A pandemia que assola o mundo desde o final de 2019 é uma novidade em termos de desafio social. Nunca na história da humanidade um fenómeno afectou, ao mesmo tempo, tanta gente, em tantos países diferentes.
No caso das nações desenvolvidas, esta é a primeira situação, em muitas décadas, a limitar grandemente a liberdade individual.
As nações desenvolvidas, desde os tempos do Iluminismo, da Revolução Industrial, da Revolução Francesa e da implantação do Liberalismo e das democracias, foram criando sucessivas gerações de pessoas crentes na liberdade individual e a usufruírem dessa mesma liberdade.
Esse usufruto da liberdade individual é um ganho civilizacional e um contribuinte fundamental para a felicidade.
Mas a existência de fenómenos como esta pandemia trazem à evidência a essência social da liberdade: de nada nos vale a liberdade se não existirem os outros, se não existir uma sociedade organizada. E não existe liberdade individual se a liberdade de uns esmagar a liberdade dos outros.
As gerações que não passaram pelas duas grandes guerras mundiais e, em muitos países, nem sequer cumpriram qualquer serviço militar ou cívico obrigatório, facilmente se esquecem que só há liberdade individual porque há uma sociedade bem funcionante, e que só há liberdade individual se se resolverem as tensões constantes entre a liberdade de uns e as liberdades dos outros, e entre as vontades individuais e as necessidades colectivas.
Muitos têm estado habituados a fazerem o que lhes apetece, submetendo-se, quanto muito, à necessidade de trabalhar para ganhar o dinheiro que lhes permite fazer o que lhes apetece.
Mas esta pandemia, causada por um vírus que se transmite de pessoa em pessoa e que se espalhou graças à liberdade de circulação de pessoas e mercadorias (a globalização), evidencia fortemente a necessidade de pormos a nossa liberdade individual em perspectiva face às necessidades colectivas.
As nações capitalistas ocidentais baseiam-se, quase exclusivamente, no primado do indivíduo e das suas vontades. Nas sociedades orientais, mesmo as capitalistas, há uma consciencialização muito maior da importância do colectivo. Não por acaso, as nações orientais estão a lidar melhor com a pandemia e a acatar muito mais disciplinadamente as ordens governamentais.
É chocante a falta de respeito pelos outros que muitos têm demonstrado nesta pandemia. Agarrados a uma concepção arrogante, e distorcida, de liberdade individual, muitos têm desafiado o uso das máscaras, o confinamento, tentado descredibilizar as vacinas e desrespeitando as limitações à liberdade de circulação ou de ajustamentos, que o combate à pandemia impõe.
Uns por egoísmo puro, outros a cavalo de teorias conspiratórias delirantes e outros, ainda, montados no seu dogmatismo e soberba intelectual (como Raquel Varela ou José Miguel Júdice) fazem o discurso demagógico contra a supressão das liberdades, como se alguém gostasse das limitações que a pandemia causa e dos estragos económicos consequentes, ou que algum governo democrático lucrasse com a imposição dessas restrições.
Vamos tendo notícias de festas ilegais, completamente desrespeitadoras do esforço colectivo de tantos no combate à pandemia, em particular daqueles que sofrem ou estão sobrecarregados no sistema de saúde.
E temos donos de restaurantes (como o dono do restaurante Lapo ) armados ao “pingarelho” a invocarem a CRP para se manterem abertos (quando está decretado o estado de emergência).
E temos o transeunte Vila Condense a passear, sem máscara, na marginal bloqueada, que filma os polícias que o abordam, para que coloque a máscara, dizendo que os polícias não têm o direito de o chatear (que tem a CRP a protegê-lo – tantas constitucionalistas que surgiram de repente…), e que ele tem o direito de os filmar porque são os contribuintes que pagam o salário dos polícias.
Tanta irresponsabilidade e desconhecimento do que é uma democracia.
Este é o tempo de aprendermos a lição de que só sobrevivemos colectivamente e que, em certos momentos mais extraordinários, temos que abdicar das nossas vontades individuais em prol da defesa do colectivo. Pode chamar-se a isso cultura cívica. Eu chamo ser-se adulto.
Quem não é capaz de andar de máscara durante um ano da sua vida (pedem-nos tão pouco), ou de restringir a sua liberdade de movimentos durante esse período, em nome da eliminação da pandemia, ainda não chegou à idade adulta. Pelo que deve ser tratado, paternalisticamente, como uma criança.
Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 11 de Fevereiro de 2021