O objectivo mais profundo da revolução de 25 de Abril de 1974 foi a mudança de regime político em Portugal: passar de uma ditadura retrógrada, para uma democracia liberal.
Sendo o objectivo mais imediato acabar com a guerra colonial, aquilo que podia verdadeiramente transformar Portugal era a consolidação democrática. É que, ao contrário do que muitos pensam, não é preciso estar preparado para a democracia. A democracia é um processo de tentativa e erro, de aprendizagem ao longo do tempo, de aprender vivenciando-a.
Ainda que seja expectável que sociedades com populações mais instruídas e civilizadas tenham democracias mais bem funcionantes, a democracia funciona em qualquer tipo de sociedade. Pode operar com diversas deficiências no início, mas, desde que não haja a tomada de poder por forças que destruam a própria democracia e a transformem numa ditadura, a trajectória tendencial é de uma melhoria contínua do sistema democrático.
Em Portugal, depois de Abril de 1974, deu-se início a esse processo de transformação que teve resultados insofismáveis. Olhando para as estatísticas económicas, políticas, demográficas, sociais, de saúde, habitação e educação percebe-se bem que o 25 de Abril de 1974 foi um corte histórico, uma revolução: deixámos de percorrer o caminho atrasado das ditaduras para nos juntarmos à evolução das democracias liberais do ocidente.
Sendo certo que partimos de trás (com cerca de 30 anos de atraso face à Europa democrática), temos conseguido alguns feitos notáveis como o progresso educacional (lembremo-nos dos vergonhosos números de analfabetismo da ditadura), algumas melhorias exponenciais na saúde (veja-se a nossa esperança média de vida ou a baixíssima mortalidade infantil, de topo mundial), progressos habitacionais e de infra-estruturas (não esquecer que faltava electrificação e saneamento básico a percentagens inaceitáveis de famílias portuguesas) e melhorias na descentralização, nomeadamente com a instituição do poder local democrático.
Se é verdade que conseguimos todo este progresso, ainda temos muito que melhorar, nomeadamente em termos de convergência com os melhores países da Europa.
E é aí que entra o aprofundamento democrático de que Portugal precisa. O facto de termos vivido desde 1974 com dois partidos a alternarem o poder gerou perversidades que temos que destruir.
A percepção, verdadeira, que PSD e PS adquiriram de que governam Portugal em alternância fez com que assumissem comportamentos errados: cumplicidades tácitas entre eles, ocupação dos cargos de poder na esfera do Estado (com esquemas de nepotismo e endogamia inaceitáveis) e conivências com os privados com interesses nas decisões do Estado. Se, em muitos casos, essas conivências são “apenas” moralmente erradas, noutros consubstanciaram verdadeiros casos de corrupção, isto é, crimes.
Aquilo de que Portugal precisa, desesperadamente, é de um novo choque democrático que abale esta teia montada. Ao contrário do que os populistas põem em prática (regimes menos democráticos), o que é necessário é um alargamento e aprofundamento da democracia. Isso faz-se através da facilitação da entrada no sistema democrático e do aumento da transparência na tomada das decisões.
Para isso, entre outras medidas, é fundamental facilitar a criação de partidos políticos, garantir a proporcionalidade nos parlamentos, impor limites de mandatos em todos os cargos políticos e de gestão pública, acabar com as nomeações políticas para as instituições públicas, impor limites numéricos à endogamia, aumentar o número de referendos (tanto de escala nacional como local), obrigar a consensos alargados entre os deputados para decisões que comprometam o país a mais de uma legislatura (como grandes investimentos públicos com recurso a crédito ou PPPs), dar a escolha ao cidadão de votar por deputado (ir escolhendo deputados das listas apresentadas pelos partidos), rever as remunerações para que ser deputado não seja das piores situações nos cargos de decisão política.
Portugal tem hoje imensa gente capaz de contribuir para um país melhor. Gente que nunca se filiou nos partidos, mas que tem ideias e competência (muitas vezes mais do que os que estão no sistema). Gente que não é aproveita pela actual democracia por causa dos vícios de endogamia e fechamento entretanto criados.
O 25 de Abril fez-se para todos. E é chegado o momento de ser mesmo para todos. Todos devemos participar, mas todos temos que ter não apenas o direito, mas a efectiva possibilidade de chegar ao poder político.
Só quando esta gente que tem estado de fora chegar ao poder político é que vamos ter uma segunda transformação democrática. Só aí é que se vai começar a continuar o cumprimento de Abril.
Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 25 de Abril de 2019