Wednesday, May 19, 2021

DA IMPOTÊNCIA DO PIB

 
Há inúmera literatura científica demonstrativa de que, a partir de certos patamares de riqueza, o crescimento continuado do PIB per capita perde a sua potência de gerar bem-estar. Em concreto, a partir dos 30.000 dólares anuais de PIB per capita, o crescimento económico deixa de estar inequivocamente correlacionado com maiores níveis de bem-estar, de felicidade.

Este é um resultado robusto, que pode ser ilustrado pelo gráfico abaixo.  Aí, podemos ver como a nuvem de pontos, representativa dos países nos seus níveis de felicidade e de PIBpc, deixa de apresentar uma tendência linear e positiva (como sucede até aos 30.000 dólares), para passar a ser de tendência indefinida. Esta evidência empírica encerra uma lição política importantíssima: a partir dos 30.000 USD de PIBpc, importa muito mais o tipo de crescimento económico, ou o que se faz além desse crescimento, do que o crescimento em si.

Embora as razões explicativas para este fenómeno sejam diversas e já bem discutidas na literatura, a base do argumento é de compreensão simples: quando já reunimos as condições materiais suficientes para suprirmos as nossas necessidades mais importantes, a riqueza adicional é gasta no supérfluo, que tem retornos muito menores na nossa felicidade.

Mais, se para continuarmos a crescer economicamente prejudicarmos dimensões fundamentais do nosso bem-estar como o sono, a saúde mental, se aumentarmos o stress, a competitividade e o consumismo, diminuirmos os bens relacionais e a confiança, estaremos a diminuir a nossa felicidade, apesar de dispomos de mais bens e serviços.

Apesar de haver toda esta evidência científica, e de se realizarem fóruns onde se debatem estes problemas, tarda em os países assumirem as verdadeiras consequências deste facto. Ainda recentemente, a propósito da Cimeira Social da UE, que decorreu no Porto, um dos responsáveis europeus dizia que, por palavras mais elegantes, “isto do social é muito bonito, mas o que verdadeiramente interessa é o PIB”.

Confesso que, como estudioso do tema desde 2004, já me cansa este discurso estafado do PIB, este dogma anti-realista. Para um bloco económico rico como a Europa, já não é o crescimento do PIBpc o que verdadeiramente interessa, mas sim a coesão social, a sustentabilidade ambiental, a democracia e a diminuição das desigualdades.

Em Portugal, também abundam os religiosos do PIB, principalmente entre os economistas e os políticos, que se exibem ignorantes perante a realidade (um traço infeliz de muitos economistas).

É verdade que Portugal, sendo dos mais pobres da Europa, beneficiará com o crescimento económico. Porém, já tem um nível de riqueza que faz com que a questão mais importante seja a da qualidade e não a da quantidade. Vamos crescer aumentando salários e combatendo a precariedade (algo que, p. ex., o turismo não tem sido capaz de fazer)?  Vamos crescer libertando tempo-livre e promovendo a saúde mental (ou vamos aumentar as cargas laborais e potenciar o burnout)?

Vamos crescer respeitando a sustentabilidade ambiental (ou vamos esgotar os recursos e destruir a paisagem)? Vamos crescer diminuindo as desigualdades e a pobreza (ou aceitamos alegremente o aumento imoral nas diferenças salarias)?

No fundo, e voltando aos dados espelhados no gráfico acima, de nada nos valerá crescer muito para ficarmos como Hong-Kong (que é mais infeliz do que nós) e de pouco nos servirá crescer para o nível do Qatar (que é muito mais rico e pouco mais feliz), mas já compensará crescer (ainda que muito menos) para sermos como a Nova Zelândia ou a Finlândia. Mais, através dos dados, constatamos que podíamos até ficar mais pobres e sermos mais felizes, como sucede na Costa Rica ou no Uruguai, ou, quase mantendo a riqueza, aumentar a felicidade para os níveis da Eslováquia.

Enfim, a Europa (e Portugal) tem que ter coragem de encarar a realidade e perceber que não estamos perante um problema de quantidade, mas de qualidade. Só percebendo isto e desenhando as políticas adequadas, conseguiremos uma Europa e um Portugal mais felizes.

Contra a impotência do PIB, temos a potência dos bens relacionais, do capital social e da inovação comunitária. É esse o caminho da felicidade.



Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 19 de Maio de 2021


Wednesday, May 5, 2021

EXTREMISMOS

Um dos temas que mais tem estado em discussão nos últimos tempos tem sido o suposto incremento do extremismo na política, com o ganho de preponderância dos partidos ou líderes que defendem propostas mais distantes dos tradicionais centros políticos. Em particular, tem-se verificado o crescimento, nas democracias, dos partidos de extrema-direita e da direita populista (que também é extremada). Ao mesmo tempo, há quem identifique movimentos simétricos à esquerda, como a extrema-esquerda e a esquerda populista (ex: Podemos em Espanha).

Em Portugal, este fenómeno materializou-se através do surgimento do Chega, mas também através de alguns políticos ou candidatos do PSD (vide Suzana Garcia) e do CDS (a Tendência Esperança em Movimento). Por outro lado, há a acusação de que o PS sucumbiu ao extremismo, ao ter aceitado o PCP e o Bloco de Esquerda como partidos de suporte ao seu governo, aquando da geringonça.

À escala internacional temos Bolsonaro, Marine Le Pen, Erdogan ou Orbán (e tivemos Trump) como exemplos paradigmáticos da força desse extremismo. No Parlamento Europeu, até já há um grupo político que congrega estes extremistas, o grupo “Identidade e Democracia”.

Para muitos analistas, este é um problema, uma malignidade democrática que urge eliminar. Mas vejamos com mais atenção: a classificação de alguém, ou de algum partido, como extremista não pode ser vista, de imediato, como um atestado de aberração ou indigência moral. Na verdade, extremismo é sempre uma medida da distância face ao centro, não um qualificativo de mal. Aliás, se o centro for a barbárie, num extremismo oposto estará a virtude. Se no centro for a violência, no extremo oposto está o pacifismo.

Ao longo da história, são inúmeros os exemplos de extremistas que, hoje, seriam classificados de heróis morais. Desde Galileu a Gandhi, passando pelo Padre António Vieira, Francisco de Assis, Hypátia ou Olympe de Gouges, são inúmeros os exemplos daqueles que tinham ideias extremadas à época e que, hoje, são consideradas as ideias certas.

Não penso, portanto, que a discussão política deva ser feita no maniqueísmo “extremos mal”, “centros bem”. O que tem que ser feito é, cada um, estabelecer os seus padrões morais e encontrar os representantes políticos que mais se enquadrem nesses padrões.

Inevitavelmente, teremos pessoas com diferentes padrões morais. Em democracia, impor-se-á o padrão moral maioritário, o que não quer dizer que seja um bom padrão moral. Por isso, pouco importa o classificativo extremista.

Ao avaliarmos um partido como o Chega é irrelevante o classificativo “extremista”. O que temos que fazer é avaliar as suas propostas concretas e a ideologia subjacente. Se o Chega tivesse uma maioria absoluta, deixaria de ser um partido extremista e passaria a ser um partido do centro, um novo centro é certo, mas centro, porque teria havido uma inflexão moral no povo português.

Quem é contra as propostas anti-humanistas do Chega, pouco importa se o Chega é extremista ou representa o centro, será sempre contra essas propostas. É o conteúdo das políticas que tem que ser discutido, sendo irrelevante o adjectivo extremista (seja de esquerda ou de direita). Curiosamente, até já há aqueles que se querem apelidar de radicais do centro…

Entendamo-nos: em democracia, há lugar para todas as opiniões, estejam elas mais próximas ou mais afastadas do centro circunstancial. E o combate ideológico tem que ser feito no campo das ideias, não no campo dos adjectivos ou dos epítetos.

Alguém que, por exemplo, entenda que o capitalismo actual está a ser nocivo à sociedade e ao planeta, e defenda um outro sistema económico, será classificado de extremista. Acontece que até pode estar cheio de razão. Ou seja, classificar alguém de extremista nada diz sobre a pessoa classificada, mas diz muito sobre quem qualifica: quer rotular e não quer debater os méritos das ideias.

Eu não me importo nada que me chamem extremista na minha defesa do humanismo (que impede a pena de morte, ou qualquer tipo de castração física penal) ou na minha intransigência para com todas as formas de ditadura e de subjugação (pondo a democracia sempre à frente das ditaduras) ou ainda na defesa de um Estado Social “à países nórdicos” que muitos, hoje, consideram um extremismo socialista…

Uma democracia só é forte quando sabemos debater ideias sem insultar ou tentar diminuir os outros. Façamos esse processo de maturação.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 5 de Maio de 2021


Por uma produção amiga da felicidade

"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos...