Monday, June 14, 2021

AS PESSOAS QUE ODEIAM ABRIL


Tem sido tema de debate as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril, que agora conheceram o seu comissário. À direita, houve grande alarido pela escolha de Pedro Adão e Silva. Parece-me muito pouco interessante discutir os detalhes das comemorações, assim como a escolha que foi feita. Muito mais profundo é o debate acerca da reacção.

Na verdade, desde que a Iniciativa Liberal e o Chega ganharam representação parlamentar, as celebrações anuais do 25 de Abril têm sido objecto de ataque, seja à festa em si, seja à relevância da Revolução como evento benéfico para Portugal.

A Iniciativa Liberal expressa, essencialmente, o seu fascínio pelo 25 de Novembro, não aceitando dissociar a democracia que temos dessa data posterior. Já o Chega vai mais longe e diz que a República que emergiu do 25 de Abril (e do 25 de Novembro) é uma República podre e corrupta, e que temos que avançar para uma nova era.

No PSD e no CDS, que são partidos da fundação da democracia, as críticas tendem a não ser tão explícitas, embora existam há muito (só vocalizadas na autonomia madeirense, por Alberto João Jardim). Na prática, à medida que o tempo passa, fica cada vez mais fácil, para aqueles que nunca gostaram do 25 de Abril, criticá-lo.

É fundamental entender que o 25 de Abril não foi uma transição pacífica de um modelo político para outro. O 25 de Abril foi uma revolução, foi um golpe de Estado, um golpe militar praticado por jovens capitães (não por Marechais instalados) que, só depois, obteve alargadíssimo apoio popular. Isso significa que o 25 de Abril foi a vitória de muitos, mas a derrota de outros.

Acontece que esses que perderam ainda existem, têm descendentes e nem sequer são poucos. Se somarmos todos os que estavam bem instalados no regime ditatorial (seja em funções públicas – de PIDE a parlamentares, passando por magistrados – seja nas grandes empresas amigas do regime), os que tinham vastas propriedades em território nacional, ou nos territórios ultramarinos, e todas as pessoas que perderam as suas posses, e até o seu país, com a descolonização, vamos apanhar muitíssimos perdedores de Abril.

Há muitos portugueses que ficaram pior depois desse dia. É entre essas pessoas que mais encontramos aqueles que nunca gostaram da data, nunca a celebraram, mas foram mantendo o seu ressentimento mais escondido. À medida que o tempo passa, e o “ar do regime” vai mudando, esses ressabiamentos ficam mais livres para emergir.

De facto, é nestes últimos tempos que temos visto muita gente ligada aos perdedores de Abril a aproveitarem tudo para minimizar os ganhos da Revolução, argumentando que a Revolução conduziu a um regime democrático, mas corrupto e pobre, ou tentando suavizar o fascismo com narrativas de que, afinal, o fascismo nem era assim tão mau, que até alfabetizou as crianças e fez o PIB convergir com a Europa.

O 25 de Abril fez-se para acabar com a guerra colonial (a morte de muitos jovens e o sofrimento vão de muitas famílias) e implantar uma democracia liberal, e teve o apoio popular imediato porque o regime estava podre, pobre e era imbecil.

Aliás, comparando a evolução do desenvolvimento humano de Portugal, durante a ditadura e em democracia, torna-se cristalino o quanto a ditadura foi má para a esmagadora maioria dos portugueses, e a democracia benéfica para a maioria, nomeadamente para os mais pobres e para uma classe média que, entretanto, se formou.

Mas há aqueles que tinham beneficiado mais se o regime tivesse continuado ditatorial e tivesse havido uma transição gradual para um regime de democracia musculada (que muito agradaria aos que odeiam Abril).

Se é verdade que muitos donos de grandes empresas do Estado Novo recuperaram o seu poder a partir dos anos 80/90 (a tempo de perpetuarem a nossa fragilidade económica – veja-se o caso de Ricardo Salgado e da família Espírito Santo), outros há que não conseguiram tal recuperação, pelo que estariam melhor se nunca tivesse existido o 25 de Abril.

Quando se pretende celebrar os 50 anos do 25 de Abril, obviamente, está-se a celebrar o regime que existe, o Portugal que existe, a democracia que existe e, sim, os que venceram com Abril (que são a grande maioria dos portugueses). Não é, portanto, de espantar que os que perderam não sejam grandes fãs da festa.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 14 de Junho de 2021

Wednesday, June 2, 2021

O CRESCIMENTO ECONÓMICO E O SECURITARISMO NÃO SÃO INSPIRADORES

Em Portugal, os partidos políticos situados à direita do PS têm tido dificuldade em se recomporem da derrota eleitoral sofrida em 2015 (sim, os vencedores são aqueles que conseguem formar governo com apoio parlamentar maioritário). Mais, tendo o PS sido capaz de estabilizar as contas públicas, sem impor uma prática e uma retórica de austeridade e punição, a direita portuguesa congelou.

Os fantasmas invocados acerca da geringonça (que vinha aí o comunismo e a “venezuelização” de Portugal) permaneceram no mundo dos espectros. Na prática, entre 2015 e 2019, houve crescimento económico, criação de empregos, diminuição da emigração, explosão turística e até alguma convergência com a Europa. A ideia de que a esquerda não sabe fazer contas, caiu por terra.

Mas a direita ainda tinha uma esperança: o diabo. Estaria para vir o diabo, um qualquer desastre económico que provocaria uma nova bancarrota e uma nova intervenção externa. E não é que veio mesmo?

No fim de 2019, uma pandemia, como não se via há cem anos, atingiu o mundo e obrigou ao fechamento das economias, causando recessões globais sem precedentes históricos. Mas, onde está a implosão do governo? Em vez de troikas e austeridade, o mundo ocidental pôs-se de acordo que é preciso salvar as economias, injectando tanto dinheiro quando for necessário para a reanimação das ditas, quase sem condições.

Todos estes factos têm desorientado profundamente as direitas.

Na prática, isso tem originado uma fragmentação partidária (com o surgimento em força do Chega e da IL) que, como mostram as sondagens e os actos eleitorais, não somam votos para a direita, apenas os repartem doutra forma, penalizando o PSD e o CDS.

Do ponto de vista ideológico, a estratégia tem passado pelo extremar de posições, com o Chega a cavalgar a bandeira do securitarismo e do conservadorismo, a IL a do neoliberalismo. Acontece que nenhuma dessas bandeiras é particularmente inspiradora, entusiasmante ou mobilizadora, ainda para mais quando são agitadas sempre contra qualquer coisa, muito mais do que a favor.

O farol securitário tem muito pouco apelo em Portugal, que é só um dos países mais seguros e pacíficos do mundo, por mais que os média sensacionalistas chafurdem na lama da realidade. Não temos máfias como outros, não temos problemas de integridade do território, nem sequer estamos “invadidos” por imigrantes. É normal que esta não seja a questão que mais preocupa os portugueses.

Quanto ao conservadorismo, apesar de católico, Portugal não é um país fanático e, desde 1974, temos sido pioneiros na aprovação de leis progressistas nos costumes, com grande apoio popular.

Quando ao endeusamento do mercado, também não é religião a que os portugueses sejam muito sensíveis: apesar de se queixarem dos serviços do Estado, e de se queixarem dos impostos pagos, muitos portugueses recebem dinheiro do Estado (seja através de salários, de pensões, de subsídios ou de recebimentos por vendas ao Estado) e sabem que é o Estado a sua derradeira segurança. Ao mesmo tempo, a desconfiança que têm para com o Estado também têm para com as empresas privadas. Sentem-se, muitas vezes, enganados e maltratados por estas, seja enquanto clientes, seja enquanto trabalhadores.

Os portugueses estão, também, cientes das profundas desigualdades do país e têm noção que o crescimento económico não é uma panaceia para esse problema.

Um discurso, para ser mobilizador, necessita de ser positivo, prometer um futuro melhor, não para o país, mas para as pessoas. Um futuro onde os que ganhem pouco passem a ganhar mais, onde se trabalhe menos e haja mais tempo para o lazer e para a família, onde exista verdadeira mobilidade social, mais empregos, menos poluição, mais sustentabilidade ambiental, menos solidão, menos desemprego, mais igualdade entre géneros, etnias, grupos etários e regiões, melhor mobilidade urbana, melhores serviços públicos e privados e menos corrupção. Um discurso mobilizador é também aquele que já está a pensar nos eleitores do futuro, não só naqueles que, daqui a 15 anos, já não existem. Acontece que a direita tem-se alheado desta perspectiva.

O Chega quer cavalgar as frustrações e o ódio, e glorifica o nosso passado obscuro, ao retardador de um Trump que já foi corrido, de um Bolsonaro que está para ser e de uma Le Pen que nunca chega ao poder. Tem um discurso pela negativa, contra certas pessoas que considera “as de mal” e vê vergonhas em todo o lado.

A IL demoniza os impostos – num país onde muita gente já não paga impostos (50% da população não paga IRS e muitas empresas não pagam IRC por falta de lucros…) – insurge-se contra o Estado (vendo socialismo em toda a parte) e mistifica a iniciativa privada – num país onde foi através do emprego público que se criou o grande elevador social no pós 25 de Abril e onde ainda é no Estado que se encontram muitas das melhores condições de trabalho em certas profissões qualificadas. Tem um discurso pela negativa, contra o Estado. Sendo que o Estado são pessoas, é um discurso contra muita gente.

O PSD e o CDS andam perdidos. A direita, assim, não mobiliza gente suficiente.

A felicidade, com já referi muitas vezes (e a ciência o comprova), não está no crescimento do PIB, está na satisfação holística das diferentes dimensões da vida e na redução das distâncias sociais e económicas entre todos.

Só quem entender isso, e mostrar que tem políticas de qualidade, capazes de melhorar a vida de todos e cada um (sendo que uma vida melhor não se mede pelo nível de consumo), terá a capacidade de mobilizar eleitorado, principalmente se quiser tirar o poder ao PS. Caso contrário, as pessoas preferem ficar como estão.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 2 de Junho de 2021


Por uma produção amiga da felicidade

"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos...