No séc. XIX, o capitalismo estava pouquíssimo calibrado para os problemas sociais. E se se apontasse essa realidade, logo surgiam os que argumentavam que isso não era bem assim. Afinal, como num sistema hidráulico, havia sempre umas fugas que permitiam que a riqueza que se acumulava no topo fosse sendo distribuída pelo resto da pirâmide social.
A verdade é que, com os saltos de riqueza que o capitalismo e a inovação tecnológica permitiram, a acumulação no topo nunca fora tão acentuada como nesse período. Mas o pouco que ia sobrando para as bases era suficiente para os defensores da tese do trickle–down dizerem que tudo estava bem.
Acontece que essas teses foram derrotadas, quer pela revolução bolchevique, quer pela crise de 1929/33. A partir dessas datas, o mundo desenvolvido passou a organizar-se de forma a que não se ficasse à espera das sobras dos muito ricos.
Nos países capitalistas, isso deu origem à síntese social-democrata, com sistemas progressivos de impostos, estados sociais fortes e uma distribuição da riqueza menos desigual.
Porém, com o fracasso dos regimes de Leste, voltaram a emergir as teses do trickle–down, desta vez com a capa do neoliberalismo, promovidas pelas faculdades de economia e gestão, pela OMC, pelo FMI, pelo Banco Mundial, pelo Fórum Económico Mundial, pela Mont Pelerin Society, pelo Clube de Bilderberg e pelo consenso de Washington. Voltou o argumento de que se taxarmos os muitos ricos, asfixiamos o sistema económico e impedimos que escorra riqueza do topo para as bases, deixando-as ainda mais pobres.
Por causa desse retorno ideológico e político, chegamos ao séc. XXI com uma desigualdade na distribuição da riqueza e do rendimento sem precedentes históricos, com os 1% mais ricos da população a deterem mais de 50% da riqueza mundial.
A captura dos governantes (mesmo das democracias) por esses 1% tem feito com que as leis sejam complacentes com os esquemas de acumulação de riqueza, com o capital a circular de paraíso fiscal em paraíso fiscal, e demais engenharia financeira, para, no fim do dia, quase não pagar impostos e quase não contribuir para as finanças dos Estados.
Quando estala uma crise económica mundial (como já ocorreu em 2008-2010 e está a ocorrer agora), logo as atenções se voltam para estas desigualdades obscenas, e como elas só são possíveis através de fraude no contrato social.
De tal maneira isto se passa que até surgem elementos pertencentes a esses 1% mais ricos a denunciarem o próprio sistema que lhes permite acumular tanto. Numa carta aberta, alguns multimilionários vieram, agora, dizer que têm que ser mais taxados, de forma permanente e forte, para que o mundo ultrapasse esta crise de saúde, económica e social. Conscientes de que só os Estados conseguem resolver problemas públicos e globais (à qual não há caridade que valha), vêm pedir uma acção estatal decidida, dizendo que têm os recursos financeiros prontos a ser taxados.
Estes rebates de consciência são também auto-protectores: é que não só sabem que a teoria do trickle–down é uma mentira, como sabem que só as bases tendo mais (e eles um pouco menos) será possível manter o capitalismo a rolar sustentadamente. E não é preciso “ciência de foguetões”: basta não abandonar a síntese social-democrata e os sistemas progressivos de impostos (que podem voltar a ter que ter taxas marginais de imposto de 80 ou 90%, como já sucedeu nos EUA durante o séc. XX, ou a famigerada taxa Tobin de 0,1% sobre as transacções bolsistas, que nunca saiu do papel).
Afinal, o que nos estão a dizer é simples: o que para eles não deixam de ser migalhas, são para nós (sim, acredito que quem está a ler isto pertença aos 99% mais pobres do mundo) a diferença entre salvar sistemas de saúde, pensões, justiça e educação ou ter que voltar ao séc. XIX. Taxemo-los, então.
Gabriel Leite Mota, publicado a 16 de Julho de 2020
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