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Wednesday, February 2, 2022

Por uma produção amiga da felicidade

"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos explica como fazer crescer as economias. A verdade é que os autores clássicos entendiam que essa função da Economia só fazia sentido se o crescimento económico aumentasse a felicidade dos povos. Ao longo do tempo, porém, essa importante ressalva foi esquecida, principalmente durante o séc. XX, com a deriva neoclássica e a tentativa de fazer da Economia uma ciência exacta. De tal forma foi assim que se chegou ao fim do século passado com a ideia de que o crescimento económico, inexoravelmente, trazia a felicidade dos povos. Mais, com o advento do indicador estatístico PIB e sua utilização à escala global, o crescimento económico, assim medido, passou a ser a principal variável da política: os políticos dos diferentes países passaram a aferir o sucesso das suas propostas e políticas pelo impacto que tinham no PIB. Implícita estava a ideia de que, quanto mais crescermos, mais bem-estar haverá. Paradoxalmente, e similar ao que sucedeu com os clássicos, Simon Kuznets, o criador do PIB, disse que esse não era um indicador de bem-estar nacional. Mas essas palavras foram esquecidas. De tal forma tudo isto é assim que, hoje, em Portugal, nos debates televisivos entre os candidatos às legislativas de 30 de Janeiro, um dos principais temas foi a questão do crescimento económico. Que Portugal está estagnado desde o início do milénio, e que tudo se tem que fazer para inverter essa situação. Discutem-se as culpas, segmentam-se os períodos temporais (onde se cresceu e decresceu), e argumentam-se soluções. Para a direita, a solução é simples: baixar impostos e mercantilizar os bens e serviços públicos, que o mercado põe Portugal a crescer. Para o PS, o problema foi a pandemia, caso contrário, Portugal estaria a crescer bem, graças às políticas do seu Governo. Para a esquerda, há a insistência no aumento dos salários, a importância do poder de compra e dos direitos laborais. Também se falou dos problemas ambientais, com o PAN e o Livre a demonstrarem-se focados na emergência climática. No meio de tudo isso, lá foram surgindo as palavras bem-estar e felicidade. Pela boca do PAN, surgiu mesmo o termo Economia da Felicidade (embora sem explicar o que é, e fazendo uma ligação abusiva à questão do Rendimento Básico Incondicional). O Livre falou de um “novo modelo de desenvolvimento”, mas não concretizou. A verdade é que, mais uma vez, não houve um debate profundo do tema do crescimento no quadro em que deve ser tido: em que medida pode o crescimento económico produzir felicidade? Esta é uma pergunta à qual vejo ser dada, sistematicamente, uma resposta leiga: quanto mais rico for o país, mais felizes são as pessoas. Logo, toca a pôr o país a crescer. Acontece que a resposta a esta pergunta não pode mais ficar entregue ao “achismo” dos que ignoram que há milhares de estudos científicos acerca do tema. E a resposta é clara: a relação entre crescimento e felicidade é positiva, mas não linear. Isso porque o rendimento tem utilidade marginal decrescente e porque há muitas outras variáveis, além do consumo de bens e serviços, que são determinantes da nossa felicidade e que são influenciadas (positiva e negativamente) pelos processos de crescimento económico. Logo, nem sempre é bom crescer. O único debate sério que podemos ter a este respeito é aquele que analisa que tipo de crescimento económico queremos ter, muito mais do que quanto crescimento queremos ter. Portugal viveu um dos seus mais gloriosos períodos de crescimento económico durante o Estado Novo. Porque não voltar à ditadura para crescer assim? (note-se que há muitos comentadores económicos que se queixam de como as eleições de quatro em quatro anos invalidam as transformações que eles acham fundamentais para pôr Portugal a crescer). China, Arábia Saudita ou Emirados Árabes Unidos são exemplos de nações que conseguem fortes crescimentos económicos profundamente desrespeitadores dos direitos humanos. Queremos o mesmo cá? O crescimento económico tem sempre que estar subordinado à felicidade, não o contrário. E a forma como nós o obtemos define o que é o instrumento e o que é o fim último. A neo-escravatura pode ser óptima para a produção, para o lucro e para o crescimento económico, mas é destruidora de felicidade e uma violação dos direitos humanos. A verdade é que passamos grande parte das nossas horas de vida a trabalhar, a produzir. E a forma como o fazemos é fundamental para a nossa felicidade. Aumentar a produção através da sobrecarga laboral, competitividade excessiva e precariedade, que é, hoje, tão comum, é uma forma de aumentar produto e consumo, mas de destruir felicidade (a pandemia do burnout já existia antes da Covid). Pensar seriamente sobre este tema obriga a uma quadratura do círculo: precisamos de atrair o investimento, mas precisamos de mais salários, menos horas de trabalho, mais produtividade e melhor distribuição da riqueza e do rendimento. Para isso, precisamos de técnicas de gestão de ponta nas organizações que promovam a autonomia, a participação, a criatividade e o florescimento humano. E de quadros legais que premeiem quem assim se comporta, e punam quem insiste nos produtivismos do séc. XIX e XX. Podemos começa, tudo isto, já. Não temos que ficar à espera dos “amanhãs que cantam” do crescimento económico. Tal qual Amartya Sen nos explica que a democracia tem que ser a base, e vir antes do crescimento económico, o respeito pela felicidade (na vida e no trabalho), tem que ser o ponto de partida. Depois, então, virá o crescimento económico que interessa."

Gabriel Leite Mota, PhD Economia da Felicidade, Prof. Auxiliar de Economia no ISSSP

Monday, July 12, 2021

TOMATE CHERRY SIM, NEO-ESCRAVATURA NÃO

Um dos argumentos utilizados na defesa da globalização económica é a ideia de que as empresas, ao procurarem maximizar a sua rentabilidade, acabam por beneficiar as pessoas que mais precisam de trabalho, livrando-as da pobreza.

Em concreto, as empresas dos países ricos, ao se deslocalizarem para os países mais pobres, acabariam por empregar as pessoas mais pobres, fazendo com que essas pessoas, e esses países, ficassem melhor economicamente.

Da mesma forma, quando se dão movimentos de migração de pessoas pobres em direcção aos países mais ricos, as empresas que operam em sectores de menores salários dariam emprego a essa mão-de-obra imigrante, que estaria disposta a trabalhar em condições, e por preços, que os trabalhadores nacionais não aceitam.
Para além disso, as pessoas dos países ricos beneficiariam destas dinâmicas, pois passariam a poder comprar bens e serviços a preços que, de outra forma, não conseguiriam.

Como sucede na maior parte dos argumentos demagógicos, há uma parte de verdade na explanação acima. De facto, quer a deslocalização das empresas dos países ricos para os países pobres, quer a migração de pessoas dos países pobres para os países ricos, têm permitido tirar algumas pessoas da pobreza absoluta, mas a um custo elevado. Esse custo materializa-se no desemprego provocado nos países mais desenvolvidos, na poluição que “emigra” para esses países pobres (mas que contamina o globo) e no retrocesso civilizacional que estas empresas acabam por pôr em prática, nomeadamente ao nível dos direitos laborais, na medida em que praticam salários de miséria, cargas horárias excessivas, precariedade, ausência de seguros de trabalho e baixíssimas condições de salubridade.

O argumento só seria verdadeiro se as empresas dos países desenvolvidos, ao deslocalizarem-se, empregassem as pessoas dos países mais pobres com salários decentes, com horários laborais de padrão ocidental (8 horas diárias, 40 horas por semana), férias pagas, seguros de doença e permitissem a existência de sindicatos. Para além disso, essas empresas teriam que respeitar, nos países pobres, as normativas ambientais que respeitam no ocidente. O mesmo se diga do aproveitamento da mão-de-obra imigrante nos países ricos, tantas vezes ilegal, que, na prática, cria um mercado de trabalho paralelo, sem direitos, uma autêntica exploração do desespero.

Em Portugal, a pandemia acabou por destapar vários exemplos de más práticas deste tipo, perpetradas por empresários do sector agrícola, que exploram populações imigrantes, e que ainda tiveram o desplante de se agarrarem a este tipo de demagogia: ouvir um representante dos proprietários das explorações agrícolas da Costa Vicentina (produtoras de frutos vermelhos e tomate Cherry) dizer que se não fossem eles a empregar estas populações imigrantes (a ganharem tão pouco e a viverem nas condições tão más em que vivem, leia-se), não seria possível o consumidor português ter acesso a tomate Cherry, é uma afronta.

Essas explorações agrícolas não têm que ser centros de exploração do desespero dos trabalhadores. Têm é que respeitar as leis nacionais, a dignidade do trabalho e, das duas, uma: ou baixam a sua taxa de lucro para pagarem decentemente aos trabalhadores e respeitarem os direitos laborais, ou sobem o preço do tomate Cherry, e logo vêem o que acontece à sua procura no mercado. Agora, argumentar que só é possível termos tomate Cherry à venda nos supermercados se se praticar esta neo-escravatura sobre as populações migrantes é um argumento miserável. E nem sequer é novo: era exactamente isso que os esclavagistas norte-americanos argumentavam antes da guerra civil, dizendo que as plantações de algodão não eram rentáveis senão com trabalho escravo. A história mostrou que, obviamente, esse argumento era mentiroso, e apenas protector desses péssimos “empresários”.

Se há alguém que está mal, e que tem que sair no meio desta história toda, são os empresários que não sabem ganhar dinheiro senão com neo-escravatura.


Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Público a 12 de Julho de 2021



Tuesday, July 6, 2021

PARA PORTUGAL, A HOMOSSEXUALIDADE É MORAL



Foi notícia, outra vez, o caso de dois estudantes cujos pais os impedem de frequentar as aulas de cidadania, com o argumento de que questões de sexualidade e de moral não são da competência da escola, apenas da família.

Acontece que, num Estado democrático, com sistema de ensino obrigatório, os conteúdos leccionados não se restringem à ciência: passam pela história, pela cultura, pela filosofia, pelo direito, ou seja, passam pelos valores morais.

Se pegarmos no caso da homossexualidade, podemos, inclusivamente, constatar que, quer a ciência, quer a história, quer o direito, têm muito a dizer sobre ela. A ciência, porque já a considerou uma doença, e hoje não considera, antes a estuda e tenta compreender os seus determinantes genéticos, epigenéticos e sociais; historicamente, é um tema de grande relevância, face às oscilações de frequência e aceitação que a homossexualidade foi tendo ao longo da história – lembremo-nos dos gregos e romanos, que a aceitavam tranquilamente; do ponto de vista do direito, é também um tema fundamental, pois que o enquadramento da homossexualidade no quadro jurídico tem vindo a variar, desde os tempos em que era criminalizada e penalizada, até à actualidade, em que os homossexuais se podem casar, podem adotar crianças ou, recorrendo a inseminação artificial ou barrigas de aluguer, terem filhos próprios (ex: pode gerar-se uma criança no ventre de uma mulher, com óvulos da companheira, numa relação lésbica); na filosofia, importa discutir o papel da sexualidade na vida, mostrando as várias visões possíveis, desde aquelas que concebem a sexualidade apenas como um meio para a reprodução, até outras que a concebem, essencialmente, como um meio para o prazer.

É, assim, completamente errada a posição daqueles que acham que à escola não cabe a discussão de certos temas porque têm cargas valorativas e morais.

Aliás, o texto fundamental da nossa democracia, a Constituição da República Portuguesa, é um sumário desses mesmos valores. E a consideração dos direitos humanos nesse documento significa que, para Portugal, a homossexualidade é moral (o amor recíproco entre seres humanos é sempre moral), e isso tem que ser ensinado.

Certo é que há pessoas que pensam diferente, porque assim vem escrito em livros com mais de 2000 anos. Mas essa não é a posição de Portugal. As famílias têm todo o direito de ensinar a moral que quiserem às suas crianças, não podem é impedir que o país, através do seu sistema de ensino obrigatório, transmita aos estudantes a moral da nação, e as diferentes visões científicas e filosóficas sobre os problemas.

Quem se incomodar muito com isso, sempre pode emigrar para nações que tenham uma visão moral mais perto da sua, nomeadamente países como a Arábia Saudita ou o Irão.

Na Europa, o padrão é o respeito pelos direitos humanos, pelo que se tende a impedir essas visões fanáticas, apesar dos maus exemplos como a Hungria ou a Polónia.

Esta problemática está, também, a ser discutida em Itália, com o parlamento a querer aprovar uma lei que penaliza o discurso de ódio e discriminatório, nomeadamente a homofobia, tendo o Vaticano ficado preocupado por temer que a sua doutrina possa ser considerada homofóbica e impedida de ser ensinada. Se é certo que não se pode impedir que as famílias ensinem o que quiserem às suas crianças, já fica difícil aceitar que as instituições de ensino acreditadas pelo Estado possam propagar valores contrários à moral nacional. Caso contrário, teríamos que aceitar escolas que ensinassem o assassinato como moral (e tantas vezes a homofobia leva a assassinatos).

Portanto, sim, se uma nação decidir que a homofobia é um crime, todas as escolas deverão ficar impedidos de transmitir uma visão que olha para homossexualidade como uma imoralidade.

Não há, no mundo, nenhum Estado neutro em valores, nem nenhuma escola neutra em valores.

Portugal é uma República democrática laica, por muito que custe a pessoas que sejam monárquicas, religiosas ou antidemocráticas. Os valores fundamentais são transmitidos nas escolas e a normalidade moral da homossexualidade é um deles. Quem quiser pregar o contrário, pode fazê-lo, mas fora do ambiente escolar.
Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Público a 6 de Julho de 2021

Wednesday, April 7, 2021

HABITAÇÃO: EMPURRAR A OFERTA E A COMPETIÇÃO

Uma das dimensões que funciona mal em Portugal é o mercado imobiliário, nomeadamente no que toca à satisfação das necessidades habitacionais das classes média e baixa. Em particular nas maiores cidades, onde estão concentrados a grande parte dos empregos, vive-se um desequilíbrio crónico de excesso de procura, tanto no mercado de compra, como no mercado de arrendamento. Essa situação provoca um aumento de preços (ex: 55% em Lisboa e 66% no Porto, entre 2017 e 2020) que tem gerado uma gentrificação iníqua.

Ao contrário do que sucede nos mercados competitivos, em que um excesso de procura provoca um forte aumento da oferta, não deixando os preços subir e satisfazendo quem procura, as características próprias do sector imobiliário impedem esse ajustamento da oferta. Desde os Planos Directores Municipais, à concentração dos imóveis em relativamente poucos proprietários, até à escolha pela especulação (não pôr os imóveis no mercado na expectativa de que os preços continuem a subir), tudo torna este mercado altamente ineficiente.

No que diz respeito ao arrendamento, ainda se fazem sentir as políticas salazaristas (mantidas durante a democracia, só recentemente alteradas) de congelamento de rendas, que bloquearam este mercado durante décadas.

Já a crise do subprime fez com que muitos construtores abandonassem o mercado da construção habitacional, havendo uma quase estagnação na construção de casas novas nos principais centros urbanos nos últimos 12 anos.

Tudo isto faz com que um casal que viva só dos seus salários, sem heranças ou ajudas familiares, tenha imensas dificuldades em encontrar habitação condigna, a preços sustentáveis, nas cidades (para compra ou arrendamento).

A consequência tem sido a expulsão dessas pessoas das cidades onde cresceram e trabalham, forçadas a emigrar para a periferia, com assinaláveis perdas na qualidade de vida: horrorosas deslocações casa-trabalho-casa – que são dos momentos mais stressantes na vida das pessoas, os estudos comprovam-no; afastamento da família e dos grupos de lazer – com perdas ao nível dos bens relacionais; residência em locais com baixas amenidades, o que diminui a qualidade de vida (as câmaras mais pobres não têm o capital, nem o interesse, em criar essas amenidades); aproximação a guetos com problemas criminais, gerando-se sentimentos de insegurança.

Perante este problema, importa encontrar soluções. Uns têm defendido políticas de preços máximos, para se garantir o acesso à habitação a preços compatíveis com os rendimentos. Sucede que essa estratégia está votada ao fracasso, pois, potencialmente, baixa a oferta (piorando o problema) e até cria a injustiça de só beneficiar quem tiver a sorte de conseguir as poucas habitações disponíveis a esses preços.

Sabendo-se que o problema está na baixa oferta, temos que a estimular. Assim, proponho o seguinte:

1. Imposto de inutilização em função do custo de oportunidade, da localização e do excesso da procura. Não através do IMI (que financia as Câmaras, é muito pequeno e é calculado em função dos baixos valores tributários) mas de um novo imposto cobrado pela AT e destinado ao aumento da oferta no mercado imobiliário (seja por construção pública, seja no incentivo à construção privada). Este imposto iria fazer com que quem tem imóveis parados ou abandonados, passasse a ter um incentivo forte a pô-los no mercado, pois que se vendesse ou arrendasse deixava de pagar este imposto. Este imposto teria que ser substancial. Quem escolhesse manter os imóveis parados por motivos especulativos, sentimentais, ou outros, estava no seu direito, mas contribuía com este imposto para a sociedade conseguir responder à falta de oferta.

2. Liberalização do PDM e agilização dos procedimentos de licenciamento. Um dos grandes entraves à construção de novas habitações são as regras do PDM que, tantas vezes, geram mais-valias ou luxos injustificados para os proprietários de certas áreas urbanas. No Porto, por exemplo, se há muita gente a querer morar na Foz, o que há a fazer é liberalizar o PDM da Foz, permitindo-se a construção de prédios altos nessas freguesias (obviamente, isto terá a oposição feroz dos proprietários das moradias de luxo, que não querem ter como vizinho um prédio de 7 andares…). Um PDM é, sempre, um instrumento estatal de distribuição de benefícios: o luxo de uns, é a gentrificação de outros. Se liberalizarmos, o mercado equilibrará isso. Quanto ao licenciamento, a espera absurda de anos por um parecer favorável a uma obra de reabilitação ou de construção, é incompatível com a necessidade imperiosa de aumentar a oferta.

3. Contrabalançar, pela oferta, os incentivos estatais à procura ("vistos gold”, acordos de não tributação, apoios ao turismo). Nos últimos anos, as cidades do Porto e de Lisboa têm assistido a uma explosão do turismo e da procura imobiliária internacional, que tem feito disparar os preços dos imóveis. Quer pela transformação de fogos habitacionais em hotéis ou alojamento local, quer pela compra de imóveis nessas cidades por brasileiros, suecos, franceses, chineses, ou outros estrangeiros ricos que vêm à procura de benefícios fiscais e segurança urbana, o mercado desequilibrou-se, tornando-se impraticável para quem vive com salários nacionais. Das duas uma, ou se acaba com esses privilégios para os internacionais (que prejudicam o cidadão mediano português), ou se cria oferta habitacional em massa que faça baixar os preços. Pode-se, por exemplo, subsidiar certo tipo de construção nova, ou de reabilitação, que não seja para o turismo, nem para compradores que beneficiam dos programas mencionados.

4. Estado a construir habitação. A cidade do Porto é um paradigma da construção social por toda a cidade. Não há, praticamente, uma zona da cidade que não tenha um bairro social. Isso é muito positivo, porque não só dificulta a geração de mega guetos, como proporciona a convivência interclassista e o acesso aos espaços nobres a todos, o que é um imperativo de equidade. Acontece que essas construções foram feitas há muitos anos, e eram destinadas aos mais pobres. Agora, precisamos que o Estado também intervenha ao nível das classes médias. E o Estado pode fazer uso do seu património imobiliário para esse fim, convertendo o que tem em habitação para a classe média, colocando-a no mercado em condições competitivas.

Todas estas medidas promoveriam a justiça, a equidade, a sustentabilidade ambiental e a felicidade. É tempo de as pôr em marcha.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 7 de Abril de 2021

Friday, March 26, 2021

O SUFOCANTE ASSÉDIO CONSUMISTA

Uma das palavras que os defensores do sistema de mercado capitalista mais gostam de evocar é “liberdade”. Segundo as teses desses defensores, o sistema capitalista será o mais livre dos sistemas económicos, na medida em que as pessoas podem escolher o que consumir (e o que produzir se se tornarem empresárias).

Não querendo entrar aqui nas complexidades e diversidades associadas ao sistema capitalista de mercado (que pode conviver com democracias, com ditaduras e com diferentes enquadramentos culturais ou institucionais), é muito importante desmistificar a questão da liberdade: primeiro, porque não é fácil a qualquer pessoa conseguir virar empresária (por inúmeros entraves de acesso ao capital); segundo, porque a nossa liberdade de consumo é muito ilusória. Se é certo que, no capitalismo, costumava haver abundância de escolha de bens e serviços, há, também, uma pressão intensa para o consumo.

Mais, a própria gama de escolha torna-se, muitas vezes, excessiva, na medida em que dificulta o processo de decisão, gera a ansiedade da escolha e dissonâncias cognitivas, para além de aumentar o custo de oportunidade da decisão. E, como somos levados a consumir mais do que seria óptimo para nós, mais do que maximizaria a nossa felicidade, a suposta liberdade de consumir ou não consumir, a liberdade de escolher é, na verdade, uma ilusão.

O que acontece, é que as empresas competem entre si para ver quem consegue vender mais. E competem criando inovação e pressão sobre o consumidor. Essa pressão é desenhada, de raiz, pelos responsáveis do marketing, que pensam todo o processo, desde a criação dos bens e serviços até à sua entrega aos consumidores. E os departamentos de marketing contam com contributos de especialistas da cognição e do comportamento humano, o que torna as empresas capazes de actuar sobre os mecanismos de decisão dos consumidores, levando-os a consumir ao máximo.

O caso das redes sociais é paradigmático, uma vez que elas estão estruturadas de forma a viciar os utilizadores. Não por acaso, muitos de nós estamos dependentes das redes sociais, mesmo que não nos apercebamos (e até já há clínicas de desintoxicação dessa dependência). E o que é válido para as redes sociais, é válido para quase todos os consumos que realizamos. Os centros comerciais, por exemplo, são templos de consumo onde as pessoas entram para ver e consumir, e são pressionadas a consumir.

Aliás, a pressão para o consumo é contínua: basta abrirmos os olhos, ou escutarmos os sons, para sermos invadidos pela pressão consumista (por exemplo, quando vemos carros novos na rua, quando vemos produtos na publicidade ou nas montras, quando ouvimos referências às marcas, quando observamos os bens possuídos pelas pessoas dos nossos grupos de referência ou quando acedemos à internet, nos computadores ou nos telemóveis, ou vemos televisão e ouvimos rádio).

Também não por acaso, em alguns países existem leis que restringem a publicidade, nomeadamente a dirigida a menores, por se entender que as crianças são especialmente susceptíveis às influências da dita. Mas não nos enganemos, mesmo o mais consciente dos adultos não é imune ao assédio consumista. Esse assédio é de tal forma eficaz que faz do consumo a centralidade da nossa vida. A comparação que fiz entre um centro comercial e os templos não foi inocente. No capitalismo, os valores passam a ser as posses materiais, a ideia do se ser através do que se tem.

O problema, é que isso gera ansiedade desnecessária nas pessoas. Ansiedade, porque os novos produtos desvalorizam os que já temos (que passam a obsoletos ou a fora de moda) ou porque nos obrigam a ter que acompanhar os novos paradigmas tecnológicos, assim alimentando a incessante máquina de produção e de consumo.

Isto não significa que a produção e o consumo sejam, em si mesmo, um mal. Significa que não podem é ser tidos como bens absolutos, e que temos que ter um olhar crítico sobre esta realidade. Em particular, temos de reconhecer os efeitos negativos que a pressão consumista tem sobre cada um de nós e sobre as sociedades: é que não há liberdade, felicidade e sustentabilidade quando somos constantemente assediados para consumir.

Felizmente, já há quem esteja bastante ciente deste problema, desde os economistas comportamentais até aos economistas da felicidade, passando pelos criadores de políticas públicas de nudging, todos reconhecendo que é preciso actuar a dois níveis: 1. limitar a liberdade de assédio consumista; 2. criar mecanismos de orientação das pessoas para o seu próprio bem-estar.

O nudging (ou paternalismo liberal, como alguns lhe chamam) faz isso, quer a nível das políticas públicas, quer a nível de políticas organizacionais, sempre no sentido de encaminhar as pessoas na direcção correcta para o seu bem-estar. Na prática, funciona como uma espécie de contra-assédio, um equilibrador de assédios, que promove o bem-estar sustentável.

É errado argumentar que há liberdade de escolha, que existe a soberania do consumidor (tão propalada nas aulas de economia) perante tal capacidade de manipulação nas mãos das empresas. E acreditar que a concorrência empresarial combate esses abusos, esse poder, é pueril. A realidade demonstra-nos que abundam os casos de fraca concorrência e que vivemos num sobreconsumo que está a destruir o planeta e a minar o nosso bem-estar. Se queremos salvar o planeta e maximizar a nossa felicidade, temos que refrear esse assédio e fazer uma aposta explícita no bem-estar.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 26 de Março de 2021


Monday, March 22, 2021

NEM TODO O CRESCIMENTO ECONÓMICO PRODUZ FELICIDADE

Um dos grandes equívocos do pensamento económico e político contemporâneo tem sido a crença dogmática de que o crescimento económico produz felicidade. Essa crença ganhou força durante o século XX, muito graças aos progressos materiais que este século testemunhou e ao baixo ponto de partida, em termos de riqueza material, que muitos países tinham.

A verdade é que o crescimento económico é, na prática, a transformação da natureza, e o aproveitamento da energia, no sentido da produção de bens e serviços que consideramos úteis à nossa vida. Duma forma demasiadamente simplista, muitos supuseram que, quanto mais produção se fizesse, mais utilidade haveria na sociedade, mais felizes ficariam as pessoas.

Acontece que o processo de criação de felicidade, através da transformação da natureza em bens e serviços, está longe de ser simples, linear, automática. Logo à cabeça, há um constante esquecimento de que os bens e os serviços não caem do céu. Fosse esse o caso e seria muito mais razoável assumir que quanto mais bens e serviços tivéssemos à disposição, mais felizes ficaríamos. Na realidade, o ser humano e as sociedades têm que se esforçar para produzir bens e serviços.

Aliás, a energia fundamental para se fazer esse processo de criação de riqueza material é a energia humana, seja energia muscular, seja a energia utilizada pela inteligência para a criação de tecnologias materiais e sociais. Isto significa que tudo o que é produzido e consumido tem custos de produção, fundamentalmente, a utilização o nosso tempo de vida. E não é claro que quanto mais produzamos mais satisfeitos fiquemos. Porque, mesmo que consigamos produzir mais e consumir mais, fazemo-lo graças a uma maior focalização das nossas vidas nessas tarefas produtivas. É certo que um dos grandes contribuintes para o crescimento económico são os ganhos de produtividade, ou seja, a capacidade de, com o mesmo trabalho, produzir-se mais. Mesmo assim, há sempre um esforço que tem que ser feito, e a forma como esse esforço é feito condiciona brutalmente a nossa felicidade.

Em 1976, o economista Tibor Scitovsky, no seu livro The Joyless Economy, já identificava que a sociedade capitalista americana (e ocidental) tinha sido muito boa a organizar-se no sentido da satisfação das necessidades de conforto do ser humano. Os bens e os serviços que o crescimento económico proporciona, cumpriam essa tarefa. Porém, estava a verificar-se, já nessa altura, uma incapacidade do crescimento económico continuado em produzir mais bem-estar. A razão avançada por Scitovsky era a incapacidade que o sistema económico tinha em produzir estímulos satisfatórios ao ser humano. Estímulos, esses, que também são fundamentais para o nosso bem-estar. O exemplo típico era o da especialização que laboral que, ao mesmo tempo que gerava aumentos exponencias da produtividade (como Adam Smith seminalmente havia identificado), tornava as tarefas profissionais mais repetitivas, aborrecidas e menos estimulantes.

Hoje em dia, a investigação profícua no domínio da economia da felicidade demonstra-nos não só que Scitovsky estava certo, como nos permite um aprofundamento do conhecimento relativamente ao que os seres humanos precisam para satisfazerem-se individual e colectivamente.

O que está completamente patente nos dados empíricos é que o crescimento económico, que se mede através das variações no Produto Interno Bruto, satisfaz apenas uma parte da nossa felicidade. Adicionalmente, surge o problema de que, para termos um PIB crescente, há dimensões da nossa vida que são afectadas: o capital relacional (a quantidade e qualidade das relações interpessoais que temos), o capital social (a confiança que temos nos outros, nos estranhos, nas instituições), a liberdade para pensar e agir (económica, social e politicamente), a saúde física e mental, a justiça, a igualdade, entre outras, são tudo dimensões fundamentais, per si, para a felicidade humana, que podem ser degradadas em nome do crescimento económico.

Analisando a realidade, constatamos que não há uma relação de causa e efeito entre crescimento económico e capital social, capital relacional, liberdade, igualdade ou saúde. Isso acontece porque o crescimento económico pode dar-se em diferentes enquadramentos institucionais e culturais que, por sua vez, são determinantes da felicidade.

Os países nórdicos são sistematicamente os mais felizes do mundo (veja-se o acabado de publicar WHR de 20220), não por serem os mais ricos do mundo, mas porque sabem conciliar o crescimento económico com as outras dimensões fundamentais do bem-estar: tempo para a vida profissional, para a vida pessoal e para o lazer, igualdade de oportunidades e discriminação positiva dos desfavorecidos, seguros sociais de diferentes formas (que minimizam o risco da vida) e forte capital social.

Nos países latinos (europeus e americanos), onde não há tanta afluência económica nem tão bons índices de capital social, obtém-se satisfação através do capital relacional (a qualidade das relações interpessoais, nomeadamente entre a família e com amigos).

Por outro lado, países asiáticos como o Japão e a Coreia do Sul são excelentes na produtividade e na produção, mas perdem muito no capital relacional e no lazer, sendo países que estão completamente subaproveitados ao nível do bem-estar, da felicidade.

A lição que temos que tirar é que não é qualquer crescimento económico que nos serve. O crescimento económico não é o objectivo, terá sempre que ser utilizado como meio para. É, apenas, mais uma ferramenta que nos ajuda a sermos felizes.

Aliás, é possível estagnar, ou até decrescer, economicamente e produzir mais felicidade, se se aumentar a justiça, fizer uma melhor redistribuição do rendimento e da riqueza, distribuir melhor o trabalho entre as pessoas ou aumentar a confiança nas instituições.

O passo que a Espanha está a dar (aliás como países nórdicos também já têm experimentado) de reduzir a carga laboral é um exemplo claro do caminho certo para a felicidade. Não interessa sermos o país do mundo que mais produz, que tem o PIB maior. Interessa sermos o mais feliz.

Reduzir as cargas de trabalho, reduzindo, assim, o desemprego, aumentar salários mínimos e, até, equacionar as questões dos rendimentos mínimos incondicionais, serão tudo ferramentas que, à luz dos resultados científicos disponíveis, nos permitiriam caminhar para mais felicidade e com mais sustentabilidade ambiental.

Mais, estes tipos de medidas, muito provavelmente, contribuiriam até para um crescimento económico saudável, com inovação e criação de empregos.

O contrário disto é uma espécie de “ditadura do crescimento económico” em que o ser humano é reduzido a uma máquina de produção, que só tem tempo para produzir e consumir produtos conspícuos, e morrer de exaustão (fenómeno muito preocupante no Japão). Essa não é a vida que se quer. A boa vida não é isso.

Por isso, do ponto de vista das políticas públicas e das políticas económicas, o foco tem que ser posto na obtenção da felicidade máxima. Isso consegue-se não confundindo o meio (crescimento económico) com o fim (felicidade) e percebendo qual a forma mais feliz de produzir. Isso passa pela gestão das organizações, pela qualidade das instituições, pelo respeito pela família, lazer e tempo livre e passa por uma boa distribuição da riqueza e do rendimento.

A ciência também demonstra que pessoas felizes são mais criativas, mais cooperantes, mais produtivas e mais saudáveis. O segredo está na criação de círculos virtuosos de felicidade e crescimento económico, mas em que o ponto de partida e de chega é a felicidade. O meio é o crescimento económico, que tem que ser subjugado, a todo o momento à felicidade. Este é o caminho.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 22 de Março de 2021


Tuesday, March 16, 2021

VAMOS SER TODOS CHIPADOS!


Uma das teorias da conspiração actualmente preferidas das redes sociais é aquela que diz que as vacinas contra a Covid19 são, na verdade, um instrumento utilizado por Bill Gates para introduzir chips nas pessoas, que serão, depois, as ferramentas para controlar essas mesmas pessoas.

Uma característica comum a todas as teorias da conspiração é esta ideia de falta de controlo e de liberdade do cidadão comum, face a uns, poucos, governantes tácitos do mundo que, à revelia da população mundial e da democracia, tomam todas as decisões importantes para a nossa vida.

O curioso desta teoria da conspiração das vacinas é que ela agita, da mesma forma que no passado, os fantasmas da tecnologia: provavelmente, ainda existem tribos perdidas no mundo, que consideram uma máquina fotográfica um instrumento perigoso e diabólico, porque uma fotografia rouba a alma do fotografado. Um ocidental ri-se desta ingenuidade perante a tecnologia fotográfica, mas, talvez, esse mesmo ocidental esteja a partilhar nas redes sociais as teses conspirativas em que a vacina vai ser usada para introduzir um chip… É verdade que ainda não chegamos a esse ponto tecnológico, mas havemos de chegar, e ainda bem.

Se há evidência que a história recente da humanidade nos tem revelado é que a inovação tecnológica tem tido um efeito espectacular sobre a vida humana: tem permitido que mais gente exista no planeta, que mais gente viva mais anos, que mais gente tenha bons cuidados de saúde, que mais gente tenha acesso à alimentação, à habitação, ao transporte e à comunicação. Tudo factores decisivos para o bem-estar humano, desde o controle da electricidade, passando pela energia nuclear, até à manipulação de processos quânticos que nos permitem ter comunicação à distância e serviços de geo-localização. A tecnologia tem sido uma aliada da humanidade.

É claro que, também, têm existido usos nocivos da tecnologia, com o exemplo paradigmático da bomba atómica. Mas o saldo é muito positivo. E esse saldo positivo dá-nos toda a confiança para encarar os avanços futuros com muito optimismo.

Na verdade, aproximamo-nos de uma progressiva integração e interacção ser humano/máquina e inteligência artificial, sendo que os receios que muitos têm desse passo são equiparáveis aos receios que os tribais tinham em ser fotografados.

Não estará muito longe o dia em que, de livre vontade, instalaremos chips no nosso corpo que nos permitirão ter acesso a informação na internet de uma forma continuada e supereficiente, sinalizar-nos-ão problemas da nossa saúde em tempo real (prevenindo riscos de morte como AVC, ataques cardíacos, embolias ou a detecção precoce de cancro), para além de correcções automáticas do processo de envelhecimento. Assim, dar-se-á o próximo passo na esperança média de vida, que é o do aumento forte da longevidade.

Só com esta integração com a máquina será o ser humano capaz de, sustentadamente, ultrapassar os 100 anos de vida, e vivê-los com qualidade.

Obviamente que, em tal estado de integração tecnológica, o ser humano passa a enfrentar riscos que hoje não tem, desde hacks ao sistema digital integrado no nosso corpo até possibilidades de fiscalização e discriminação que hoje são impossíveis.

Mas o processo será, em tudo, igual a alguns desafios que a tecnologia nos pôs no passado. Ou seja, os riscos acrescidos que vamos enfrentar por essa integração vão ser superados pelas vantagens dessa mesma integração. Aquilo que vamos ter que fazer é encontrar as tecnologias sociais mais adequados à minimização desses riscos tecnológicos, softwares mais resilientes à pirataria, sistemas políticos mais controlados democraticamente e fortes limitações legais às possibilidades de abuso.

A história da humanidade está cheia de guerras, de violações, de processo de escravatura, mas está, também, cheia dos momentos de ultrapassagem desses abusos. Aliás, a contemporaneidade é o mais feliz de todos os momentos da humanidade: nunca no planeta viveram tantas pessoas, durante tantos anos, com tanta qualidade de vida.

Não há grandes razões para duvidarmos da capacidade da humanidade em continuar este progresso. E, sim, esse progresso far-se-á com mais tecnologia, mais inteligências artificiais, mais integração humano/máquina, mas também com inovações sociais na direcção do maior respeito pelos direitos humanos e pela liberdade.

A escravatura não precisou de tecnologia nenhuma para existir. A inquisição usou instrumentos de tortura básicos para provocar dores inimagináveis. A culpa é da maldade, não da tecnologia.

Hoje, o mundo está muito menos dominado pelas elites: nunca na história da humanidade o cidadão comum teve tanto poder e liberdade, seja através das suas decisões de consumo, seja através do seu voto, seja através da sua capacidade de influenciar outros, nomeadamente através das redes sociais.

A tecnologia e o desenvolvimento tecnológico apontam, sim, para a utilização dos chipes no corpo humano. Mas essa utilização será muito bem-vinda e será mais um passo na direcção do aumento da felicidade. E vamos adoptá-la livremente, sem necessidades de esquemas conspirativos insidiosos.

Enfim, sejamos vigilantes, mas não tenhamos medo.

Gabriel Leite Mota, publicado a 16 de Março de 2021

Monday, March 1, 2021

O PROLETARIADO INTELECTUAL EM TELETRABALHO

Em entrevista ao Jornal i, a professora de economia, Susana Peralta, declarou que uma forma de subsidiar quem está a ser muito prejudicado pelos encerramentos causados pela pandemia seria através da cobrança de impostos extraordinários àqueles que ela designou por “burguesia do teletrabalho” ou trabalhadores dos serviços, que são os mais qualificados.

Nas palavras da própria, “Houve uma parte substancial das pessoas em Portugal que não perderam rendimentos, toda a burguesia do teletrabalho, todas as pessoas do sector dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas, o que também me inclui a mim. Esta crise poupou muito as pessoas que trabalham neste sector e são as pessoas com mais escolaridade”.

Antes de começar a analisar a justeza de tal proposta, convém esclarecer um ponto inicial: tecnicamente, burguesia é a classe social dos detentores dos meios de produção para além do trabalho, isto é, os detentores do capital, donos de empresas, que contratam assalariados. Aqueles que vivem apenas dos rendimentos do seu trabalho não são burgueses, são assalariados.

Na verdade, podemos dividir esses assalariados entre proletariado e classe média. Com a distinção a ser feita em função das qualificações das pessoas e dos rendimentos auferidos.

Nos países desenvolvidos, durante o séc. XX, conseguiu-se que muitos assalariados deixassem de pertencer ao proletariado (que, no séc. XIX, eram operariado do sector industrial) porque, através de maiores qualificações académicas e de direitos laborais conquistados, obtiveram rendimentos do trabalho que lhes permitiram ter um melhor nível material de vida.

Acontece que uma das transformações significativas nos países desenvolvidos, nos últimos 40 anos, tem sido a progressiva destruição das classes médias, através da erosão dos rendimentos do trabalho das pessoas qualificadas e da perda de direitos laborais.

A partir do momento em que cada vez mais pessoas obtêm qualificações avançadas (em Portugal a escolaridade obrigatória já está no 12.º ano, e uma grande percentagem de jovens completa o ensino superior), a entrada no trabalho dessas pessoas faz-se com condições laborais muito degradadas, começando pela precariedade dos contratos e acabando nos baixíssimos salários auferidos.

Essas pessoas, por mais qualificações académicas que detenham, tornam-se parte do proletariado, já não mais da classe média. E nunca burgueses.

A partir daqui, percebe-se o erro inicial da proposta de Peralta: quando fala na “burguesia do teletrabalho”, está a utilizar uma concepção vulgar da palavra burguesia, que aponta para pessoas privilegiadas. Sendo Peralta uma professora de economia, essa confusão terminológica devia ser evitada.

Refere-se, também, ao facto de as pessoas dos serviços estarem em teletrabalho e ser nos serviços que as pessoas mais ganham (porque mais qualificadas). Aqui, escapa-lhe a complexidade da realidade: durante a pandemia, há burguesia que tem ganho e perdido, em todos os sectores de actividade, e há trabalhadores que têm mantido as suas condições de trabalho intocáveis, independentemente de pertencerem ao sector dos serviços ou não (veja-se algum pessoal da construção e da indústria). Mais, há pessoas do sector dos serviços (vide turismo e comércio) que são das mais afectadas.

Lembremo-nos que, numa economia desenvolvida como a portuguesa, a esmagadora maioria das pessoas trabalham nos serviços, pelo que estar a dizer que são essas pessoas que têm que suportar os custos da pandemia não faz sentido.

Facto é que algumas empresas do sector tecnológico (vide o caso do Zoom) têm beneficiado enormemente com os confinamentos e a necessidade das pessoas praticarem o teletrabalho. Essas empresas, sim, que são beneficiárias extraordinárias da pandemia, deviam ajudar os perdedores extraordinários da pandemia (como as pessoas da restauração, do turismo, da hotelaria ou do comércio) que viram impossibilitada a continuação dos seus trabalhos. Aliás, no turismo e comércio, todos perderam: os grandes, os pequenos e os médios burgueses, assim como os assalariados de maiores ou menores qualificações, de maior ou menor salário, ou seja, das classes médias ao proletariado.

Acresce, ainda, que temos um conjunto de pessoas que não beneficiaram, nem perderam, financeiramente com a pandemia. Muitas dessas, é certo, fazem parte do sector dos serviços e estão em teletrabalho. Mas porque pedir a essas pessoas contribuições extraordinárias, se nada estão a lucrar com a pandemia?

Mais, estamos numa situação provocada por uma catástrofe natural, que a todos prejudica, que condiciona a nossa liberdade de movimentação e de expressão. E muitas das pessoas que a Susana Peralta classifica de “burgueses do teletrabalho” estão em casa, a ter que cuidar dos filhos em ensino à distância, em situações mais complexas do que aquelas que viviam quando podiam ir para os seus escritórios e deixar os seus filhos nas escolas.

Já que a palavra burguesia foi trazida à baila, convém usá-la com rigor técnico e científico.

Aliás, a classe social é, e nunca deixou de ser, a grande clivagem económica entre as pessoas numa sociedade capitalista: aquelas que detém os meios de produção e aquelas que dependem exclusivamente do trabalho para ganhar a vida.

Note-se ainda que, na burguesia, não se incluem os profissionais liberais (muitos em teletrabalho), por mais recibos verdes que passem, ou empresas em nome individual que possuam, já que a maior parte desses profissionais liberais nem o escritório detém (pagam renda ao senhorio).

Um profissional liberal, tipicamente, era enquadrado na classe média, dadas as suas maiores qualificações académicas e os rendimentos mais generosos que tendiam a auferir. Mas isso reporta-se a um tempo que já passou. Em Portugal, há 50 anos, ser arquitecto ou advogado correspondia a ter uma posição social interessante, com a autonomia de se ser profissional liberal (dono de si próprio) e com os rendimentos generosos que eram obtidos, dada a falta de concorrência, dada a falta de pessoas qualificadas nessas áreas.

Actualmente, arquitectos e advogados estão, genericamente, proletarizados. Pessoas que, muitas vezes, já não conseguem ser profissionais independentes, e vivem como assalariados a recibos verdes, sem direitos laborais, com baixíssimos salários. Tantos, acabam mesmo por desistir dessas áreas profissionais e empregam-se noutros sectores.

O mesmo se diga de médicos e enfermeiros, qualificações profissionais que, outrora, conferiam posições económicas muito favoráveis e, actualmente, se precarizaram e proletarizaram: veja-se a quantidade enorme de enfermeiros emigrados.

O que a massificação do ensino e a concorrência internacional trouxeram a um mercado laboral como português, foi uma absoluta precarização do trabalho intelectual.

O ensino superior, aliás, é um exemplo paradigmático de um mercado dual, em que há pessoas que estão confortavelmente instaladas em universidades públicas, com bons contratos e com total estabilidade laboral, enquanto outros, pouco mais novos, não conseguiram aceder a essas oportunidades e se vêem hoje enredados em contratos precários, em bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento, ou a dar aulas em universidades privadas por metade do salário e com contratos precários. O ensino superior, também ele, se precarizou.A reacção forte de crítica, que surgiu nas redes sociais, à proposta de SP, é bem demonstrativa de como as pessoas não se reviram na classificação de “burgueses do teletrabalho”, nem sequer privilegiados do sector dos serviços.

A grande maioria das pessoas que trabalham nos serviços em Portugal é proletária, a grande maioria das pessoas que, outrora, cabiam na classe média, hoje, estão proletarizadas.

Seria completamente injusto pedir a essas pessoas uma contribuição adicional para acorrer a uma crise, quando existem, sim, os verdadeiros burgueses do mundo virtual – pense-se nos donos do Facebook, da Google ou do Zoom, que estão a lucrar imensamente com esta crise; ou pense-se nos investidores dos mercados financeiros (que continuam a bater recordes de capitalização).

Se há proposta que faria sentido, mais do que nunca, é taxar os investimentos em bolsa, a especulação financeira e as grandes empresas da internet, que abusam do seu poder de mercado para retirar dividendos extraordinários, mesmo em tempos de pandemia.

Aliás, essa discussão já estava a ser tida antes da pandemia, por causa do aproveitamento de conteúdos que empresas como a Google ou Facebook fazem, sem nada contribuírem para isso, e que, recentemente, a Austrália está a tentar corrigir impondo um imposto a essas empresas. Mas, depois, já sabemos, o poder negocial dessas mesmas empresas, desses burgueses, é tal que, mesmo Estados têm muita dificuldade em competir à mesa das negociações com essas entidades de poder supranacional.

Numa altura de dificuldade e de polarização como a que estamos a atravessar, convém acertar o alvo. Vir dizer que quem deve pagar a crise é uma suposta classe média, que quase já não existe (ainda para mais chamando-a de burguesa), é dar um tiro ao lado.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 1 de Março de 2021


Thursday, February 11, 2021

UM IMPOSTO PARA A MENTIRA E SENSACIONALISMO

Uma ideia muito bem estabelecida na ciência económica diz respeito à importância da intervenção estatal quando nos deparamos com problemas de externalidades.

As externalidades dizem respeito aos efeitos que ocorrem na sociedade, ou em terceiros, e que não estão reflectidos nos preços nem nas decisões individuais de mercado. Nessas situações, as quantidades produzidas e transaccionados no mercado não representam bem os efeitos sociais, nem a satisfação das pessoas.
A difusão de mentiras e a abordagem sensacionalista aos conteúdos é um caso típico de externalidades. Isto é, quer os órgãos de comunicação social tradicional, quer as redes sociais, têm como modelo de negócio captar a atenção das pessoas para os seus conteúdos, nomeadamente para a publicidade que projectam.
A partir daí, com a utilização de conhecimentos da psicologia, do marketing e através de processos de tentativa e erro, estas empresas privadas vão adaptando os seus conteúdos e os seus modelos de negócio de forma a maximizar a atenção das pessoas. Quanto mais utilizadores “agarrados” tiverem, mais são as suas possibilidades de gerar receita.

Ora, acontece que os seres humanos são muito susceptíveis à novidade e ao extraordinário. Mais, são mais sensíveis às surpresas negativas do que às surpresas positivas.

Juntando tudo isto, é natural que os conteúdos disponibilizados nestas plataformas assumam uma natureza sensacionalista e/ou mentirosa. O sensacionalismo existe ao se dar atenção desmesurada ao excepcional, ao mal, à desgraça, à violência, ao medo, ao acidente, à morte. A mentira surge porque se quer enganar as pessoas, por causa de agendas próprias, ou porque as ideias passam melhor distorcendo a realidade, nomeadamente simplificando-a.

Estas empresas, na busca do seu lucro, calibram cada vez mais os seus conteúdos para essas dimensões. Os órgãos de comunicação social, avaliando as suas audiências. As redes sociais, ajustando os seus algoritmos de forma a viciar as pessoas no seu produto.

O problema surge quando se percebe que esta interacção livre de mercado – as pessoas não são obrigadas a ver certos programas, nem a estar nas redes sociais – acaba por ter efeitos perniciosos a nível colectivo, nomeadamente criando percepções distorcidas da realidade (que geram ansiedade, inveja, raiva, medo ou depressão) e incentivando comportamentos nocivos (violência e incivilidades).

Ao nível do sensacionalismo, temos as pessoas que vêem os programas sensacionalistas a passarem a acreditar, por exemplo, que Portugal é um país extremamente violento, cheio de pedófilos ou com graus inimagináveis de corrupção, quando os dados mostram o contrário: Portugal é um dos cinco países mais seguros do mundo, tem menos pedofilia que muitos outros e tem uma corrupção menor do que a percepção que as pessoas têm.

Ao nível das redes sociais, temos a propagação de informações falsas, com factos inventados ou manipulados, que tem consequências perigosas, tanto ao nível das percepções, como dos comportamentos, com pessoas a mudarem o seu sentido de voto ou a terem determinadas atitudes sociais, como não usar máscara durante uma pandemia, porque leram nas redes sociais que as máscaras não funcionam.

O fenómeno Trump pode até ser estudado como uma experiência natural dos efeitos perniciosos da circulação de mentiras nas redes sociais e do sensacionalismo televisivo (onde ele nasceu): a eleição de um presidente inepto na democracia mais rica do mundo.

Como vivemos numa economia de mercado, não podemos ficar à espera que as empresas tenham outro comportamento que não a busca incessante do lucro. E, como as regulamentações proibicionistas costumam ser mal acatadas pelas populações e acusadas de serem censura, acredito que se deve combater este fenómeno com outras ferramentas.

Assim, e seguindo a lógica standard da economia para correcção de externalidades, aquilo que deve suceder é a imposição de incentivos negativos à divulgação das mentiras e à utilização do sensacionalismo.

Em particular, sugiro a criação de impostos para esses conteúdos.

Com isso, as empresas que gerem as plataformas de difusão terão a liberdade de escolher o que fazem: deixar circular mentiras e/ou adoptarem uma abordagem sensacionalista, mas ficarem sujeitas a altos impostos, ou fazerem uma regulação daquilo que deixam passar, livrando-se, assim, dessas cargas tributárias.

Os algoritmos, no caso das redes sociais, e os directores, no caso dos órgãos de comunicação social, conseguiriam muito facilmente fazer esse filtro.

Seja no futebol, na política, no crime ou na sociedade, o enquadramento tablóide deveria pagar imposto. Nas redes sociais, as teorias da conspiração e todas as outras mentiras que pululam, deviam ser castigadas monetariamente.

As pressões públicas que têm sido feitas sobre as empresas das redes, para controlarem alguns destes problemas, começam a dar frutos – veja-se a recente decisão do Facebook de banir do Facebook e Instagram as mentiras acerca das vacinas contra a Covid-19, e outras relacionadas com a pandemia, assim como de encerrar os grupos que propagandeiam esses mentiras.

Também o jornalismo de investigação – como a exposição que Miguel Carvalho fez das ligações dos “médicos pela verdade” ao Chega – ou de fact-checking (como o “Polígrafo”), ajudam no combate a esta poluição informativa e à eliminação de algumas teias da mentira. Mas não é suficiente. Já para não falar da inépcia das entidades reguladoras, que não têm sido capazes de
controlar este problema.

Acreditem, só no dia em que se começar a ir aos lucros destas empresas é que elas tomarão atitudes definitivas, e serão as primeiras a acabar com a selvajaria e com o lixo comunicacional.

Gabriel Leite Mota, publicado a 11 de Fevereiro de 2021




Monday, January 11, 2021

EUA: UMA NAÇÃO SUBDESENVOLVIDA

A tentativa de golpe de Estado que aconteceu no dia 6 de Janeiro de 2021 nos EUA, protagonizada por arruaceiros incitados pelo presidente derrotado Donald Trump, é, nas palavras do anterior presidente George W. Bush, própria de uma “república das bananas”.

Parece paradoxal que tal atentado à democracia, e ao regular funcionamento das instituições, aconteça naquela que tem sido a maior potencial mundial. Mas, uma análise cuidada mostra que tal não é surpreendente: na verdade, os EUA são uma nação subdesenvolvida e uma democracia debilitada.

Se é certo que os EUA são a maior economia do mundo, a maior potência militar mundial, a pátria de 1/3 de todos os bilionários (segundo a revista Forbes) e o país com mais bilionários em todo o mundo, a sua grandeza fica-se por aí.

É verdade que os EUA são sede de muitas multinacionais, dispõem de muitas patentes (logo, inovação tecnológica) e até empregam (nas suas universidades de topo) muitos prémios Nobel. Mas isso é a causa e consequência do seu foco na criação de riqueza material.

De resto, os EUA são uma nação subdesenvolvida ou, pelo menos, ultra-ineficiente na utilização da riqueza produzida para a criação de um país sustentável, equilibrado e feliz.

As estatísticas são claras:

- na esperança média de vida (EMV), os EUA estavam, em 2018, na 47ª posição no ranking mundial, imediatamente acima da Albânia (48º) e atrás de Cuba (45º), da Costa Rica (36º) ou de Portugal (30º). Os EUA são, também, o país que mais gasta, per capita, em despesas de saúde em % do PIB (16,89% em 2018), com os fracos resultados atestados pela relativamente baixa EMV, o que comprova a sua gritante ineficiência na produção de saúde.

- ainda na saúde, os EUA estão na posição 47 na taxa de moralidade de crianças até aos 5 anos, com 6,5 mortes por mil nascimentos, atrás de Portugal (na posição 28, com 3,7) ou da Islândia (no segundo lugar, com apenas 2 mortes por mil nascimentos); é ainda, na OCDE, dos únicos países que não tem 100% da população coberta por serviços de saúde, com apenas 91,2% da população protegida dos riscos de saúde devido à inexistência de um serviço nacional de saúde universal.

- na educação, estão na posição 66 (numa lista de 191 países) no que respeita a gastos em educação em % do PIB, gastando apenas 5% do PIB, contra os 8% da Noruega (na posição 8) ou os 12,9% de Cuba, que lidera a lista.

- por outro lado, é um país em constante guerra consigo próprio e com os outros, sendo dos países com mais despesas militares per capita, estando na 3ª posição (atrás de Israel e da Arábia Saudita, numa lista de 172 países); é o país do mundo onde existem mais armas na posse de civis (uma média de 1,2 armas por civil, mais do dobro do segundo mais armado, a Arábia Saudita, com 0,5 armas por civil); o país do mundo com mais encarcerados por cem mil habitantes, 655 (contra 125 em Portugal, 120 na China e 39 no Japão); é um país onde morrem, por ano, cerca de 5 pessoas por cada cem mil habitantes vítimas de homicídio, o pior registo entre os países ricos (só ultrapassado pelas 8,21 da Rússia), contra uns muito mais civilizados 0,79 de Portugal.

- é um país muito poluidor, emitindo 16,1 toneladas de CO2 per capita, por ano, quando outras potências económicas, como o Japão ou a China, emitem cerca de metade, 9,4 e 8 toneladas per capita, respectivamente; ao nível da pegada ecológica, ocupa a quinta aposição mundial como mais gastador dos recursos naturais do planeta, com 8,22 hectares globais por pessoa, enquanto que Portugal gasta apenas 3,88 hectares globais por pessoa (posição 60) e o Japão 5 hectares globais por pessoa (posição 42).

- é o país rico com maior desigualdade na distribuição do rendimento, com os 10% mais ricos a terem um rendimento 18,5 vezes maior do que o dos 10% mais pobres (tão desigual como o Ruanda com 18,6 ou a Venezuela com 18,8), contra umas muito menores 5,6 vezes na Finlândia e 4,5 vezes no Japão (modelos neste indicador); é ainda uma nação em que as pessoas são completamente desprotegidas face a situações de carência no rendimento, uma vez que o rendimento mínimo garantido nos EUA apenas garante 6% do rendimento disponível mediano da nação, enquanto que no Japão esse valor é de 64%, na Dinamarca 62% e na Irlanda 59% (os líderes da tabela).

- é um país com uma elevada taxa de suicídios, com 13,7 suicídios por cem mil habitantes, o quarto maior número de entre os países ricos (pior só a Bélgica com 15,7, o Japão com 14,3 e a Suécia com 13,8), muito longe de Portugal que tem 8,6 ou da Itália com 5,5; Ao mesmo tempo, é o país do mundo com a mais alta prevalência de consumo de cocaína, com 2,7% da população entre os 15 e os 65 anos a terem, num dado ano, consumido pelo menos uma vez cocaína, contra os apenas 0,2% de Portugal ou 0,03% do Japão.

- é um país que tem uma posição muito abaixo do que devia, face à riqueza produzida, no ranking mundial da felicidade, ocupando a 18ª posição, ultrapassado pela Costa Rica (15ª posição) e seguido pela República Checa (19ª posição).

É uma nação confessional, que tem escrito nas suas notas “Acreditamos em Deus”, pátria de múltiplas confissões religiosas como os Mórmons, a Cientologia ou múltiplos credos evangélicos, que permite o ensino do criacionismo ou do terra-planismo, o que facilita a criação de gente dogmática que acredita em tudo que vê nas redes sociais, ou o que é dito por vigaristas carismáticos (como Trump), alimentado teorias da conspiração e a propagação de mentiras.

É uma democracia muito dependente do poder do dinheiro, apenas com dois partidos, com um sistema não proporcional com círculos uninominais, o que facilita a ascensão de loucos ao poder (e que alguns querem importar para Portugal não falando deste grave risco), mesmo contra a vontade da maioria (como na eleição de Trump).

É um país que tem um modelo de sociedade baseado no risco e no medo (de perder o emprego, de ir preso, de levar um tiro) e que gasta imensos recursos em litigância e seguros. Funciona para criar empresas dinâmicas e domínio militar à escala global, mas não para gerar sustentabilidade mundial nem felicidade interna.

Os fanáticos alucinados que invadiram o Capitólio foram atrás de Trump, mas podem ir atrás de qualquer manipulador do mesmo tipo que consiga chegar ao poder. E, da próxima vez, pode não haver volta, e criar-se uma ditadura nos EUA (como previu Margaret Atwood, em 1985, no seu romance Handmaid’s Tale).

Há, nos EUA, uma base assustadoramente grande de insanos (alguns mesmo no sentido clínico do termo) que não tem paralelo nas ouras nações desenvolvidas (veja-se o vizinho Canadá) e que se manifesta nos tiroteios nas escolas, na violência nos bairros pobres ou nas organizações ou movimentos dementes como o KKK ou o QAnon. Numa nação civilizada essa base seria clinicamente tratada e atacadas as condições que a deixam crescer: nomeadamente a pobreza, a desigualdade, o fanatismo e a anomia social.

É uma nação não humanista em que ainda existe a pena de morte.

Uma nação assim, não pode ser o farol do mundo.

É tempo da Europa assumir esse papel.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 11 de Janeiro de 2021


Thursday, December 3, 2020

LEFTIST, AGAISNT ALL DICTATORSHIPS

I consider my self a left-winger because I believe humans are more equal that different (those who do not agree with this definition might stop reading this text, as this definition will be used by default for all arguments).

Thursday, November 19, 2020

COMMUNISM NEVER EXISTED, FASCISM AND NAZISM DID

Tem sido motivo de aceso debate o acordo de governo que CDS, PPM, PSD, Chega e IL fizeram no Açores. Nesse acordo, ficou estabelecido que PSD, CDS e PPM governam em coligação, com o beneplácito parlamentar de Chega e IL.

Thursday, October 8, 2020

HAPPINESS SCIENCE AS A SOLUTION

A ciência no século XXI tem três principais caminhos: a biotecnologia, as novas fontes energéticas e o estudo da felicidade.

Se a biotecnologia e os problemas energéticos têm tido atenção mediática, o estudo científico da felicidade tem passado mais despercebido.

Thursday, July 16, 2020

MIGALHAS

No séc. XIX, o capitalismo estava pouquíssimo calibrado para os problemas sociais. E se se apontasse essa realidade, logo surgiam os que argumentavam que isso não era bem assim. Afinal, como num sistema hidráulico, havia sempre umas fugas que permitiam que a riqueza que se acumulava no topo fosse sendo distribuída pelo resto da pirâmide social.

Thursday, May 7, 2020

CONTACTO (IN)SEGURO

Um dos grandes feitos da humanidade, responsável maior pela prosperidade material hoje conseguida, foi o aprender a confiar em estranhos (como refere Harari). Ainda que enquadrado por instituições e regras entretanto criadas, foi essa capacidade de não confiar só nos mais próximos, nos que se conhece, que permitiu que a humanidade se ligasse à escala mundial e construísse o mercado global.

Thursday, April 23, 2020

MEDIDAS PÓS COVID-19 II

No meu artigo anterior explanei algumas medidas que penso serem essenciais para um bom funcionamento da sociedade e da economia, enquanto convivemos com esta pandemia, e para o pós-pandemia.

Por uma produção amiga da felicidade

"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos...