Monday, July 12, 2021

TOMATE CHERRY SIM, NEO-ESCRAVATURA NÃO

Um dos argumentos utilizados na defesa da globalização económica é a ideia de que as empresas, ao procurarem maximizar a sua rentabilidade, acabam por beneficiar as pessoas que mais precisam de trabalho, livrando-as da pobreza.

Em concreto, as empresas dos países ricos, ao se deslocalizarem para os países mais pobres, acabariam por empregar as pessoas mais pobres, fazendo com que essas pessoas, e esses países, ficassem melhor economicamente.

Da mesma forma, quando se dão movimentos de migração de pessoas pobres em direcção aos países mais ricos, as empresas que operam em sectores de menores salários dariam emprego a essa mão-de-obra imigrante, que estaria disposta a trabalhar em condições, e por preços, que os trabalhadores nacionais não aceitam.
Para além disso, as pessoas dos países ricos beneficiariam destas dinâmicas, pois passariam a poder comprar bens e serviços a preços que, de outra forma, não conseguiriam.

Como sucede na maior parte dos argumentos demagógicos, há uma parte de verdade na explanação acima. De facto, quer a deslocalização das empresas dos países ricos para os países pobres, quer a migração de pessoas dos países pobres para os países ricos, têm permitido tirar algumas pessoas da pobreza absoluta, mas a um custo elevado. Esse custo materializa-se no desemprego provocado nos países mais desenvolvidos, na poluição que “emigra” para esses países pobres (mas que contamina o globo) e no retrocesso civilizacional que estas empresas acabam por pôr em prática, nomeadamente ao nível dos direitos laborais, na medida em que praticam salários de miséria, cargas horárias excessivas, precariedade, ausência de seguros de trabalho e baixíssimas condições de salubridade.

O argumento só seria verdadeiro se as empresas dos países desenvolvidos, ao deslocalizarem-se, empregassem as pessoas dos países mais pobres com salários decentes, com horários laborais de padrão ocidental (8 horas diárias, 40 horas por semana), férias pagas, seguros de doença e permitissem a existência de sindicatos. Para além disso, essas empresas teriam que respeitar, nos países pobres, as normativas ambientais que respeitam no ocidente. O mesmo se diga do aproveitamento da mão-de-obra imigrante nos países ricos, tantas vezes ilegal, que, na prática, cria um mercado de trabalho paralelo, sem direitos, uma autêntica exploração do desespero.

Em Portugal, a pandemia acabou por destapar vários exemplos de más práticas deste tipo, perpetradas por empresários do sector agrícola, que exploram populações imigrantes, e que ainda tiveram o desplante de se agarrarem a este tipo de demagogia: ouvir um representante dos proprietários das explorações agrícolas da Costa Vicentina (produtoras de frutos vermelhos e tomate Cherry) dizer que se não fossem eles a empregar estas populações imigrantes (a ganharem tão pouco e a viverem nas condições tão más em que vivem, leia-se), não seria possível o consumidor português ter acesso a tomate Cherry, é uma afronta.

Essas explorações agrícolas não têm que ser centros de exploração do desespero dos trabalhadores. Têm é que respeitar as leis nacionais, a dignidade do trabalho e, das duas, uma: ou baixam a sua taxa de lucro para pagarem decentemente aos trabalhadores e respeitarem os direitos laborais, ou sobem o preço do tomate Cherry, e logo vêem o que acontece à sua procura no mercado. Agora, argumentar que só é possível termos tomate Cherry à venda nos supermercados se se praticar esta neo-escravatura sobre as populações migrantes é um argumento miserável. E nem sequer é novo: era exactamente isso que os esclavagistas norte-americanos argumentavam antes da guerra civil, dizendo que as plantações de algodão não eram rentáveis senão com trabalho escravo. A história mostrou que, obviamente, esse argumento era mentiroso, e apenas protector desses péssimos “empresários”.

Se há alguém que está mal, e que tem que sair no meio desta história toda, são os empresários que não sabem ganhar dinheiro senão com neo-escravatura.


Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Público a 12 de Julho de 2021



Tuesday, July 6, 2021

PARA PORTUGAL, A HOMOSSEXUALIDADE É MORAL



Foi notícia, outra vez, o caso de dois estudantes cujos pais os impedem de frequentar as aulas de cidadania, com o argumento de que questões de sexualidade e de moral não são da competência da escola, apenas da família.

Acontece que, num Estado democrático, com sistema de ensino obrigatório, os conteúdos leccionados não se restringem à ciência: passam pela história, pela cultura, pela filosofia, pelo direito, ou seja, passam pelos valores morais.

Se pegarmos no caso da homossexualidade, podemos, inclusivamente, constatar que, quer a ciência, quer a história, quer o direito, têm muito a dizer sobre ela. A ciência, porque já a considerou uma doença, e hoje não considera, antes a estuda e tenta compreender os seus determinantes genéticos, epigenéticos e sociais; historicamente, é um tema de grande relevância, face às oscilações de frequência e aceitação que a homossexualidade foi tendo ao longo da história – lembremo-nos dos gregos e romanos, que a aceitavam tranquilamente; do ponto de vista do direito, é também um tema fundamental, pois que o enquadramento da homossexualidade no quadro jurídico tem vindo a variar, desde os tempos em que era criminalizada e penalizada, até à actualidade, em que os homossexuais se podem casar, podem adotar crianças ou, recorrendo a inseminação artificial ou barrigas de aluguer, terem filhos próprios (ex: pode gerar-se uma criança no ventre de uma mulher, com óvulos da companheira, numa relação lésbica); na filosofia, importa discutir o papel da sexualidade na vida, mostrando as várias visões possíveis, desde aquelas que concebem a sexualidade apenas como um meio para a reprodução, até outras que a concebem, essencialmente, como um meio para o prazer.

É, assim, completamente errada a posição daqueles que acham que à escola não cabe a discussão de certos temas porque têm cargas valorativas e morais.

Aliás, o texto fundamental da nossa democracia, a Constituição da República Portuguesa, é um sumário desses mesmos valores. E a consideração dos direitos humanos nesse documento significa que, para Portugal, a homossexualidade é moral (o amor recíproco entre seres humanos é sempre moral), e isso tem que ser ensinado.

Certo é que há pessoas que pensam diferente, porque assim vem escrito em livros com mais de 2000 anos. Mas essa não é a posição de Portugal. As famílias têm todo o direito de ensinar a moral que quiserem às suas crianças, não podem é impedir que o país, através do seu sistema de ensino obrigatório, transmita aos estudantes a moral da nação, e as diferentes visões científicas e filosóficas sobre os problemas.

Quem se incomodar muito com isso, sempre pode emigrar para nações que tenham uma visão moral mais perto da sua, nomeadamente países como a Arábia Saudita ou o Irão.

Na Europa, o padrão é o respeito pelos direitos humanos, pelo que se tende a impedir essas visões fanáticas, apesar dos maus exemplos como a Hungria ou a Polónia.

Esta problemática está, também, a ser discutida em Itália, com o parlamento a querer aprovar uma lei que penaliza o discurso de ódio e discriminatório, nomeadamente a homofobia, tendo o Vaticano ficado preocupado por temer que a sua doutrina possa ser considerada homofóbica e impedida de ser ensinada. Se é certo que não se pode impedir que as famílias ensinem o que quiserem às suas crianças, já fica difícil aceitar que as instituições de ensino acreditadas pelo Estado possam propagar valores contrários à moral nacional. Caso contrário, teríamos que aceitar escolas que ensinassem o assassinato como moral (e tantas vezes a homofobia leva a assassinatos).

Portanto, sim, se uma nação decidir que a homofobia é um crime, todas as escolas deverão ficar impedidos de transmitir uma visão que olha para homossexualidade como uma imoralidade.

Não há, no mundo, nenhum Estado neutro em valores, nem nenhuma escola neutra em valores.

Portugal é uma República democrática laica, por muito que custe a pessoas que sejam monárquicas, religiosas ou antidemocráticas. Os valores fundamentais são transmitidos nas escolas e a normalidade moral da homossexualidade é um deles. Quem quiser pregar o contrário, pode fazê-lo, mas fora do ambiente escolar.
Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Público a 6 de Julho de 2021

Por uma produção amiga da felicidade

"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos...