Num momento em que ainda estamos a atravessar as agruras de uma pandemia e vamos começar a enfrentar os longos dissabores de uma recessão económica, António Costa e logo depois Marcelo Rebelo de Sousa fizeram das eleições presidenciais de Janeiro de 2021 notícia actual.
Durante a visita conjunta do primeiro-ministro e do Presidente da República à Autoeuropa, António Costa decidiu que se podia comportar como um comentador e dizer o suposto óbvio: que voltaria ali com Marcelo Rebelo de Sousa durante o primeiro ano do segundo mandato deste.
Se é certo que a história das Presidências da República em Portugal nos diz que todos os presidentes completaram dois mandatos, não há nada mais pernicioso numa democracia que tomar resultados eleitorais como certos. Senão, para quê fazerem-se eleições?
No caso vertente, essa displicência eleitoral foi mais grave, porque proferida pelo Secretário-geral do PS e primeiro-ministro de Portugal, dando apoio público tácito ao Presidente da República proveniente do PSD.
Esta espécie de bloco central tornado público, sem consulta do partido e sem respeito pelos votantes, caiu mal a muita gente.
Curioso que Marcelo Rebelo de Sousa ficou surpreendido, pois nem o próprio tinha, publicamente, admitido uma recandidatura. Mais, como candidato da direita, um apoio do PS até pode ser um presente envenenado.
António Costa disse o que disse e não se arrependeu. Mais, outras figuras de poder do PS (como o Presidente da Assembleia da República Ferro Rodrigues, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa Fernando Medina ou o Presidente do PS Carlos César) apressaram-se a vir dar um apoio, já não tácito, mas explícito, à recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa.
Numa altura em que o partido populista da extrema-direita, Chega, sobe nas sondagens e em que o seu hábil líder já anunciou a sua candidatura à Presidência da República (para fazer muito barulho), ter um centrão autoconvencido é o pior que podia acontecer.
Portugal começa a atravessar algumas mudanças (quanto mais não seja pela renovação geracional) no sistema político-partidário: muitas candidaturas independentes já venceram eleições camarárias contra os partidos tradicionais (o caso do Porto é exemplar) e, nas últimas legislativas, partidos novos conseguiram representação parlamentar que podem sustentar. Mais, a possibilidade de repetição de maiorias absolutas unipartidárias do passado é cada vez mais improvável.
Isso é um sinal de vitalidade democrática, um sinal de que Portugal precisa de mais combate político, menos manobras de interesses ao centro.
É neste contexto que uma candidatura de Ana Gomes (que antes se tinha desmarcado mas, agora, perante este alegre centrão, se sente compelida a avançar) deve ser encorajada e é fundamental.
Apesar de Ana Gomes ter todo um passado alicerçado num partido de poder e, por isso, ser susceptível de tentativas de colagem aos podres do poder, as suas atitudes públicas demonstram o contrário.
Nenhum político do PS, PSD ou CDS (o tradicional arco da governação) foi capaz de ter a coragem de combater e denunciar grandes males da contemporaneidade como a corrupção, a grande evasão fiscal, a promiscuidade entre interesses privados – de bancos e grandes empresas portuguesas ou multinacionais – e o Estado, a subjugação dos políticos aos interesses do futebol ou a política internacional (nomeadamente na União Europeia e nos Estados Unidos) sem autonomia perante o poder do grande dinheiro (ex: enquanto Paulo Portas, José Miguel Júdice e outros homens do regime bajularam Isabel dos Santos, Ana Gomes denunciou-a como ladra de Angola).
Ana Gomes tem outra vantagem: é uma mulher afirmativa. E isso seria uma lufada de ar fresco nos cargos de direcção política nacional, onde nunca uma mulher foi Presidente da República e só por menos de um ano foi primeira-ministra (Maria de Lurdes Pintasilgo). Numas eleições presidenciais onde nem toda a direita está satisfeita com Marcelo e já anunciaram ou preparam candidaturas, não existir uma candidatura forte no centro-esquerda seria um crime lesa-democracia.
Espero que Ana Gomes mantenha a sua determinação e coragem e avance.
Gabriel Leite Mota (publicado no Jornal Económico a 21 de Maio de 2020)
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