdido recuperável, quer para jovens que estavam em formação, quer para novas entradas? Este é um problema que já existia (a produção de talentos), mas que a pandemia veio agravar.

Ao mesmo tempo, Florentino Pérez, numa entrevista à televisão, em que explicava o porquê de ter aderido ao projecto da Superliga, aludia às transformações geracionais e à desmotivação que muitos jovens têm hoje para ver jogos de futebol, nomeadamente para ver um jogo de futebol do princípio ao fim.

De facto, a geração tik-tok tem um tempo de atenção muito curto e está cada vez mais ligada ao mundo virtual. Ora, isso é incompatível com a dedicação ao treino de futebol ou, simplesmente, à assistência, quer ao vivo, quer através da televisão, a jogos completos.

A verdade é que o futebol, por ser muito agarrado às regras originais, tem mantido uma forma de jogo que é pouco espectacular. Se pensarmos bem, não tem cabimento um jogo, cujo objectivo é marcar golos, em que esse evento ocorre apenas uma, duas ou três vezes, em média, por jogo. Mais, no futebol é possível um jogo terminar com o resultado de 0 a 0, mostrando que, durante os 90 minutos, nenhuma das equipas foi capaz de concretizar o objectivo. Não há nenhum outro jogo, individual ou colectivo, onde tal suceda. Mesmo os remates enquadrados com a baliza são poucos durante um jogo típico. Costuma até acontecerem mais remates desenquadrados. Se fizéssemos a comparação com o basquete, um remate desenquadrado seria um “airball”, que é considerado um lance inadmissível num profissional. Já no futebol profissional de mais alto nível, o que mais se vê são remates que nem na baliza acertam. De facto, o futebol é um jogo muito táctico, onde as defesas têm muito maior preponderância do que os ataques, o que tira espectacularidade.

Mas a verdade é que as pessoas gostam do futebol mais pela clubite do que pelo espectáculo. As pessoas querem é que o seu clube ganhe, mesmo se jogar “feio”, mais do que assistirem a um espectáculo de elevada qualidade. O mesmo se diga das competições entre nações, em que as pessoas querem é que o seu país vença, ficando agarradas aos ecrãs a torcer pela vitória, não por um bom espectáculo.

Acontece que, com as mudanças geracionais, há, de facto, o risco de um progressivo afastamento das camadas mais jovens, quer da prática desportiva, quer da visualização dos jogos, o que compromete tanto a qualidade dos futuros futebolistas, como a sobrevivência do negócio (porque sem audiências não há receitas).

O futebol, que é uma actividade centenária, passou por muitas transformações ao longo do tempo, desde o momento em que era um desporto praticado só por amadores, até ao momento em que se profissionalizou e, mais recentemente, sofreu a transformação empresarial.

É verdade que estas transformações, nomeadamente o processo de empresarialização, ainda estão incompletas. E esse ficar no meio da ponte, em que os clubes amadores de formação fornecem as superestrelas para as empresas detentoras dos clubes de maior prestígio, e não recebem a compensação justa por tal, torna o processo iníquo e insustentável. Isso e a mudança geracional são os principais desafios de futebol.

Os mais jovens estão a canalizar a sua atenção muito mais para os videojogos do que para os espectáculos desportivos. Aliás, o mercado fluorescente é o dos e-sports, onde os jovens passam a querer ser atletas de comando na mão e as audiências passam a estar na visualização desses e-sports, que já têm enorme implantação nos países asiáticos.

Acredito, portanto, que o futebol tem que fazer uma reflexão profunda se quiser sobreviver: por um lado, não pode tornar-se uma mera actividade empresarial, descurando todo o histórico dos cubes, a sua paixão e implantação de origem regional, ou a natureza amadora do futebol de formação. Por outro, tem que se tornar mais espectacular (com eventuais mudanças nas regras do jogo) e mais competitivo (não pode suceder, com sucede, que os ganhadores da Liga dos Campeões e das Ligas Nacionais sejam sempre os mesmos).

Assim, este anúncio gorado da Superliga deve ser visto com precaução e como uma oportunidade de transformação. Caso contrário, o futebol corre o risco de desaparecer.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 21 de Abril de 2021

Tuesday, April 20, 2021

CAPITALISMO NOS OUTROS É REFRESCO


Uma das características intrínsecas, e mais notáveis, do capitalismo é sua capacidade de expansão. Uma espécie de tendência imperialista, no sentido de ser capaz de se intrometer nas mais diversas áreas da vida individual e colectiva. Se é verdade que o capitalismo se iniciou nas actividades industriais, comerciais e profissionais, rapidamente se expandiu para todos os outros domínios, desde os culturais e artísticos, passando pelos desportivos, até à esfera mais íntima.

Não é por acaso que a nossa vida pessoal é, hoje, cada vez mais capitalista. Isto é, dominada por empresas e pela lógica capitalista da competição e do lucro. Isso é visível pelos sítios onde expressamos as nossas ideias (redes socias privadas), onde contactamos com os nossos amigos (outras vez as redes socias e diferentes espaços privados de diversão), até aos sítios onde encontramos parceiros sexuais e afectivos (os Tinders desta vida).

Vem isto a propósito da criação de uma Superliga europeia de futebol, uma iniciativa de uns quantos clubes mais ricos da Europa, que pretendem criar uma liga fechada, que seja a reunião dos grandes clubes, dos grandes jogadores e das grandes receitas. Esta Superliga mais não é do que o corolário lógico da aplicação da dinâmica capitalista à esfera do futebol profissional. Aliás, o que tem acontecido ao futebol, desde a sua criação enquanto desporto amador até à contemporânea empresarialização, mais não é do que uma progressiva transformação capitalista (quantos clubes já não pertencem aos associados, mas apenas a multimilionários estrangeiros, tantas vezes com riqueza de origem duvidosa?).

Mesmo o actual formato da Liga dos Campeões já se aproxima de uma Superliga europeia (as ligas mais ricas estão sobre-representadas e só os mais ricos ganham, com a excepção do Futebol Clube do Porto em 2004). Aquilo que estes clubes, agora, decidiram fazer foi dar o (pequeno) passo lógico seguinte, no sentido de tornar essa competição o mais rentável possível, à luz do que sucede nas grandes competições desportivas norte-americanas, que há muito seguem a lógica empresarial (desde a NBA até à UFC).

No meio de tudo isto, é engraçadíssimo ver muitos que tanto pugnam pelo aprofundamento do papel das empresas, pela retracção do Estado e pelas virtudes da livre iniciativa privada, rechaçar, com repugnância, esta iniciativa empresarial. E fazê-lo, argumentando que os clubes menos ricos vão ser prejudicados, que os adeptos vão ser prejudicados, que o futebol, em geral, vai ser prejudicado. Como assim? Não terá esta Superliga jogos interessantíssimos? Não atrairá, esta Superliga, milhões de telespectadores? Se esta Superliga for um sucesso financeiro, será o mercado a dizer que as pessoas gostam dessa Superliga, preferem essa Superliga.

O capitalismo é assim, os mercados livres são assim: o consumidor, perante as alternativas oferecidas, escolhe, e com o seu comportamento (neste caso, a audiência televisiva destes jogos) determina o sucesso dos negócios.

E sim, para o capitalismo europeu e mundial, clubes como o Futebol Clube do Porto, o Benfica ou o Sporting são irrelevantes. Se desaparecerem, quem se importa? Os milhões de espectadores europeus e mundiais (que esta liga está feita a pensar na assistência mundial), que querem jogos de alta qualidade, não se interessam com tais minudências como os clubes portugueses.

Sempre achei que o desporto e o futebol dão exemplos interessantes para mostrar alguns efeitos de modelos político-económicos. Um paradigma é a NBA, que acaba por ser muito mais competitiva do que a Liga dos Campeões, por causa da imposição de regras socialistas como as do draft e dos tectos salariais. Agora, esta Superliga, um passo lógico no capitalismo futebolístico, parece apanhar alguns em contrapé.

Costuma-se dizer “com o mal dos outros posso eu bem”. No caso do capitalismo, só quando bate à porta dos nossos interesses é que nos lembramos dos seus perigos. De facto, é muito bom quando podemos desfrutar de viagens de avião a 10 €. Já não é nada bom quando somos pilotos dessas companhias e ganhamos salários muito menores do que o das companhias não “low cost” (https://www.publico.pt/2015/01/06/p3/cronica/low-cost-1822290). É muito bom irmos buscar produtos às “lojas do 1€” quando não somos nós a trabalhar 16 horas numa sweatshop num qualquer país subdesenvolvido.

Até os principais actores do capitalismo, os empresários, adoram navegar nos “oceanos azuis” (quando se é monopolista ou oligopolista) e fogem dos “oceanos vermelhos” (da concorrência muito forte e das margens de lucro irrisórias).

Os canais de TV em sinal aberto em Portugal, são um exemplo paradigmático. As guerras constantes entre a TVI e a SIC para ver quem fica líder, logo com mais lucros, operam-se num mercado duopolista, um privilégio concedido pelo Estado. Se falarmos com os donos da TVI e da SIC sobre concorrência e livre iniciativa empresarial, eles vão proclamar as habituais loas ao sistema de mercado. Porém, se defendermos a concessão de mais licenças para canais em sinal aberto, cairão sobre nós como leões. Lá esta: a concorrência nos outros é bonito, quando nos toca a nós…

Confesso que ainda não vi as reacções da Iniciativa Liberal, dos seus acólitos e de todos os pregadores da iniciativa privada acerca desta Superliga. Mas a única coisa que podem fazer, se tiverem honestidade intelectual, é aplaudi-la. Todos os outros, os que sempre perceberam os perigos que o mercado não regulado acarreta para a vida social, têm toda a legitimidade para criticar esta Superliga.

Esta Superliga é apenas mais um exemplo do funcionamento normal do capitalismo e dos mercados: a tendência para a formação de monopólios e oligopólios, em que vence quem tem muito dinheiro e poder, e é esmagado quem tem menos. Ou seja, o contrário da meritocracia, da defesa da dignidade social e da igualdade de oportunidades.

Quem está contra esta Superliga por questões como a justiça, a igualdade de oportunidades, a meritocracia ou a não subjugação de todos os valores à ganância, é boa altura para abrir os olhos e perceber o mundo em que vivemos e para onde nos dirigimos.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 20 de Abril de 2021

Wednesday, April 7, 2021

HABITAÇÃO: EMPURRAR A OFERTA E A COMPETIÇÃO

Uma das dimensões que funciona mal em Portugal é o mercado imobiliário, nomeadamente no que toca à satisfação das necessidades habitacionais das classes média e baixa. Em particular nas maiores cidades, onde estão concentrados a grande parte dos empregos, vive-se um desequilíbrio crónico de excesso de procura, tanto no mercado de compra, como no mercado de arrendamento. Essa situação provoca um aumento de preços (ex: 55% em Lisboa e 66% no Porto, entre 2017 e 2020) que tem gerado uma gentrificação iníqua.

Ao contrário do que sucede nos mercados competitivos, em que um excesso de procura provoca um forte aumento da oferta, não deixando os preços subir e satisfazendo quem procura, as características próprias do sector imobiliário impedem esse ajustamento da oferta. Desde os Planos Directores Municipais, à concentração dos imóveis em relativamente poucos proprietários, até à escolha pela especulação (não pôr os imóveis no mercado na expectativa de que os preços continuem a subir), tudo torna este mercado altamente ineficiente.

No que diz respeito ao arrendamento, ainda se fazem sentir as políticas salazaristas (mantidas durante a democracia, só recentemente alteradas) de congelamento de rendas, que bloquearam este mercado durante décadas.

Já a crise do subprime fez com que muitos construtores abandonassem o mercado da construção habitacional, havendo uma quase estagnação na construção de casas novas nos principais centros urbanos nos últimos 12 anos.

Tudo isto faz com que um casal que viva só dos seus salários, sem heranças ou ajudas familiares, tenha imensas dificuldades em encontrar habitação condigna, a preços sustentáveis, nas cidades (para compra ou arrendamento).

A consequência tem sido a expulsão dessas pessoas das cidades onde cresceram e trabalham, forçadas a emigrar para a periferia, com assinaláveis perdas na qualidade de vida: horrorosas deslocações casa-trabalho-casa – que são dos momentos mais stressantes na vida das pessoas, os estudos comprovam-no; afastamento da família e dos grupos de lazer – com perdas ao nível dos bens relacionais; residência em locais com baixas amenidades, o que diminui a qualidade de vida (as câmaras mais pobres não têm o capital, nem o interesse, em criar essas amenidades); aproximação a guetos com problemas criminais, gerando-se sentimentos de insegurança.

Perante este problema, importa encontrar soluções. Uns têm defendido políticas de preços máximos, para se garantir o acesso à habitação a preços compatíveis com os rendimentos. Sucede que essa estratégia está votada ao fracasso, pois, potencialmente, baixa a oferta (piorando o problema) e até cria a injustiça de só beneficiar quem tiver a sorte de conseguir as poucas habitações disponíveis a esses preços.

Sabendo-se que o problema está na baixa oferta, temos que a estimular. Assim, proponho o seguinte:

1. Imposto de inutilização em função do custo de oportunidade, da localização e do excesso da procura. Não através do IMI (que financia as Câmaras, é muito pequeno e é calculado em função dos baixos valores tributários) mas de um novo imposto cobrado pela AT e destinado ao aumento da oferta no mercado imobiliário (seja por construção pública, seja no incentivo à construção privada). Este imposto iria fazer com que quem tem imóveis parados ou abandonados, passasse a ter um incentivo forte a pô-los no mercado, pois que se vendesse ou arrendasse deixava de pagar este imposto. Este imposto teria que ser substancial. Quem escolhesse manter os imóveis parados por motivos especulativos, sentimentais, ou outros, estava no seu direito, mas contribuía com este imposto para a sociedade conseguir responder à falta de oferta.

2. Liberalização do PDM e agilização dos procedimentos de licenciamento. Um dos grandes entraves à construção de novas habitações são as regras do PDM que, tantas vezes, geram mais-valias ou luxos injustificados para os proprietários de certas áreas urbanas. No Porto, por exemplo, se há muita gente a querer morar na Foz, o que há a fazer é liberalizar o PDM da Foz, permitindo-se a construção de prédios altos nessas freguesias (obviamente, isto terá a oposição feroz dos proprietários das moradias de luxo, que não querem ter como vizinho um prédio de 7 andares…). Um PDM é, sempre, um instrumento estatal de distribuição de benefícios: o luxo de uns, é a gentrificação de outros. Se liberalizarmos, o mercado equilibrará isso. Quanto ao licenciamento, a espera absurda de anos por um parecer favorável a uma obra de reabilitação ou de construção, é incompatível com a necessidade imperiosa de aumentar a oferta.

3. Contrabalançar, pela oferta, os incentivos estatais à procura ("vistos gold”, acordos de não tributação, apoios ao turismo). Nos últimos anos, as cidades do Porto e de Lisboa têm assistido a uma explosão do turismo e da procura imobiliária internacional, que tem feito disparar os preços dos imóveis. Quer pela transformação de fogos habitacionais em hotéis ou alojamento local, quer pela compra de imóveis nessas cidades por brasileiros, suecos, franceses, chineses, ou outros estrangeiros ricos que vêm à procura de benefícios fiscais e segurança urbana, o mercado desequilibrou-se, tornando-se impraticável para quem vive com salários nacionais. Das duas uma, ou se acaba com esses privilégios para os internacionais (que prejudicam o cidadão mediano português), ou se cria oferta habitacional em massa que faça baixar os preços. Pode-se, por exemplo, subsidiar certo tipo de construção nova, ou de reabilitação, que não seja para o turismo, nem para compradores que beneficiam dos programas mencionados.

4. Estado a construir habitação. A cidade do Porto é um paradigma da construção social por toda a cidade. Não há, praticamente, uma zona da cidade que não tenha um bairro social. Isso é muito positivo, porque não só dificulta a geração de mega guetos, como proporciona a convivência interclassista e o acesso aos espaços nobres a todos, o que é um imperativo de equidade. Acontece que essas construções foram feitas há muitos anos, e eram destinadas aos mais pobres. Agora, precisamos que o Estado também intervenha ao nível das classes médias. E o Estado pode fazer uso do seu património imobiliário para esse fim, convertendo o que tem em habitação para a classe média, colocando-a no mercado em condições competitivas.

Todas estas medidas promoveriam a justiça, a equidade, a sustentabilidade ambiental e a felicidade. É tempo de as pôr em marcha.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 7 de Abril de 2021

EM NOME DE CRISTO, DO COMUNISMO E DA CIVILIZAÇÃO

Nota prévia: debater ideologia só faz sentido usando a racionalidade e a lógica. Infelizmente, o que mais se vê são discursos fanáticos a propósito de política. Acredito que, no espaço público, temos a obrigação de desconstruir as argumentações falaciosas e inflamadas. Como defensor da social-democracia, escrevo este texto sem nenhum viés “clubístico”.

Recentemente foi tema de debate uma intervenção da deputada municipal de Lisboa do PPM, Aline Beuvink, em 2019, acerca das fomes que aconteceram na Ucrânia entre 1932 e 1933 do século passado. Nessa intervenção, que veio a terreiro no programa “O tabu” de Francisco Louçã, no seu “momento zen”, a deputada diz que, durante essas fomes, houve canibalismo, e que crianças teriam desaparecido por terem sido comidas pelas próprias famílias. Seria, até, por causa disso que teria nascido o mito de que os comunistas comiam criancinhas.

Por ter entendido que Francisco Louçã gozou com o Holodomor e menosprezou as atrocidades cometidas pelos regimes comunistas, a tribo lusa direitista caiu em cima dele.

É já antiga a disputa histórica sobre quem matou mais: o capitalismo, o comunismo, o nazismo, o colonialismo, o cristianismo ou o islamismo, numa patética “comparação de pilinhas” da mortandade. Há uns anos, até se publicaram os “Livros Negros”, um atrás do outro, do comunismo e do capitalismo, cada um reivindicando o respectivo regime como o mais nefasto da história.

Essas investigações, se forem feitas com rigor histórico, são muito úteis para percebermos as consequências negativas de qualquer construção social ou económica. Mas perdem todo o interesse se forem utilizadas apenas como armas de arremesso contra uma determinada ideologia. Logo à cabeça, porque fica muito difícil fazer-se uma avaliação de causa e efeito entre um determinado sistema económico e social complexo (como comunismo ou capitalismo) e as mortes ocorridas durante a vigência desses sistemas. E, também, porque há o risco de cegueira intelectual, tomando-se as mortes do outro sistema como uma verdade insofismável, e rejeitando qualquer morte como sendo causa directa do sistema que defendemos.

Infelizmente, foi muito isso que vimos nos textos de opinião da direita publicados a propósito desse “momento zen”, acusando Louçã de ser um branqueador do comunismo ou um negacionista do Holodomor. Acontece que Louçã não fez nenhuma negação do Holodomor, apenas criticou as pessoas que acreditam que os comunistas comem criancinhas ou justificam essa mitologia. É que usar este episódio histórico como prova insofismável de que o comunismo é diabólico, é o horror, é de uma indigência intelectual insuportável. Até o silogismo: Premissa 1. Houve uma fome na Ucrânia onde os ucranianos comeram crianças por desespero; Premissa 2. Estaline foi o responsável; Conclusão: “por isso se diz que os comunistas comem crianças ao pequeno-almoço”, falha todas as regras da lógica. Aliás, a respeito da história do comunismo, o que mais se vê é uma confusão entre o discutir a ideologia e a análise das suas tentativas de implementação.

Já aqui escrevi que o comunismo ainda não existiu. Apenas existiram sistemas político-económicos que, usando a palavra comunismo, criaram realidades, muitas vezes, opostas ao ideal comunista. Aquilo que falhou nos ditos países comunistas não foi a aplicação do comunismo. O que falhou foram os sistemas de planificação central da economia (que tendem a funcionar muito mal), assim como os regimes políticos de partido único, autoritários, que esmagaram muitas liberdades individuais.

Mais, o comunismo nem sequer precisa de ser marxista: a ideia comunista é mais antiga do que Marx (vejam-se os socialismos utópicos). Também aqui já falei de Agostinho da Silva e de como ele invoca os religiosos portugueses do século XIII que anteviam um tempo da gratuidade da vida em que, usando uma linguagem comunista, “cada um faz o que pode e recebe o que precisa”.

É, assim, imbecil achar-se que o comunismo leva, inevitavelmente, a fomes, a canibalismo, a polícias políticas, a ditaduras ou quejandas barbáries. Aliás, é muito interessante verificar como alguns países da Europa de Leste, que hoje são capitalistas, mantêm uma estrutura política pouco democrática, demonstrando que essas nações parecem, culturalmente, gostar do autoritarismo (quando eram monarquias, repúblicas socialistas, ou agora, que são capitalistas), sendo a Rússia o paradigma máximo.

Para se ter uma conversa séria acerca destes temas é fundamental fazer uma distinção clara entre o que é um programa ideológico e o que são os aproveitamentos práticos dessas ideologias. A história das ideias está cheia de distorções daquilo que alguém, ou alguns, idealizaram e o que outros executaram.

O cristianismo como ideário exposto no Novo Testamento (que é muito mais antigo do que o capitalismo ou o comunismo), é uma pregação da bondade, do perdão, da fraternidade e da igualdade. Na prática, são milhões os mortos em nome de Deus, em nome de Cristo. Que culpa tem Cristo de seguidores que usaram as suas palavras para perpetrar o mal? Cristo nunca disse para queimar mulheres em fogueiras, nunca disse para violar crianças, nunca disse para se começarem guerras sangrentas (ditas santas), nem para criar uma Inquisição.

Mas alguns, ditos seguidores de Cristo (e até líderes de igrejas cristãs), especializaram-se nessas bestialidades. A culpa não é do Novo Testamento, nem do ideário cristão. A culpa é das aplicações abusivas, contranatura, desses ideais.

Com o comunismo passa-se, exactamente, o mesmo. Um ideal de busca da comunhão e da libertação da exploração dos seres humanos, uns sobre os outros, que foi transformado, na prática, em ditaduras militares absolutistas que cometeram todo o tipo de violências.

O comunismo, enquanto ideal, não tem culpa nenhuma disso, nem há nada no comunismo que obrigue a que a prática seja como foi. E as experiências que existiram não chegam como invalidação da teoria: primeiro, porque desrespeitaram a teoria; segundo, porque nem sequer foram assim tantas experiências, durante tanto tempo. O cristianismo, por exemplo, leva 2000 anos de experiências e ainda se continuam a cometer muitas atrocidades em seu nome e ainda não se conseguiu criar a “fraternidade entre humanos” prometida.

Igual raciocínio se pode fazer relativamente à Civilização. As concepções europeias de progresso foram espalhadas pelo mundo à lei da espada e da bala. Sob pretexto da civilização, dizimaram-se povos e culturas, escravizaram-se pessoas, destruíram-se patrimónios históricos e deu-se origem a inúmeras guerras.

Mais uma vez, a ideia de progresso e de civilização é boa. Nomeadamente, os ideais iluministas, utilitaristas e humanistas que emanaram da Europa têm mérito para serem globalizados. Só que não podem ser espalhados à força. E se, no passado, era a Europa, na sua vertente imperial e colonialista, que se encarregava de “espalhar o progresso”, o século XX marcou a transição desse poder para os Estados Unidos da América, que se intrometem em todo o lado, supostamente na defesa da liberdade e da democracia. Quantos têm morrido em nome disso?

Não podemos desacreditar as ideias por más concretizações. No caso do comunismo, uma crítica legítima é a que se faz à centralização estatal da economia. Mas, mesmo aí, é preciso ser cuidadoso. É que se a planificação central do século XX não resultou, foi por questões de gestão de informação, nomeadamente pela vertente tácita, contextual e subjectiva das preferências individuais, que tornam essa centralização pouco fiável. Mas nada impede que futuros sistemas de planificação central, baseados em inteligência artificial, não venham a ser mais eficazes do que os actuais sistemas de mercado (como também já aqui aludi).

Acima de tudo, tem que ficar claro que, para se discutirem ideias, não podemos recorrer a caricaturas. E justificar que se diga que os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço porque houve uma fome nos anos 1930 na Ucrânia, na qual Estaline tem responsabilidades, é uma falácia argumentativa indefensável.

Quem quiser ser sério numa discussão sobre estes temas tem que se ater às ideias, não às suas concretizações deturpadas. Uma pessoa pode, do ponto de vista ideológico, ser cristã, comunista e defensora da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, tecer as mais duras críticas às igrejas cristãs, aos partidos e governos comunistas ou aos males que a imposição da civilização tem causado. Uma coisa não contraria a outra, bem pelo contrário. Se estivermos atentos e formos críticos quanto às más utilizações das ideias, mais seremos capazes de nos bater por transformações que façam uma aplicação justa e fiel dos ideais.

Um bom cristão será o primeiro a condenar a pedofilia no sacerdócio ou os negócios escuros na Santa Sé, assim como um bom comunista terá que ser o primeiro a denunciar o regime norte-coreano como um despotismo absolutista anticomunista, ou, ainda, um bom ocidental capitalista deverá insurgir-se contra a ingerência militar em países pobres (para controlar activos estratégicos) sob a capa da defesa da liberdade dos povos invadidos.

O lema deve ser: não invoques o nome de Cristo, do Comunismo ou da Civilização em vão.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 7 de Abril de 2021

Friday, March 26, 2021

O SUFOCANTE ASSÉDIO CONSUMISTA

Uma das palavras que os defensores do sistema de mercado capitalista mais gostam de evocar é “liberdade”. Segundo as teses desses defensores, o sistema capitalista será o mais livre dos sistemas económicos, na medida em que as pessoas podem escolher o que consumir (e o que produzir se se tornarem empresárias).

Não querendo entrar aqui nas complexidades e diversidades associadas ao sistema capitalista de mercado (que pode conviver com democracias, com ditaduras e com diferentes enquadramentos culturais ou institucionais), é muito importante desmistificar a questão da liberdade: primeiro, porque não é fácil a qualquer pessoa conseguir virar empresária (por inúmeros entraves de acesso ao capital); segundo, porque a nossa liberdade de consumo é muito ilusória. Se é certo que, no capitalismo, costumava haver abundância de escolha de bens e serviços, há, também, uma pressão intensa para o consumo.

Mais, a própria gama de escolha torna-se, muitas vezes, excessiva, na medida em que dificulta o processo de decisão, gera a ansiedade da escolha e dissonâncias cognitivas, para além de aumentar o custo de oportunidade da decisão. E, como somos levados a consumir mais do que seria óptimo para nós, mais do que maximizaria a nossa felicidade, a suposta liberdade de consumir ou não consumir, a liberdade de escolher é, na verdade, uma ilusão.

O que acontece, é que as empresas competem entre si para ver quem consegue vender mais. E competem criando inovação e pressão sobre o consumidor. Essa pressão é desenhada, de raiz, pelos responsáveis do marketing, que pensam todo o processo, desde a criação dos bens e serviços até à sua entrega aos consumidores. E os departamentos de marketing contam com contributos de especialistas da cognição e do comportamento humano, o que torna as empresas capazes de actuar sobre os mecanismos de decisão dos consumidores, levando-os a consumir ao máximo.

O caso das redes sociais é paradigmático, uma vez que elas estão estruturadas de forma a viciar os utilizadores. Não por acaso, muitos de nós estamos dependentes das redes sociais, mesmo que não nos apercebamos (e até já há clínicas de desintoxicação dessa dependência). E o que é válido para as redes sociais, é válido para quase todos os consumos que realizamos. Os centros comerciais, por exemplo, são templos de consumo onde as pessoas entram para ver e consumir, e são pressionadas a consumir.

Aliás, a pressão para o consumo é contínua: basta abrirmos os olhos, ou escutarmos os sons, para sermos invadidos pela pressão consumista (por exemplo, quando vemos carros novos na rua, quando vemos produtos na publicidade ou nas montras, quando ouvimos referências às marcas, quando observamos os bens possuídos pelas pessoas dos nossos grupos de referência ou quando acedemos à internet, nos computadores ou nos telemóveis, ou vemos televisão e ouvimos rádio).

Também não por acaso, em alguns países existem leis que restringem a publicidade, nomeadamente a dirigida a menores, por se entender que as crianças são especialmente susceptíveis às influências da dita. Mas não nos enganemos, mesmo o mais consciente dos adultos não é imune ao assédio consumista. Esse assédio é de tal forma eficaz que faz do consumo a centralidade da nossa vida. A comparação que fiz entre um centro comercial e os templos não foi inocente. No capitalismo, os valores passam a ser as posses materiais, a ideia do se ser através do que se tem.

O problema, é que isso gera ansiedade desnecessária nas pessoas. Ansiedade, porque os novos produtos desvalorizam os que já temos (que passam a obsoletos ou a fora de moda) ou porque nos obrigam a ter que acompanhar os novos paradigmas tecnológicos, assim alimentando a incessante máquina de produção e de consumo.

Isto não significa que a produção e o consumo sejam, em si mesmo, um mal. Significa que não podem é ser tidos como bens absolutos, e que temos que ter um olhar crítico sobre esta realidade. Em particular, temos de reconhecer os efeitos negativos que a pressão consumista tem sobre cada um de nós e sobre as sociedades: é que não há liberdade, felicidade e sustentabilidade quando somos constantemente assediados para consumir.

Felizmente, já há quem esteja bastante ciente deste problema, desde os economistas comportamentais até aos economistas da felicidade, passando pelos criadores de políticas públicas de nudging, todos reconhecendo que é preciso actuar a dois níveis: 1. limitar a liberdade de assédio consumista; 2. criar mecanismos de orientação das pessoas para o seu próprio bem-estar.

O nudging (ou paternalismo liberal, como alguns lhe chamam) faz isso, quer a nível das políticas públicas, quer a nível de políticas organizacionais, sempre no sentido de encaminhar as pessoas na direcção correcta para o seu bem-estar. Na prática, funciona como uma espécie de contra-assédio, um equilibrador de assédios, que promove o bem-estar sustentável.

É errado argumentar que há liberdade de escolha, que existe a soberania do consumidor (tão propalada nas aulas de economia) perante tal capacidade de manipulação nas mãos das empresas. E acreditar que a concorrência empresarial combate esses abusos, esse poder, é pueril. A realidade demonstra-nos que abundam os casos de fraca concorrência e que vivemos num sobreconsumo que está a destruir o planeta e a minar o nosso bem-estar. Se queremos salvar o planeta e maximizar a nossa felicidade, temos que refrear esse assédio e fazer uma aposta explícita no bem-estar.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 26 de Março de 2021


Thursday, March 25, 2021

O COMUNISMO AGOSTINIANO DO ESPÍRITO SANTO

Um dos grandes pensadores portugueses do século XX foi Agostinho da Silva.

Nos anos 90 desse século, regressado a Portugal depois de longa estadia no Brasil, onde teve grande impacto académico e público, Agostinho da Silva surpreendeu os portugueses com a sua filosofia na ponta da língua, particularmente durante uma série de entrevistas que deu para a RTP com o título de “Conversas vadias”, em que diferentes entrevistadores iam tentar decifrar e explorar o pensamento do filósofo. Estas entrevistas (disponíveis para visualização na internet) são um testemunho brilhante do seu pensamento, ao mesmo tempo profundo e provocador.

À época, muitos criticavam-no por entenderem que ele se contradizia, por ter o hábito de não ser absolutamente definitivo ou categórico nas suas respostas e, muitas vezes, responder com perguntas às perguntas (aí, o que Agostinho da Silva estava a fazer era, tão-só, querer ser preciso e clarificar o que realmente estava a ser perguntado). Na prática, notou-se nestas entrevistas, muitas vezes, uma décalage de profundidade filosófica entre os perguntadores e o respondente, e a perplexidade dos entrevistadores tinha muito a ver com isso.

Muitas pessoas, por preguiça mental, gostam de encaixotar a realidade de uma forma simples, compartimentada. Aquilo que Agostinho da Silva fazia era desafiar esse encaixotamento, romper as regras estabelecidas e pensar mais além. As pessoas queriam catalogá-lo, ora de religioso, ora de agnóstico/ateu e Agostinho da Silva desconstruía este dualismo, falando do misticismo como algo a que, na verdade, não devíamos dar nome nenhum. Depois, uns queriam que ele se pronunciasse a favor da monarquia ou da república e, mais uma vez, as respostas desconcertavam, ao falar dos méritos da história de Portugal (monárquica), mas também exibindo pensamentos de pendor anarquista.

Uma das temáticas que mais confundia tantos os entrevistadores como os espectadores tinha a ver com o papel das escolas e das crianças.

Agostinho da Silva, um académico de profissão, defendia que as escolas deviam ser um espaço de liberdade, um espaço de criação e de encontro do ser humano com a sua própria natureza, não uma espécie de fábrica da produção de saberes. Já nessa altura, Agostinho da Silva defendia uma escola onde os alunos decidissem o que queriam aprender, e falava da escola contemporânea como uma instituição militar ao serviço da produção e da luta económica.

Por outro lado, Agostinho da Silva antevia para Portugal, e para a cultura portuguesa, um papel decisivo no futuro: o de ensinar os outros como brincar. Aliás, dizia que achava fantástico que povos como os japoneses, os americanos ou os alemães tivessem tanto foco no trabalho, quisessem tanto trabalhar. É que Agostinho da Silva previa que chegaria o tempo da gratuidade da vida, em que as máquinas já produziriam tudo o que o ser humano precisava para viver, tornando-o livre para ser o poema que estava destinado a ser.

Este tipo de linguagem, ora filosófica, ora poética, desconcertava muito os ouvintes, que não conseguiam encaixotá-lo nas tais ideias pré-concebidas: esquerda/direita, monarquia/república, conservadorismo/progressismo ou, até, estoicismo/hedonismo.

A verdade é que Agostinho da Silva dizia que ainda não tinha chegado o tempo de se conseguir essa liberdade total, mas que esse tinha que ser o caminho, e que esse seria o caminho. Invocava, inclusivamente, o pensamento de certos religiosos portugueses e italianos do século XIII que, nessa altura, escreveram sobre a “idade do Espírito Santo”.

Nas palavras do próprio: “… primeiro que as crianças crescessem tão livremente que sua imaginação, sua espontaneidade, sua capacidade de sonhar nunca se extinguisse e, um dia, fossem capazes de dirigir o mundo; segundo lugar, que a vida ficasse a ser gratuita para toda a gente. Estamos caminhando para isso, para essa capacidade de tornar a vida gratuita para toda a gente. Como consequência disso, diziam os portugueses, porque a criança cresce livremente, ninguém a impede de ser naturalmente o quê é e, por outro lado, a vida não lança sobre nós todas as durezas de combate que costuma lançar no quotidiano, então, aí, o crime desaparecerá do mundo. Acho que caminhamos para aí, podemos caminhar para isso. Não é alguma coisa utópica, senão no sentido de que ainda não existe actualmente.”

Provocatoriamente, dizia, depois, que ser progressista, hoje, era ser um conservador do século XIII, pois que, nessa altura, já esses religiosos aventavam que o bom futuro seria esse tempo pueril de liberdade. Muitos encarniçavam-se com estas ideias e diziam que esse tempo jamais ocorreria, que era impossível a gratuidade da vida, que era impossível uma escola em que se vai aprender o que se quer (e não o que se tem que aprender).

A verdade é que há cada vez mais condições para se pôr em prática esta espécie de “comunismo Agostiniano do Espírito Santo”, esta sociedade onde cada um nasce para ser o seu próprio poema, essa sociedade em que cada vez que morre um ser humano se diz “morreu um poema”.

Quando, hoje, se fala da substituição do trabalho humano pelas máquinas e pelas inteligências artificiais, se antevê um mundo onde seja cada vez mais difícil ter trabalho e da consequente necessidade de Rendimentos Básicos Incondicionais, estamos a falar exactamente do mesmo que Agostinho da Silva prognosticava: esse tempo onde as pessoas já nasciam reformadas e tinham que aprender a ocupar esse seu tempo com o lúdico.

É óbvio que tal transição nunca se fará da noite para o dia, mas está cada vez mais claro que caminhamos nessa direcção.

Agostinho da Silva fazia, até, referência à Ilha dos Amores de Camões como sendo uma metáfora para esse tempo, e não esquecia que, enquanto essa substituição do ser humano pela máquina não ocorresse, o ser humano estava condenado a ter que trabalhar, a ter que produzir e a ter que ser educado nesse sentido. Mas não confundia uma etapa com a meta. E sabia, perfeitamente, que a meta era a Ilha dos Amores, a meta era cada um ser o poema que nasceu para ser.

Hoje, na política, no tempo em que se fala da crise das ideologias, na ascensão dos populismos e na falta de motivos de esperança, este caminho Agostiniano devia ser um claro guia da acção – caminharmos para uma sociedade gratuita e livre.

Nas palavras do próprio: “é preciso, para que essa Ilha dos Amores possa existir, que o homem possa entender que o capitalismo existe, não para ficar continuamente, tendo mais lucro, e descontando mais juros, e pagando mais dívidas ou pedido mais dinheiro emprestado, mas para terminar num ponto em que a economia desapareça completamente, em que haja tudo para todos. Primeiro ponto. Segundo ponto, que, aí, o homem possa passar à sua verdadeira vida, que é a de contemplar o mundo, ser poeta do mundo e o mundo poeta para ele, de tal maneira que nunca mais ninguém se preocupe por fazer tal ou tal obra, mas por ser tal ou tal objecto no mundo: a identidade dele, a única, o ser único que existe no mundo entre os tais biliões de seres que pelo mundo existem”.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 25 de Março de 2021

Monday, March 22, 2021

NEM TODO O CRESCIMENTO ECONÓMICO PRODUZ FELICIDADE

Um dos grandes equívocos do pensamento económico e político contemporâneo tem sido a crença dogmática de que o crescimento económico produz felicidade. Essa crença ganhou força durante o século XX, muito graças aos progressos materiais que este século testemunhou e ao baixo ponto de partida, em termos de riqueza material, que muitos países tinham.

A verdade é que o crescimento económico é, na prática, a transformação da natureza, e o aproveitamento da energia, no sentido da produção de bens e serviços que consideramos úteis à nossa vida. Duma forma demasiadamente simplista, muitos supuseram que, quanto mais produção se fizesse, mais utilidade haveria na sociedade, mais felizes ficariam as pessoas.

Acontece que o processo de criação de felicidade, através da transformação da natureza em bens e serviços, está longe de ser simples, linear, automática. Logo à cabeça, há um constante esquecimento de que os bens e os serviços não caem do céu. Fosse esse o caso e seria muito mais razoável assumir que quanto mais bens e serviços tivéssemos à disposição, mais felizes ficaríamos. Na realidade, o ser humano e as sociedades têm que se esforçar para produzir bens e serviços.

Aliás, a energia fundamental para se fazer esse processo de criação de riqueza material é a energia humana, seja energia muscular, seja a energia utilizada pela inteligência para a criação de tecnologias materiais e sociais. Isto significa que tudo o que é produzido e consumido tem custos de produção, fundamentalmente, a utilização o nosso tempo de vida. E não é claro que quanto mais produzamos mais satisfeitos fiquemos. Porque, mesmo que consigamos produzir mais e consumir mais, fazemo-lo graças a uma maior focalização das nossas vidas nessas tarefas produtivas. É certo que um dos grandes contribuintes para o crescimento económico são os ganhos de produtividade, ou seja, a capacidade de, com o mesmo trabalho, produzir-se mais. Mesmo assim, há sempre um esforço que tem que ser feito, e a forma como esse esforço é feito condiciona brutalmente a nossa felicidade.

Em 1976, o economista Tibor Scitovsky, no seu livro The Joyless Economy, já identificava que a sociedade capitalista americana (e ocidental) tinha sido muito boa a organizar-se no sentido da satisfação das necessidades de conforto do ser humano. Os bens e os serviços que o crescimento económico proporciona, cumpriam essa tarefa. Porém, estava a verificar-se, já nessa altura, uma incapacidade do crescimento económico continuado em produzir mais bem-estar. A razão avançada por Scitovsky era a incapacidade que o sistema económico tinha em produzir estímulos satisfatórios ao ser humano. Estímulos, esses, que também são fundamentais para o nosso bem-estar. O exemplo típico era o da especialização que laboral que, ao mesmo tempo que gerava aumentos exponencias da produtividade (como Adam Smith seminalmente havia identificado), tornava as tarefas profissionais mais repetitivas, aborrecidas e menos estimulantes.

Hoje em dia, a investigação profícua no domínio da economia da felicidade demonstra-nos não só que Scitovsky estava certo, como nos permite um aprofundamento do conhecimento relativamente ao que os seres humanos precisam para satisfazerem-se individual e colectivamente.

O que está completamente patente nos dados empíricos é que o crescimento económico, que se mede através das variações no Produto Interno Bruto, satisfaz apenas uma parte da nossa felicidade. Adicionalmente, surge o problema de que, para termos um PIB crescente, há dimensões da nossa vida que são afectadas: o capital relacional (a quantidade e qualidade das relações interpessoais que temos), o capital social (a confiança que temos nos outros, nos estranhos, nas instituições), a liberdade para pensar e agir (económica, social e politicamente), a saúde física e mental, a justiça, a igualdade, entre outras, são tudo dimensões fundamentais, per si, para a felicidade humana, que podem ser degradadas em nome do crescimento económico.

Analisando a realidade, constatamos que não há uma relação de causa e efeito entre crescimento económico e capital social, capital relacional, liberdade, igualdade ou saúde. Isso acontece porque o crescimento económico pode dar-se em diferentes enquadramentos institucionais e culturais que, por sua vez, são determinantes da felicidade.

Os países nórdicos são sistematicamente os mais felizes do mundo (veja-se o acabado de publicar WHR de 20220), não por serem os mais ricos do mundo, mas porque sabem conciliar o crescimento económico com as outras dimensões fundamentais do bem-estar: tempo para a vida profissional, para a vida pessoal e para o lazer, igualdade de oportunidades e discriminação positiva dos desfavorecidos, seguros sociais de diferentes formas (que minimizam o risco da vida) e forte capital social.

Nos países latinos (europeus e americanos), onde não há tanta afluência económica nem tão bons índices de capital social, obtém-se satisfação através do capital relacional (a qualidade das relações interpessoais, nomeadamente entre a família e com amigos).

Por outro lado, países asiáticos como o Japão e a Coreia do Sul são excelentes na produtividade e na produção, mas perdem muito no capital relacional e no lazer, sendo países que estão completamente subaproveitados ao nível do bem-estar, da felicidade.

A lição que temos que tirar é que não é qualquer crescimento económico que nos serve. O crescimento económico não é o objectivo, terá sempre que ser utilizado como meio para. É, apenas, mais uma ferramenta que nos ajuda a sermos felizes.

Aliás, é possível estagnar, ou até decrescer, economicamente e produzir mais felicidade, se se aumentar a justiça, fizer uma melhor redistribuição do rendimento e da riqueza, distribuir melhor o trabalho entre as pessoas ou aumentar a confiança nas instituições.

O passo que a Espanha está a dar (aliás como países nórdicos também já têm experimentado) de reduzir a carga laboral é um exemplo claro do caminho certo para a felicidade. Não interessa sermos o país do mundo que mais produz, que tem o PIB maior. Interessa sermos o mais feliz.

Reduzir as cargas de trabalho, reduzindo, assim, o desemprego, aumentar salários mínimos e, até, equacionar as questões dos rendimentos mínimos incondicionais, serão tudo ferramentas que, à luz dos resultados científicos disponíveis, nos permitiriam caminhar para mais felicidade e com mais sustentabilidade ambiental.

Mais, estes tipos de medidas, muito provavelmente, contribuiriam até para um crescimento económico saudável, com inovação e criação de empregos.

O contrário disto é uma espécie de “ditadura do crescimento económico” em que o ser humano é reduzido a uma máquina de produção, que só tem tempo para produzir e consumir produtos conspícuos, e morrer de exaustão (fenómeno muito preocupante no Japão). Essa não é a vida que se quer. A boa vida não é isso.

Por isso, do ponto de vista das políticas públicas e das políticas económicas, o foco tem que ser posto na obtenção da felicidade máxima. Isso consegue-se não confundindo o meio (crescimento económico) com o fim (felicidade) e percebendo qual a forma mais feliz de produzir. Isso passa pela gestão das organizações, pela qualidade das instituições, pelo respeito pela família, lazer e tempo livre e passa por uma boa distribuição da riqueza e do rendimento.

A ciência também demonstra que pessoas felizes são mais criativas, mais cooperantes, mais produtivas e mais saudáveis. O segredo está na criação de círculos virtuosos de felicidade e crescimento económico, mas em que o ponto de partida e de chega é a felicidade. O meio é o crescimento económico, que tem que ser subjugado, a todo o momento à felicidade. Este é o caminho.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 22 de Março de 2021


Tuesday, March 16, 2021

VAMOS SER TODOS CHIPADOS!


Uma das teorias da conspiração actualmente preferidas das redes sociais é aquela que diz que as vacinas contra a Covid19 são, na verdade, um instrumento utilizado por Bill Gates para introduzir chips nas pessoas, que serão, depois, as ferramentas para controlar essas mesmas pessoas.

Uma característica comum a todas as teorias da conspiração é esta ideia de falta de controlo e de liberdade do cidadão comum, face a uns, poucos, governantes tácitos do mundo que, à revelia da população mundial e da democracia, tomam todas as decisões importantes para a nossa vida.

O curioso desta teoria da conspiração das vacinas é que ela agita, da mesma forma que no passado, os fantasmas da tecnologia: provavelmente, ainda existem tribos perdidas no mundo, que consideram uma máquina fotográfica um instrumento perigoso e diabólico, porque uma fotografia rouba a alma do fotografado. Um ocidental ri-se desta ingenuidade perante a tecnologia fotográfica, mas, talvez, esse mesmo ocidental esteja a partilhar nas redes sociais as teses conspirativas em que a vacina vai ser usada para introduzir um chip… É verdade que ainda não chegamos a esse ponto tecnológico, mas havemos de chegar, e ainda bem.

Se há evidência que a história recente da humanidade nos tem revelado é que a inovação tecnológica tem tido um efeito espectacular sobre a vida humana: tem permitido que mais gente exista no planeta, que mais gente viva mais anos, que mais gente tenha bons cuidados de saúde, que mais gente tenha acesso à alimentação, à habitação, ao transporte e à comunicação. Tudo factores decisivos para o bem-estar humano, desde o controle da electricidade, passando pela energia nuclear, até à manipulação de processos quânticos que nos permitem ter comunicação à distância e serviços de geo-localização. A tecnologia tem sido uma aliada da humanidade.

É claro que, também, têm existido usos nocivos da tecnologia, com o exemplo paradigmático da bomba atómica. Mas o saldo é muito positivo. E esse saldo positivo dá-nos toda a confiança para encarar os avanços futuros com muito optimismo.

Na verdade, aproximamo-nos de uma progressiva integração e interacção ser humano/máquina e inteligência artificial, sendo que os receios que muitos têm desse passo são equiparáveis aos receios que os tribais tinham em ser fotografados.

Não estará muito longe o dia em que, de livre vontade, instalaremos chips no nosso corpo que nos permitirão ter acesso a informação na internet de uma forma continuada e supereficiente, sinalizar-nos-ão problemas da nossa saúde em tempo real (prevenindo riscos de morte como AVC, ataques cardíacos, embolias ou a detecção precoce de cancro), para além de correcções automáticas do processo de envelhecimento. Assim, dar-se-á o próximo passo na esperança média de vida, que é o do aumento forte da longevidade.

Só com esta integração com a máquina será o ser humano capaz de, sustentadamente, ultrapassar os 100 anos de vida, e vivê-los com qualidade.

Obviamente que, em tal estado de integração tecnológica, o ser humano passa a enfrentar riscos que hoje não tem, desde hacks ao sistema digital integrado no nosso corpo até possibilidades de fiscalização e discriminação que hoje são impossíveis.

Mas o processo será, em tudo, igual a alguns desafios que a tecnologia nos pôs no passado. Ou seja, os riscos acrescidos que vamos enfrentar por essa integração vão ser superados pelas vantagens dessa mesma integração. Aquilo que vamos ter que fazer é encontrar as tecnologias sociais mais adequados à minimização desses riscos tecnológicos, softwares mais resilientes à pirataria, sistemas políticos mais controlados democraticamente e fortes limitações legais às possibilidades de abuso.

A história da humanidade está cheia de guerras, de violações, de processo de escravatura, mas está, também, cheia dos momentos de ultrapassagem desses abusos. Aliás, a contemporaneidade é o mais feliz de todos os momentos da humanidade: nunca no planeta viveram tantas pessoas, durante tantos anos, com tanta qualidade de vida.

Não há grandes razões para duvidarmos da capacidade da humanidade em continuar este progresso. E, sim, esse progresso far-se-á com mais tecnologia, mais inteligências artificiais, mais integração humano/máquina, mas também com inovações sociais na direcção do maior respeito pelos direitos humanos e pela liberdade.

A escravatura não precisou de tecnologia nenhuma para existir. A inquisição usou instrumentos de tortura básicos para provocar dores inimagináveis. A culpa é da maldade, não da tecnologia.

Hoje, o mundo está muito menos dominado pelas elites: nunca na história da humanidade o cidadão comum teve tanto poder e liberdade, seja através das suas decisões de consumo, seja através do seu voto, seja através da sua capacidade de influenciar outros, nomeadamente através das redes sociais.

A tecnologia e o desenvolvimento tecnológico apontam, sim, para a utilização dos chipes no corpo humano. Mas essa utilização será muito bem-vinda e será mais um passo na direcção do aumento da felicidade. E vamos adoptá-la livremente, sem necessidades de esquemas conspirativos insidiosos.

Enfim, sejamos vigilantes, mas não tenhamos medo.

Gabriel Leite Mota, publicado a 16 de Março de 2021

Thursday, March 11, 2021

A INEFICIÊNCIA ECONÓMICA DO LUCRO NA SAÚDE

A economia mainstream explica que quando os mercados não são perfeitamente concorrenciais os consumidores perdem bem-estar, a economia perde eficiência e as empresas obtêm lucros extraordinários, também chamados de rendas económicas.

Segundo as teses da economia mainstream, o óptimo social só se dá quando os mercados são perfeitamente competitivos, existe informação perfeita, os produtos são homogéneos, os bens são privados e não existem externalidades. Enfim, o óptimo social só se atingiria num mundo impossível. Ainda assim, esse mundo ficcional é utilizado como benchmark para comparação com a realidade: quanto mais nos afastarmos dessas condições ideais, pior fica a situação para os consumidores e para a sociedade.

Seja qual for o sector da economia real em que pensarmos, vamos descobrir que estamos sempre longe dessas situações ideais. Isso significa que os mercados, que a economia de mercado, é sempre, em parte, ineficiente e não produz o bem-estar desejável para os consumidores.

Mas se esse afastamento pode ser pequeno, quando lidamos com mercados bastante concorrenciais, como, por exemplo, o mercado dos restaurantes ou das padarias e confeitarias, em que há muita concorrência, em que os consumidores sabem bem o que estão a consumir (e se gostam ou não), em que não existem barreiras à entrada ou à saída das empresas no mercado, em que os bens não têm especiais efeitos externos e são de natureza privada (são para o consumo de quem os adquire), há outros sectores onde estamos muito distantes dessa realidade, desse ponto ideal.

O caso dos cuidados de saúde é paradigmático. A saúde tem dimensões de bem público, apresenta muitas externalidades, a informação é assimétrica, existem fortes barreiras à entrada e economias de escala que potenciam a concentração do mercado. Isto significa, na prática, que entregar ao mercado a produção e distribuição dos serviços de saúde vai gerar altíssimas ineficiências económicas, atirando os utentes de saúde para uma situação de baixo bem-estar, com serviços de pouca qualidade relativa face ao preço. Por outro lado, os produtores de saúde gozarão de altas rendas económicas, lucros extraordinários, que só são obtidos pela perda nos excedentes dos consumidores.

Os EUA são a prova empírica deste resultado teórico. Nos EUA há um gasto em saúde exorbitante: gastavam 16,89% do seu PIB em saúde (em 2018), obtendo resultados medíocres. Por exemplo, a esperança média de vida nos EUA (78,9 anos em 2019) é mais baixa do que em Portugal (82 anos em 2019), e muito mais baixa do que nos países com melhores índices de saúde (como o Japão, com 84,6 anos em 2019), países esses que gastam significativamente menos que o EUA (Portugal 9,41% do PIB, Japão 10,95%, ambos em 2018).

Ou seja, os EUA são o país mais ineficiente do mundo na produção de saúde para a população. Isso, porque entregou aos privados e aos mercados a produção e distribuição dos serviços de saúde. Inclusivamente, juntou a questão dos seguros que, mais uma vez, é um mercado que se depara com muitas ineficiências, desta vez a propósito das altas assimetrias de informação, que fazem com que nem toda a gente consiga ter um seguro, e as pessoas que conseguem têm que pagar muito para ter as coberturas que o seguro dá. Ao mesmo tempo, a falta de centralização de informação, de cooperação e coordenação entre hospitais faz com que, no global, os serviços prestados sejam altamente ineficientes. Há vasta literatura científica na economia da saúde que demonstra como o mercado funciona mal neste sector.

Em Portugal também se percebe esta ineficiência quando constatamos que, praticamente, não há concorrência entre os prestadores privados de saúde (temos dois ou três grupos que detêm quase todos hospitais privados, o mesmo no que diz respeito aos laboratórios de análises e exames). Assim, a abrangência e a relação qualidade/preço dos serviços fica posta em causa.

Sejamos claros: um mercado bem funcionante, em concorrência perfeita, funciona melhor que qualquer alternativa na produção de bens e serviços. Mas a análise concreta não pode ser feita usando esse mercado ficcional, antes, temos que ter em conta a realidade sectorial e, em particular, as características dos bens e serviços que queremos produzir.

O caso da saúde está cheio de características que tornam a provisão através dos mercados altamente ineficiente. As decisões que um toma para a sua saúde têm impacto sobre terceiros (veja-se o caso da pandemia e a decisão de tomar ou não tomar uma vacina, ou de se proteger ou não se proteger). Isso chama-se de externalidade, algo que o mercado ignora. Também por isso, há uma dimensão de bem público, uma dimensão que diz respeito a todos e não só ao indivíduo que toma a decisão no mercado. Assim, o mercado erra.

Depois, há uma elevadíssima assimetria de informação, porque nós não sabemos o que é melhor para nós em termos de saúde, são os médicos que sabem. Também nos seguros, como as empresas de seguros não sabem o nosso verdadeiro estado de saúde, protegem-se dessa assimetria criando um sem-número de exclusões e limitações, que tornam o próprio seguro ineficaz na protecção sustentada da saúde das pessoas.

Não se trata aqui de nenhuma questão ideológica. Trata-se de uma constatação de facto: os serviços de saúde só funcionam bem se tiverem mecanismos de coordenação central, de forma a que seja possível cobrir toda a população, durante todo o seu tempo de vida e independentemente de estarem a trabalhar, no desemprego, na reforma ou a estudar. Independentemente de serem saudáveis ou de serem doentes crónicos.

Os serviços de saúde só funcionam bem se as pessoas não tiverem medo do custo do serviço para acorrerem ao dito. A saúde não é como um iogurte que compramos no supermercado. É um elemento central da nossa vida, da nossa dignidade humana.

Obviamente que a produção centralizada, seja directamente através no Estado, seja através de serviços privados contratualizados com o Estado, vai ter sempre dificuldades e falhas. Mas não se pode argumentar que a privatização da saúde é que é boa, é que faria com que tivéssemos um muito melhor sistema de saúde.

Se queremos melhorar algumas das lacunas do nosso Serviço Nacional de Saúde devemos, sim, apostar numa gestão de maior qualidade. Essa gestão deve ter em conta indicadores de produtividade, evolução das listas de espera, qualidade dos serviços prestados, satisfação dos utentes, e deve contratar e premiar os recursos humanos em função das suas capacidades efectivas, não de jogos políticos internos ou corporativos.

Na prática, nenhum sistema é perfeito. Mas, no caso da saúde, a privatização é um erro perigoso.

Portugal tem um bom Serviço Nacional de Saúde que importa preservar e melhorar. A participação dos privados pode ser bem-vinda, desde que cumpram as regras exigidas pelo sistema, exigidas pelo organismo central, e não se apropriem dos lucros extraordinários que o mercado permite.

Quanto às falhas que o Estado vai tendo na produção dos serviços de saúde, têm que ser combatidas através de melhor gestão e incentivos mais apropriados. O segredo está na boa gestão, não na privatização dos serviços que existem.

Nota final para as farmacêuticas: as dificuldades que o mundo está a ter em conseguir vacinar atempadamente toda a população mundial contra a Covid-19 (nomeadamente nos países pobres) é também uma decorrência da ineficiência na produção e distribuição privada de medicamentos, neste caso de vacinas protegidas por patentes, que permitem a obtenção de lucros extraordinários por parte das farmacêuticas.

Gabriel Leite Mota, publicado a 11 de Março de 2021


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