Tem sido tema de debate animado o dito “marxismo cultural”. De um lado, temos uma certa direita que, à boleia de trumpismos e bolsonarismos, vê o diabo em tudo o que represente transformação sociocultural e, apressadamente, baptiza tal movimento transformador com o epíteto de marxismo, ou não fosse Karl Marx a encarnação do mal.
Do outro, aqueles que, com paciência, têm desmontado essa denominação, demonstrando que está tudo errado nela: não são da responsabilidade de Marx os processos transformacionais da actualidade, nem a esquerda inventou ou apoia esse dito “marxismo cultural”. No fundo, é mesmo um inimigo imaginário que essa direita inventou, para ter algo que culpar, e combater, pelas naturais mudanças da sociedade.
Mas é tão ridículo o construto inventado que, se o aceitarmos como essa direita o define, facilmente chegamos à conclusão de que não há melhor amigo do “marxismo cultural” do que o mercado livre e o capitalismo (algo que essa direita tende a venerar e que expressa no seu slogan paradoxal “conservador nos costumes, liberal na economia”, que já tive oportunidade de denunciar aqui.
Aquilo que mais caracteriza o mercado livre, e que foi expresso por grandes pensadores defensores do dito (como J. Schumpeter) é, precisamente, a transformação, a inovação, a destruição criadora. Acontece que essa voracidade na mudança não se cinge à esfera económica, produtiva, manifesta-se cultural e ideologicamente.
Pensemos nos pecados associados ao “marxismo cultural”: subjectivismo, individualismo, falta de solidariedade intergeracional, relativismo, globalismo, multiculturalismo. Daqui resultam movimentos mais específicos como o anti-racismo, o feminismo, a defesa dos direitos LGBTI+, o ambientalismo, o animalismo, a discriminação positiva de minorias ou o ateísmo.
Logo por aqui se vê o absurdo que é querer agrupar tamanha diversidade e complexidade conceptual debaixo de um mesmo conceito. Verdadeiramente, “marxismo cultural” é um eufemismo na boca de quem queria injuriar com nomes mais vernaculares tudo aquilo de que não gosta. Em vez de listar todo o horror, chama-lhe “marxismo cultural”.
A parte divertida vem a seguir: é que todos esses processos de transformação sociocultural, apesar de terem histórias próprias e múltiplas causas, têm no mercado livre um grande amante. Se há coisa própria do mercado livre é a sua natureza descentralizada e amoral. E, quando bem funcionante, a capacidade de responder a procuras minoritárias.
Olhando para os países que operam em mercado livre (com os EUA à cabeça, e esqueçam as ditaduras, que nenhuma funciona em mercado livre), vemos um florescimento do marxismo cultural.
Querem tratar os animais domésticos como se fossem pessoas? O negócio dos animais de companhia é milionário, desde comida, caminhas, roupa ou cuidados de higiene e saúde. Querem ser queer? Aí está o mercado a responder à procura com turismo gay, roupas gay, espectáculos gay. Querem mudar de sexo? As clínicas plásticas e cirúrgicas terão todo o gosto em receber-vos. Querem proteger o ambiente? Aí está o mercado a dar produtos verdes, certificados ambientais, restaurantes vegan, festivais ecológicos.
Mais, o mercado é um dos principais disruptores da família tradicional, pondo pressão sobre os trabalhadores para a sua flexibilidade, mobilidade, precariedade e eficiência, o que diminui a possibilidade de se ter muitos filhos, relações estáveis ou solidariedade intergeracional (ex: passar de um sistema de “pay as you go” para um fundo de pensões). Querem feminismo? Aí estão os filmes, os colóquios, os livros, os cursos académicos. Querem movimentos new age? Aí estão os workshops holísticos, os festivais panteísticos, as medicinas alternativas, tudo muito bem encaixadinho no mercado. Querem exuberância sexual? Têm a indústria multimilionária da pornografia, profissional e amadora.
E o que dizer da internet? Uma tecnologia só possível de disseminar com o mercado, e que leva a todo o mundo as transformações (que as ditaduras odeiam). Quer abortar ou ser eutanasiado? O mercado nunca se oporá.
Nas paredes de muitas escolas vêem-se pichagens com os enternecedores “João love Teresa” (assim sem o ‘s’ no final de love, que a literacia anglófila nem sempre está presente). Se o “marxismo cultural” e o mercado livre andassem na escola, abundariam os “mercado love marxismo cultural”, “marxismo cultural love mercado”.
O individualismo e o subjectivismo são filhos do iluminismo, do liberalismo e do utilitarismo (e assim os direitos das minorias). Não de Karl Marx. O ateísmo é filho do globalismo e da ciência.
Enfim, no meio de tanta confusão, há uma utilidade na expressão “marxismo cultural”. É percebermos que os seus criadores e opositores (que são os mesmos) são contra o movimento europeu do séc. XVIII, das luzes, que nos trouxe ao mais alto bem-estar de sempre. São, ao contrário, defensores da escuridão.
Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 4 de Julho de 2020
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