A Irlanda costuma ser referida como um país exemplar ao nível das políticas económicas, em particular ao nível da política fiscal de atractividade do investimento directo estrangeiro. Os resultados, muitos argumentam, estão à vista: um PIB crescente, muitas sedes de multinacionais, emprego qualificado e mais dinheiro para o Estado irlandês.
Segundo esta estratégia competitiva internacional, os países devem apostar em oferecer aos capitais estrangeiros (e nacionais) as condições mais favoráveis possíveis, de forma a conseguirem os investimentos para si. É a ideia de um país ser “amigo do investimento”. Na União Europeia, não é só a Irlanda que adopta estas práticas: o Luxemburgo, a Holanda ou o Chipre também o têm feito e, agora já fora da União, o Reino Unido. Desde sempre, a Suíça.
Os defensores destas estratégias dizem que estas políticas são inteligentes porque beneficiam muito os países que as adoptam (Luxemburgo, Irlanda e Holanda são os três países da UE com mais PIB per capita), esquecendo-se que esta é uma política oportunista e de roubo: é uma política que desvia os impostos de outros países, nomeadamente dos países de onde provém esse capital, consubstanciando-se como um roubo ao Estado Social dos países de origem.
No caso da Irlanda, o facto de grandes multinacionais como a Apple, a Dropbox, o eBay, o Facebook, a Google, o LinkedIn, a Oracle, a Yahoo, a PayPal, o Airbnb ou o Twitter sediarem-se lá (para as operações fora dos EUA), beneficiando de taxas muito baixas de IRC e de esquemas de movimentação de lucros internacionais, faz com que os EUA (donde essas empresas são oriundas) tenham enormíssimas quebras na sua receita fiscal que, depois, não podem ser utilizadas em despesas de saúde ou educação, ou em diversos investimentos públicos no país. O mecanismo é simples: ao praticarem-se taxas que são verdadeiras amnistias fiscais, transformam-se umas regiões em paraísos fiscais à custa do roubo às demais.
É, ainda, interessante verificar como muito dos defensores destas políticas agressivas ao nível fiscal são fortes opositores de políticas monetárias expansionistas, de políticas de desvalorização da moeda ou de ajudas de Estado às empresas estratégicas (estas, proibidas na UE), sempre com o argumento que essas são políticas que os vizinhos podem copiar (em retaliação) e que, portanto, não são eficazes a médio prazo. Na Economia, essas políticas têm mesmo a denominação inglesa “beggar thy neighbour”.
Ora, acontece que as políticas de concorrência fiscal são exactamente políticas “beggar thy neighbour”, em que uns países vivem à custa dos outros, com esses outros a poderem retaliar, neste caso, baixando também as suas taxas IRC. Se todos os países aplicarem esta estratégia de concorrência fiscal continuada, no fim do dia, todos os países transformar-se-ão em paraísos fiscais e o capital deixará de pagar impostos. Acontece que esse é o verdadeiro objectivo, inconfessado, de quem defende estas políticas.
Na verdade, esta é uma prática imoral e insustentável: se queremos viver em Estados democráticos e sociais, precisamos de impostos para financiar os bens públicos e corrigir as enormes imperfeições dos mercados. Mais, precisamos que o factor capital pague muito mais do que paga hoje: sabemos que, nas últimas décadas, tem havido uma distorção no sentido da perda do peso dos rendimentos do trabalho, face aos rendimentos de capital, na distribuição do rendimento. Isso tem de ser corrigido.
Aquilo que a União Europeia tinha de fazer era uma política agressiva de combate aos paraísos fiscais, começando pelos que tem dentro de portas, nomeadamente, o Luxemburgo, a Holanda e a Irlanda. Tínhamos de estabelecer taxas europeias mínimas de IRC e determinar a tributação não em função da localização da sede, mas em função do local onde os proveitos são gerados. Isso sim, é justiça, isso sim, é moralidade económica. A burla fiscal da Irlanda, Luxemburgo ou Holanda equivale a querer viver à custa de outros, querer que o bem-estar próprio seja ganho através da perda do bem-estar alheio.
É, mais uma vez, curioso verificar que muitos dos defensores das tributações baixíssimas para o capital são grandes opositores dos subsídios de inserção social ou mesmo de rendimentos mínimos garantidos, por serem contra a subsidiodependência. Mas se for um capital não tributado, tudo está bem. Acontece que um capital não tributado é, na prática, uma subsidiodependência obscena: é a sociedade não cobrar ao capital o que está a cobrar ao trabalho ou ao consumo.
Sejamos sérios e defendamos políticas económicas eficazes, mas morais. Caso contrário, é a lei da selva.
Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 8 de Março de 2021