A evolução social não acontece de forma linear. Antes, dá-se através de movimentos irregulares, com avanços e recuos, de magnitudes diversas. Mas é possível detectarmos algumas tendências. E é à luz desse facto que devemos analisar o poder que ainda têm muitos homens brutos. Seja na família, nas organizações ou nos Governos, mundo afora, ainda vivemos sob a égide do domínio do homem e da masculinidade tóxica, caracterizada pelo império do autoritarismo, do desrespeito pelos subordinados, da violência, da agressividade, da imposição do medo e da “lei do mais forte”.
É assim em todas as ditaduras que existem, mas é assim, também, em algumas democracias e pseudodemocracias. Infelizmente, isso é verdade na Rússia de Putin, no Brasil de Bolsonaro, na Turquia de Erdogan, na Hungria de Orbán, na China de Xi Jinping e foi assim nos EUA de Trump. São tantos os casos actuais ou recentes, que somos levados a crer que este processo está em crescimento. Mas isso é falso. O que tem vindo a acontecer (lentamente desde o início do séc. XX, aceleradamente desde o início do séc. XXI) é o início do estertor do poder da masculinidade tóxica, e os casos que temos, mesmo nas democracias, são mais “cantos de cisne” do que “cantares de galo”.
Uma análise objectiva do mundo permite perceber que, nunca como hoje, o homem bruto está ameaçado, no seu poder e na sua liberdade. Começando pela liberdade de voto estendida às mulheres, passando pela possibilidade de essas acederem à educação e ocuparem papéis de poder social, até ao advento da pílula, o processo global de emancipação feminina é muito recente na história da humanidade, mas já produziu efeitos revolucionários, como a diminuição drástica da natalidade mundial ou o empoderamento sem precedentes da mulher.
E não há aumento do poder feminino, e libertação da mulher do jugo do homem, sem perda de poder deste. O exemplo trágico de Malala, que foi baleada no rosto por Talibãs, apenas porque queria aprender, e que outras meninas pudessem aprender é, ao mesmo temo, luminoso: não só sobreviveu, como ganhou um destaque mundial que a tornaram uma força motriz da mudança, da libertação das mulheres e da destruição do homem besta.
Mais recentemente, o ódio todo que muitos expressaram contra uma adolescente sueca (Greta Thunberg) que apenas clama pelo respeito climático é, ao mesmo tempo, demonstrativo do quando ainda temos de masculinidade tóxica (tantas vezes impregnada nas próprias mulheres) mas, também, do quanto as mulheres já conseguem ter poder.
Nunca como hoje, em todo o mundo, as mulheres estão a ganhar direitos, liberdade, poder. Nunca tivemos tantas cientistas, juízas, professoras, ou vencedoras de prémios Nobel, tantas artistas, tantas governantes, nem tantas empresárias, gestoras de grandes empresas e outras instituições.
E, também, nunca tivemos tantos homens não brutos, isto é, sem masculinidade tóxica, na sociedade. Tantos homens que partilham, equitativamente, o mundo doméstico e familiar com as mulheres, que não as agridem ou que, pura e simplesmente, assumem a sua natureza emotiva e empática, sem castrações, ou a sua orientação sexual e de género. Nunca os homens meigos tiveram tanto destaque e sucesso. Nunca a força bruta foi tão dispensável e a inteligência e o conhecimento tão fulcrais.
A verdade é que, nunca como hoje, os homens brutos (e as mulheres desse sistema, nomeadamente as que gostam de viver à custa e à sombra desses homens) se sentiram ameaçados e reprimidos. Apesar de toda a violência doméstica que existe, nunca ela foi tão recriminada, denunciada e perseguida. Nunca o bullying nas escolas foi tão combatido. Nunca o assédio laboral foi tão exposto e perseguido (veja-se o movimento “me too”). E isto é um processo que só agora começou (como disse, no séc. XX).
Todos os solavancos que têm existido, e que podiam levar a crer que existe um retrocesso civilizacional, são muito nefastos, mas não são mais do que apenas lombas num caminho fortíssimo de abandono do homo brutus. E, enquanto existirem, esses homo brutus, sejam eles homens ou mulheres, vão espernear.
Os políticos que têm surgido em algumas democracias com o discurso do homo brutus, e que têm tido algum apoio eleitoral, estão a colher votos juntos dos que vêem o seu sistema de poder a ruir. De facto, um homem que bate na sua mulher sente-se frustrado se o denunciarem e prenderem por tal. Um homem, ou mulher, que só se saibam impor pela violência, na casa ou no trabalho, sobre os filhos ou colegas, respectivamente, sentem-se castrados se os proibirem de dar esses “tratamentos”.
As pessoas dogmáticas sentem-se ameaçadas quando vêem não crentes, crentes noutras teses ou desvios aos seus padrões morais (como o amor romântico entre pessoas do mesmo sexo). E essa multiplicidade de comportamentos nunca foi tão grande como agora. Nas actuais eleições presidenciais em Portugal temos, pela segunda vez na nossa história, duas mulheres candidatas. E uma vai bater o record de votação numa mulher numa eleição presidencial. E o actual Presidente é um homem de afectos, não da brutalidade ou da boçalidade.
Nos EUA, acaba de ser eleita a primeira vice-presidente da história e uma administração paritária. Biden, que escorraçou Trump, não tem masculinidade tóxica, não é um homo brutus (como Obama já não era). Por mais que a voz dos brutos ainda se faça ouvir e os seus gestos se sintam, tudo mais não são do que espasmos de raiva de quem não quer desaparecer, mas vai desaparecer. O caminho da evolução está no sentido certo. E assim vai continuar.
Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 25 de Janeiro de 2021
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