Apesar de ter havido diversas interpretações acerca da proveniência da votação em André Ventura nas eleições presidenciais, uma análise honesta intelectualmente tem que concluir o óbvio: André Ventura colhe, essencialmente, votos no eleitorado de direita, do PSD e do CDS (como a recente sondagem da Aximage com projecção para as legislativas, cruzando com as presidenciais, mostra bem).
Muitos têm dito que isto se trata de um voto de protesto supra-ideológico. JMT aqui, fala até de meio milhão de pessoas zangadas, apelando a que a direita tradicional “tome conta deles”, uma vez que a esquerda parece ter desistido desses eleitores, por os considerar uns deploráveis.
É certo que, em política, há concorrência por eleitores, e que os partidos devem procurar captar o máximo de eleitores possíveis para as suas causas. Mas a política não é um negócio. Não é como numa empresa, em que se tenta ficar com o mercado todo, captando os consumidores dos rivais. Em política, luta-se por valores, ideologias e visões completamente diferentes da vida em sociedade. E é infantil pensar-se que se consegue converter as pessoas a ideologias opostas às que professam.
A análise objectiva dos dados mostra que não há, virtualmente, transferência de votos da esquerda para André Ventura e que quem votou em André Ventura não votará nas esquerdas, nomeadamente no PCP (ao contrário das análises precipitadas que uns se puseram a fazer dos resultados de AV no Alentejo), nas próximas legislativas.
Concordo com a interpretação de que a maioria dos votantes em AV e no Chega são pessoas zangadas. Diria mais: ressabiadas e frustradas. Mas são pessoas de direita que sentem que vivem num país governado pelo socialismo, com poucas perspectivas de vir a ser governado pela direita no curto prazo. Pessoas que ficaram raivosas com a solução da geringonça e que vêem no discurso de Ventura um óptimo canal de ressonância desse sentimento.
São, tipicamente, pessoas da pequena e média burguesia, micro e pequenos empresários e profissionais liberais, com poucas ou médias qualificações académicas, muitas vezes habitantes das periferias das grandes cidades ou do espaço rural. Pessoas arreigadas a certas tradições e hábitos, ao machismo, à homofobia, desconfiadas (nomeadamente dos brasileiros, dos africanos e dos ciganos), com desprezo pelas qualificações académicas alheias, com um foco na quantidade de trabalho, muito mais do que na sua qualidade, e com fortes ambições materiais.
Juntam-se algumas pessoas da alta burguesia, mais dogmáticas cultural e religiosamente (caça, tourada, Opus Dei, grandes proprietários rurais, etc.), que também se sentem frustradas com os progressos sociais conquistados pela esquerda e pelos impostos que têm que pagar (com argumentário próprio de quem não preza a democracia, do tipo “os meus impostos servirem para pagar abortos, nem pensar!”). Foram estas pessoas que deram o segundo lugar a AV em Cascais e no Estoril, e que estão bem descritas por Mafalda Anjos numa crónica recente na Visão.
Nem uns, nem outros, alguma vez votariam na esquerda. E não estariam tão revoltados se estivessem a ser governados pela direita, mesmo com níveis iguais de corrupção ou de qualidade dos serviços públicos (o PCP capta votos de zangados, mas de outros, daqueles que estão contra o capitalismo e que acham que a geringonça foi uma traição à revolução).
Alguma esquerda, nomeadamente a ala direita e centrista do PS, devia estar mais atenta às condições económicas de alguns (os precários, os trabalhadores indiferenciados do privado ou as populações rurais), que são prejudicados pelas liberalizações e pela diminuição do investimento nos serviços públicos. Também os sectores mais identitários da esquerda, que tratam de questões que não são prioritárias para essas pessoas, podiam mudar o foco. Mas não seriam esses cuidados extra da esquerda que fariam esmorecer os votos no Chega. Quanto muito, só garantiriam mais perpetuação do centro-esquerda no poder.
O Chega é, no seu interior e nos seus eleitores, alimentado por votantes tradicionais do PSD e do CDS que se cansaram de um discurso moderado desses partidos, que não obtiveram o destaque e o poder desejado nas suas estruturas, que culpam os políticos e o Estado pelas suas frustrações pessoais e que têm raiva da esquerda.
São pessoas que se acalmariam se o país estivesse em grande expansão económica ou se a direita governasse.
Mas a verdade é que esta reconfiguração partidária da direita, a que começamos a assistir, tem o seu quê de natural. Alguma direita, em Portugal, cosmopolitizou-se e, já não tendo grande apego ao conservadorismo religioso e cultural, segue o apelo da Iniciativa Liberal. Outra, cristalizou-se e queria que o tempo andasse para trás. Essa, sente na “fúria Chegana” o catalisador catártico para as suas frustrações. Não há como não encarar isto como um problema da direita.
E o facto é que o “choque” das presidenciais fez, finalmente, a direita tradicional acordar: no CDS, Adolfo Mesquita Nunes já se abalançou para uma candidatura à liderança do partido eleitoralmente moribundo. Rui Rio, depois de um discurso disparatado na noite eleitoral e de uma aliança nos Açores que, como se viu, reforçou o Chega, já o veio excluir das conversas sobre coligações para as autárquicas – e AV já veio chorar-se, e dizer-se vítima de bullying político por parte dos partidos do sistema...
Espero, a bem da democracia, que a direita democrática volte a trazer os eleitores perdidos para o seu seio, através de um discurso mobilizador, mas não radical. Se não o fizer, não venham, depois, dizer que a culpa é da esquerda. É que, para a esquerda, a questão não é que essas pessoas sejam deploráveis. É que, simplesmente, ela não as pode captar.
Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 1 de Fevereiro de 2021