Durante a antiguidade clássica os gregos e os romanos divertiam-se a inventar mitologias divinas, em que os deuses se envolviam em elaborados enredos de traição, vingança e lutas pelo poder. Dessas histórias, os clássicos tiravam lições para a sua vida quotidiana.
Muito séculos depois, a descendência desses clássicos (a nossa civilização ocidental) já não vive de histórias mitológicas divinas (apenas mantém uma, a abraâmica) mas criou, principalmente depois da revolução industrial e da consolidação do capitalismo, uma nova: o capitalismo como meritocracia.
Segundo esta mitologia, as sociedades ocidentais democráticas e capitalistas são o paraíso do mérito, ou seja, o local onde quem quiser chegar, chega onde quiser. Assim sendo, a distribuição das funções da sociedade pelos diversos indivíduos obedece, unicamente, a esse princípio do mérito: em última análise, cada um está a fazer o que tem de fazer, o que o seu mérito permite que faça. E o grande corolário é este: a distribuição da riqueza e do poder, em qualquer momento, na sociedade ocidental, é justa, pois que espelha o mérito relativo de cada indivíduo. E por isso não devemos mexer nessa distribuição (nomeadamente não deve o Estado alterar esse status quo).
Há muita gente, hoje, que acredita nesta mitologia. Mas só há duas possibilidades para se acreditar em tal patranha: ignorância (ou incapacidade cognitiva) ou interesse estratégico (e cinismo).
Ignorância por não perceberem que o resultado distributivo das funções, poder e riqueza na sociedade depende do mérito dos indivíduos apenas numa parte muito pequena (embora haja mais meritocracia nas sociedades democráticas ocidentais do que noutras). E isto não é uma questão de opinião, apenas factos.
É que o mérito é um conceito filosófico que diz respeito àquilo que cada um contribui, por si só, para o seu destino. Mas para se chegar a essa contribuição, teríamos que expurgar todos os outros factores que determinaram o nosso futuro. Acontece que esses outros factores são inúmeros, e têm um papel determinante. A saber: as condições de partida - para se avaliar o mérito teríamos todos de partir do mesmo sítio, sem heranças genéticas, monetárias, afectivas, de conhecimento e de conexões sociais; a sorte - teríamos de descontar os eventos fortuitos que nos dão vantagem ou desvantagem; as economias de escala - grande parte dos fenómenos está sujeito a economias de escala, isto é, a reforços positivos para quem ganha uma ligeira vantagem inicial. Essas economias permitem cavar um fosso, sem esforço ou mérito, entre os que têm mais sucesso e os outros, apenas graças a uma pequena vantagem inicial, que até pode ter sido resultado da sorte).
A verdade é que a sorte não sorri mais aos audaciosos (ou especialmente a esses). A sorte tende a sorrir a quem mais tem (riqueza, inteligência, beleza e redes de contactos).
Quem sabe tudo isto, e continua a ser paladino desta mitologia do mérito, fá-lo apenas por conveniência, para poder manter a sua posição dominante, enquanto deixa os perdedores convencidos de que não lhes resta outra alternativa senão aceitarem a subjugação, pois que o mérito deles a mais não lhes permite.
Quando as pessoas bem-nascidas e com boa posição social dizem que tudo vai bem (“é o mérito, estúpido”) dá a vontade de andar com o tempo para trás e ver como essas mesmas pessoas estariam hoje caso tivessem partido das posições desaforáveis que os outros, classificados como sem mérito, tiveram que suportar. O que seria se tivessem nascido filhos de uma prostituta e de um drogado, tivessem sido abusados em criança? Será que tinham o sucesso que tanto gostam de exibir? (e todas as excepções só confirmam a regra).
Enfim, não aceitar que a sorte na nascença, e os aleatórios seguintes, são os maiores determinantes dos (in)sucessos da nossa vida é ser ignorante ou muito perverso.
Gabriel Leite Mota, publicado no P3 a 21 de Fevereiro de 2014