Thursday, March 25, 2021

O COMUNISMO AGOSTINIANO DO ESPÍRITO SANTO

Um dos grandes pensadores portugueses do século XX foi Agostinho da Silva.

Nos anos 90 desse século, regressado a Portugal depois de longa estadia no Brasil, onde teve grande impacto académico e público, Agostinho da Silva surpreendeu os portugueses com a sua filosofia na ponta da língua, particularmente durante uma série de entrevistas que deu para a RTP com o título de “Conversas vadias”, em que diferentes entrevistadores iam tentar decifrar e explorar o pensamento do filósofo. Estas entrevistas (disponíveis para visualização na internet) são um testemunho brilhante do seu pensamento, ao mesmo tempo profundo e provocador.

À época, muitos criticavam-no por entenderem que ele se contradizia, por ter o hábito de não ser absolutamente definitivo ou categórico nas suas respostas e, muitas vezes, responder com perguntas às perguntas (aí, o que Agostinho da Silva estava a fazer era, tão-só, querer ser preciso e clarificar o que realmente estava a ser perguntado). Na prática, notou-se nestas entrevistas, muitas vezes, uma décalage de profundidade filosófica entre os perguntadores e o respondente, e a perplexidade dos entrevistadores tinha muito a ver com isso.

Muitas pessoas, por preguiça mental, gostam de encaixotar a realidade de uma forma simples, compartimentada. Aquilo que Agostinho da Silva fazia era desafiar esse encaixotamento, romper as regras estabelecidas e pensar mais além. As pessoas queriam catalogá-lo, ora de religioso, ora de agnóstico/ateu e Agostinho da Silva desconstruía este dualismo, falando do misticismo como algo a que, na verdade, não devíamos dar nome nenhum. Depois, uns queriam que ele se pronunciasse a favor da monarquia ou da república e, mais uma vez, as respostas desconcertavam, ao falar dos méritos da história de Portugal (monárquica), mas também exibindo pensamentos de pendor anarquista.

Uma das temáticas que mais confundia tantos os entrevistadores como os espectadores tinha a ver com o papel das escolas e das crianças.

Agostinho da Silva, um académico de profissão, defendia que as escolas deviam ser um espaço de liberdade, um espaço de criação e de encontro do ser humano com a sua própria natureza, não uma espécie de fábrica da produção de saberes. Já nessa altura, Agostinho da Silva defendia uma escola onde os alunos decidissem o que queriam aprender, e falava da escola contemporânea como uma instituição militar ao serviço da produção e da luta económica.

Por outro lado, Agostinho da Silva antevia para Portugal, e para a cultura portuguesa, um papel decisivo no futuro: o de ensinar os outros como brincar. Aliás, dizia que achava fantástico que povos como os japoneses, os americanos ou os alemães tivessem tanto foco no trabalho, quisessem tanto trabalhar. É que Agostinho da Silva previa que chegaria o tempo da gratuidade da vida, em que as máquinas já produziriam tudo o que o ser humano precisava para viver, tornando-o livre para ser o poema que estava destinado a ser.

Este tipo de linguagem, ora filosófica, ora poética, desconcertava muito os ouvintes, que não conseguiam encaixotá-lo nas tais ideias pré-concebidas: esquerda/direita, monarquia/república, conservadorismo/progressismo ou, até, estoicismo/hedonismo.

A verdade é que Agostinho da Silva dizia que ainda não tinha chegado o tempo de se conseguir essa liberdade total, mas que esse tinha que ser o caminho, e que esse seria o caminho. Invocava, inclusivamente, o pensamento de certos religiosos portugueses e italianos do século XIII que, nessa altura, escreveram sobre a “idade do Espírito Santo”.

Nas palavras do próprio: “… primeiro que as crianças crescessem tão livremente que sua imaginação, sua espontaneidade, sua capacidade de sonhar nunca se extinguisse e, um dia, fossem capazes de dirigir o mundo; segundo lugar, que a vida ficasse a ser gratuita para toda a gente. Estamos caminhando para isso, para essa capacidade de tornar a vida gratuita para toda a gente. Como consequência disso, diziam os portugueses, porque a criança cresce livremente, ninguém a impede de ser naturalmente o quê é e, por outro lado, a vida não lança sobre nós todas as durezas de combate que costuma lançar no quotidiano, então, aí, o crime desaparecerá do mundo. Acho que caminhamos para aí, podemos caminhar para isso. Não é alguma coisa utópica, senão no sentido de que ainda não existe actualmente.”

Provocatoriamente, dizia, depois, que ser progressista, hoje, era ser um conservador do século XIII, pois que, nessa altura, já esses religiosos aventavam que o bom futuro seria esse tempo pueril de liberdade. Muitos encarniçavam-se com estas ideias e diziam que esse tempo jamais ocorreria, que era impossível a gratuidade da vida, que era impossível uma escola em que se vai aprender o que se quer (e não o que se tem que aprender).

A verdade é que há cada vez mais condições para se pôr em prática esta espécie de “comunismo Agostiniano do Espírito Santo”, esta sociedade onde cada um nasce para ser o seu próprio poema, essa sociedade em que cada vez que morre um ser humano se diz “morreu um poema”.

Quando, hoje, se fala da substituição do trabalho humano pelas máquinas e pelas inteligências artificiais, se antevê um mundo onde seja cada vez mais difícil ter trabalho e da consequente necessidade de Rendimentos Básicos Incondicionais, estamos a falar exactamente do mesmo que Agostinho da Silva prognosticava: esse tempo onde as pessoas já nasciam reformadas e tinham que aprender a ocupar esse seu tempo com o lúdico.

É óbvio que tal transição nunca se fará da noite para o dia, mas está cada vez mais claro que caminhamos nessa direcção.

Agostinho da Silva fazia, até, referência à Ilha dos Amores de Camões como sendo uma metáfora para esse tempo, e não esquecia que, enquanto essa substituição do ser humano pela máquina não ocorresse, o ser humano estava condenado a ter que trabalhar, a ter que produzir e a ter que ser educado nesse sentido. Mas não confundia uma etapa com a meta. E sabia, perfeitamente, que a meta era a Ilha dos Amores, a meta era cada um ser o poema que nasceu para ser.

Hoje, na política, no tempo em que se fala da crise das ideologias, na ascensão dos populismos e na falta de motivos de esperança, este caminho Agostiniano devia ser um claro guia da acção – caminharmos para uma sociedade gratuita e livre.

Nas palavras do próprio: “é preciso, para que essa Ilha dos Amores possa existir, que o homem possa entender que o capitalismo existe, não para ficar continuamente, tendo mais lucro, e descontando mais juros, e pagando mais dívidas ou pedido mais dinheiro emprestado, mas para terminar num ponto em que a economia desapareça completamente, em que haja tudo para todos. Primeiro ponto. Segundo ponto, que, aí, o homem possa passar à sua verdadeira vida, que é a de contemplar o mundo, ser poeta do mundo e o mundo poeta para ele, de tal maneira que nunca mais ninguém se preocupe por fazer tal ou tal obra, mas por ser tal ou tal objecto no mundo: a identidade dele, a única, o ser único que existe no mundo entre os tais biliões de seres que pelo mundo existem”.

Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 25 de Março de 2021

Monday, March 22, 2021

NEM TODO O CRESCIMENTO ECONÓMICO PRODUZ FELICIDADE

Um dos grandes equívocos do pensamento económico e político contemporâneo tem sido a crença dogmática de que o crescimento económico produz felicidade. Essa crença ganhou força durante o século XX, muito graças aos progressos materiais que este século testemunhou e ao baixo ponto de partida, em termos de riqueza material, que muitos países tinham.

A verdade é que o crescimento económico é, na prática, a transformação da natureza, e o aproveitamento da energia, no sentido da produção de bens e serviços que consideramos úteis à nossa vida. Duma forma demasiadamente simplista, muitos supuseram que, quanto mais produção se fizesse, mais utilidade haveria na sociedade, mais felizes ficariam as pessoas.

Acontece que o processo de criação de felicidade, através da transformação da natureza em bens e serviços, está longe de ser simples, linear, automática. Logo à cabeça, há um constante esquecimento de que os bens e os serviços não caem do céu. Fosse esse o caso e seria muito mais razoável assumir que quanto mais bens e serviços tivéssemos à disposição, mais felizes ficaríamos. Na realidade, o ser humano e as sociedades têm que se esforçar para produzir bens e serviços.

Aliás, a energia fundamental para se fazer esse processo de criação de riqueza material é a energia humana, seja energia muscular, seja a energia utilizada pela inteligência para a criação de tecnologias materiais e sociais. Isto significa que tudo o que é produzido e consumido tem custos de produção, fundamentalmente, a utilização o nosso tempo de vida. E não é claro que quanto mais produzamos mais satisfeitos fiquemos. Porque, mesmo que consigamos produzir mais e consumir mais, fazemo-lo graças a uma maior focalização das nossas vidas nessas tarefas produtivas. É certo que um dos grandes contribuintes para o crescimento económico são os ganhos de produtividade, ou seja, a capacidade de, com o mesmo trabalho, produzir-se mais. Mesmo assim, há sempre um esforço que tem que ser feito, e a forma como esse esforço é feito condiciona brutalmente a nossa felicidade.

Em 1976, o economista Tibor Scitovsky, no seu livro The Joyless Economy, já identificava que a sociedade capitalista americana (e ocidental) tinha sido muito boa a organizar-se no sentido da satisfação das necessidades de conforto do ser humano. Os bens e os serviços que o crescimento económico proporciona, cumpriam essa tarefa. Porém, estava a verificar-se, já nessa altura, uma incapacidade do crescimento económico continuado em produzir mais bem-estar. A razão avançada por Scitovsky era a incapacidade que o sistema económico tinha em produzir estímulos satisfatórios ao ser humano. Estímulos, esses, que também são fundamentais para o nosso bem-estar. O exemplo típico era o da especialização que laboral que, ao mesmo tempo que gerava aumentos exponencias da produtividade (como Adam Smith seminalmente havia identificado), tornava as tarefas profissionais mais repetitivas, aborrecidas e menos estimulantes.

Hoje em dia, a investigação profícua no domínio da economia da felicidade demonstra-nos não só que Scitovsky estava certo, como nos permite um aprofundamento do conhecimento relativamente ao que os seres humanos precisam para satisfazerem-se individual e colectivamente.

O que está completamente patente nos dados empíricos é que o crescimento económico, que se mede através das variações no Produto Interno Bruto, satisfaz apenas uma parte da nossa felicidade. Adicionalmente, surge o problema de que, para termos um PIB crescente, há dimensões da nossa vida que são afectadas: o capital relacional (a quantidade e qualidade das relações interpessoais que temos), o capital social (a confiança que temos nos outros, nos estranhos, nas instituições), a liberdade para pensar e agir (económica, social e politicamente), a saúde física e mental, a justiça, a igualdade, entre outras, são tudo dimensões fundamentais, per si, para a felicidade humana, que podem ser degradadas em nome do crescimento económico.

Analisando a realidade, constatamos que não há uma relação de causa e efeito entre crescimento económico e capital social, capital relacional, liberdade, igualdade ou saúde. Isso acontece porque o crescimento económico pode dar-se em diferentes enquadramentos institucionais e culturais que, por sua vez, são determinantes da felicidade.

Os países nórdicos são sistematicamente os mais felizes do mundo (veja-se o acabado de publicar WHR de 20220), não por serem os mais ricos do mundo, mas porque sabem conciliar o crescimento económico com as outras dimensões fundamentais do bem-estar: tempo para a vida profissional, para a vida pessoal e para o lazer, igualdade de oportunidades e discriminação positiva dos desfavorecidos, seguros sociais de diferentes formas (que minimizam o risco da vida) e forte capital social.

Nos países latinos (europeus e americanos), onde não há tanta afluência económica nem tão bons índices de capital social, obtém-se satisfação através do capital relacional (a qualidade das relações interpessoais, nomeadamente entre a família e com amigos).

Por outro lado, países asiáticos como o Japão e a Coreia do Sul são excelentes na produtividade e na produção, mas perdem muito no capital relacional e no lazer, sendo países que estão completamente subaproveitados ao nível do bem-estar, da felicidade.

A lição que temos que tirar é que não é qualquer crescimento económico que nos serve. O crescimento económico não é o objectivo, terá sempre que ser utilizado como meio para. É, apenas, mais uma ferramenta que nos ajuda a sermos felizes.

Aliás, é possível estagnar, ou até decrescer, economicamente e produzir mais felicidade, se se aumentar a justiça, fizer uma melhor redistribuição do rendimento e da riqueza, distribuir melhor o trabalho entre as pessoas ou aumentar a confiança nas instituições.

O passo que a Espanha está a dar (aliás como países nórdicos também já têm experimentado) de reduzir a carga laboral é um exemplo claro do caminho certo para a felicidade. Não interessa sermos o país do mundo que mais produz, que tem o PIB maior. Interessa sermos o mais feliz.

Reduzir as cargas de trabalho, reduzindo, assim, o desemprego, aumentar salários mínimos e, até, equacionar as questões dos rendimentos mínimos incondicionais, serão tudo ferramentas que, à luz dos resultados científicos disponíveis, nos permitiriam caminhar para mais felicidade e com mais sustentabilidade ambiental.

Mais, estes tipos de medidas, muito provavelmente, contribuiriam até para um crescimento económico saudável, com inovação e criação de empregos.

O contrário disto é uma espécie de “ditadura do crescimento económico” em que o ser humano é reduzido a uma máquina de produção, que só tem tempo para produzir e consumir produtos conspícuos, e morrer de exaustão (fenómeno muito preocupante no Japão). Essa não é a vida que se quer. A boa vida não é isso.

Por isso, do ponto de vista das políticas públicas e das políticas económicas, o foco tem que ser posto na obtenção da felicidade máxima. Isso consegue-se não confundindo o meio (crescimento económico) com o fim (felicidade) e percebendo qual a forma mais feliz de produzir. Isso passa pela gestão das organizações, pela qualidade das instituições, pelo respeito pela família, lazer e tempo livre e passa por uma boa distribuição da riqueza e do rendimento.

A ciência também demonstra que pessoas felizes são mais criativas, mais cooperantes, mais produtivas e mais saudáveis. O segredo está na criação de círculos virtuosos de felicidade e crescimento económico, mas em que o ponto de partida e de chega é a felicidade. O meio é o crescimento económico, que tem que ser subjugado, a todo o momento à felicidade. Este é o caminho.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 22 de Março de 2021


Tuesday, March 16, 2021

VAMOS SER TODOS CHIPADOS!


Uma das teorias da conspiração actualmente preferidas das redes sociais é aquela que diz que as vacinas contra a Covid19 são, na verdade, um instrumento utilizado por Bill Gates para introduzir chips nas pessoas, que serão, depois, as ferramentas para controlar essas mesmas pessoas.

Uma característica comum a todas as teorias da conspiração é esta ideia de falta de controlo e de liberdade do cidadão comum, face a uns, poucos, governantes tácitos do mundo que, à revelia da população mundial e da democracia, tomam todas as decisões importantes para a nossa vida.

O curioso desta teoria da conspiração das vacinas é que ela agita, da mesma forma que no passado, os fantasmas da tecnologia: provavelmente, ainda existem tribos perdidas no mundo, que consideram uma máquina fotográfica um instrumento perigoso e diabólico, porque uma fotografia rouba a alma do fotografado. Um ocidental ri-se desta ingenuidade perante a tecnologia fotográfica, mas, talvez, esse mesmo ocidental esteja a partilhar nas redes sociais as teses conspirativas em que a vacina vai ser usada para introduzir um chip… É verdade que ainda não chegamos a esse ponto tecnológico, mas havemos de chegar, e ainda bem.

Se há evidência que a história recente da humanidade nos tem revelado é que a inovação tecnológica tem tido um efeito espectacular sobre a vida humana: tem permitido que mais gente exista no planeta, que mais gente viva mais anos, que mais gente tenha bons cuidados de saúde, que mais gente tenha acesso à alimentação, à habitação, ao transporte e à comunicação. Tudo factores decisivos para o bem-estar humano, desde o controle da electricidade, passando pela energia nuclear, até à manipulação de processos quânticos que nos permitem ter comunicação à distância e serviços de geo-localização. A tecnologia tem sido uma aliada da humanidade.

É claro que, também, têm existido usos nocivos da tecnologia, com o exemplo paradigmático da bomba atómica. Mas o saldo é muito positivo. E esse saldo positivo dá-nos toda a confiança para encarar os avanços futuros com muito optimismo.

Na verdade, aproximamo-nos de uma progressiva integração e interacção ser humano/máquina e inteligência artificial, sendo que os receios que muitos têm desse passo são equiparáveis aos receios que os tribais tinham em ser fotografados.

Não estará muito longe o dia em que, de livre vontade, instalaremos chips no nosso corpo que nos permitirão ter acesso a informação na internet de uma forma continuada e supereficiente, sinalizar-nos-ão problemas da nossa saúde em tempo real (prevenindo riscos de morte como AVC, ataques cardíacos, embolias ou a detecção precoce de cancro), para além de correcções automáticas do processo de envelhecimento. Assim, dar-se-á o próximo passo na esperança média de vida, que é o do aumento forte da longevidade.

Só com esta integração com a máquina será o ser humano capaz de, sustentadamente, ultrapassar os 100 anos de vida, e vivê-los com qualidade.

Obviamente que, em tal estado de integração tecnológica, o ser humano passa a enfrentar riscos que hoje não tem, desde hacks ao sistema digital integrado no nosso corpo até possibilidades de fiscalização e discriminação que hoje são impossíveis.

Mas o processo será, em tudo, igual a alguns desafios que a tecnologia nos pôs no passado. Ou seja, os riscos acrescidos que vamos enfrentar por essa integração vão ser superados pelas vantagens dessa mesma integração. Aquilo que vamos ter que fazer é encontrar as tecnologias sociais mais adequados à minimização desses riscos tecnológicos, softwares mais resilientes à pirataria, sistemas políticos mais controlados democraticamente e fortes limitações legais às possibilidades de abuso.

A história da humanidade está cheia de guerras, de violações, de processo de escravatura, mas está, também, cheia dos momentos de ultrapassagem desses abusos. Aliás, a contemporaneidade é o mais feliz de todos os momentos da humanidade: nunca no planeta viveram tantas pessoas, durante tantos anos, com tanta qualidade de vida.

Não há grandes razões para duvidarmos da capacidade da humanidade em continuar este progresso. E, sim, esse progresso far-se-á com mais tecnologia, mais inteligências artificiais, mais integração humano/máquina, mas também com inovações sociais na direcção do maior respeito pelos direitos humanos e pela liberdade.

A escravatura não precisou de tecnologia nenhuma para existir. A inquisição usou instrumentos de tortura básicos para provocar dores inimagináveis. A culpa é da maldade, não da tecnologia.

Hoje, o mundo está muito menos dominado pelas elites: nunca na história da humanidade o cidadão comum teve tanto poder e liberdade, seja através das suas decisões de consumo, seja através do seu voto, seja através da sua capacidade de influenciar outros, nomeadamente através das redes sociais.

A tecnologia e o desenvolvimento tecnológico apontam, sim, para a utilização dos chipes no corpo humano. Mas essa utilização será muito bem-vinda e será mais um passo na direcção do aumento da felicidade. E vamos adoptá-la livremente, sem necessidades de esquemas conspirativos insidiosos.

Enfim, sejamos vigilantes, mas não tenhamos medo.

Gabriel Leite Mota, publicado a 16 de Março de 2021

Thursday, March 11, 2021

A INEFICIÊNCIA ECONÓMICA DO LUCRO NA SAÚDE

A economia mainstream explica que quando os mercados não são perfeitamente concorrenciais os consumidores perdem bem-estar, a economia perde eficiência e as empresas obtêm lucros extraordinários, também chamados de rendas económicas.

Segundo as teses da economia mainstream, o óptimo social só se dá quando os mercados são perfeitamente competitivos, existe informação perfeita, os produtos são homogéneos, os bens são privados e não existem externalidades. Enfim, o óptimo social só se atingiria num mundo impossível. Ainda assim, esse mundo ficcional é utilizado como benchmark para comparação com a realidade: quanto mais nos afastarmos dessas condições ideais, pior fica a situação para os consumidores e para a sociedade.

Seja qual for o sector da economia real em que pensarmos, vamos descobrir que estamos sempre longe dessas situações ideais. Isso significa que os mercados, que a economia de mercado, é sempre, em parte, ineficiente e não produz o bem-estar desejável para os consumidores.

Mas se esse afastamento pode ser pequeno, quando lidamos com mercados bastante concorrenciais, como, por exemplo, o mercado dos restaurantes ou das padarias e confeitarias, em que há muita concorrência, em que os consumidores sabem bem o que estão a consumir (e se gostam ou não), em que não existem barreiras à entrada ou à saída das empresas no mercado, em que os bens não têm especiais efeitos externos e são de natureza privada (são para o consumo de quem os adquire), há outros sectores onde estamos muito distantes dessa realidade, desse ponto ideal.

O caso dos cuidados de saúde é paradigmático. A saúde tem dimensões de bem público, apresenta muitas externalidades, a informação é assimétrica, existem fortes barreiras à entrada e economias de escala que potenciam a concentração do mercado. Isto significa, na prática, que entregar ao mercado a produção e distribuição dos serviços de saúde vai gerar altíssimas ineficiências económicas, atirando os utentes de saúde para uma situação de baixo bem-estar, com serviços de pouca qualidade relativa face ao preço. Por outro lado, os produtores de saúde gozarão de altas rendas económicas, lucros extraordinários, que só são obtidos pela perda nos excedentes dos consumidores.

Os EUA são a prova empírica deste resultado teórico. Nos EUA há um gasto em saúde exorbitante: gastavam 16,89% do seu PIB em saúde (em 2018), obtendo resultados medíocres. Por exemplo, a esperança média de vida nos EUA (78,9 anos em 2019) é mais baixa do que em Portugal (82 anos em 2019), e muito mais baixa do que nos países com melhores índices de saúde (como o Japão, com 84,6 anos em 2019), países esses que gastam significativamente menos que o EUA (Portugal 9,41% do PIB, Japão 10,95%, ambos em 2018).

Ou seja, os EUA são o país mais ineficiente do mundo na produção de saúde para a população. Isso, porque entregou aos privados e aos mercados a produção e distribuição dos serviços de saúde. Inclusivamente, juntou a questão dos seguros que, mais uma vez, é um mercado que se depara com muitas ineficiências, desta vez a propósito das altas assimetrias de informação, que fazem com que nem toda a gente consiga ter um seguro, e as pessoas que conseguem têm que pagar muito para ter as coberturas que o seguro dá. Ao mesmo tempo, a falta de centralização de informação, de cooperação e coordenação entre hospitais faz com que, no global, os serviços prestados sejam altamente ineficientes. Há vasta literatura científica na economia da saúde que demonstra como o mercado funciona mal neste sector.

Em Portugal também se percebe esta ineficiência quando constatamos que, praticamente, não há concorrência entre os prestadores privados de saúde (temos dois ou três grupos que detêm quase todos hospitais privados, o mesmo no que diz respeito aos laboratórios de análises e exames). Assim, a abrangência e a relação qualidade/preço dos serviços fica posta em causa.

Sejamos claros: um mercado bem funcionante, em concorrência perfeita, funciona melhor que qualquer alternativa na produção de bens e serviços. Mas a análise concreta não pode ser feita usando esse mercado ficcional, antes, temos que ter em conta a realidade sectorial e, em particular, as características dos bens e serviços que queremos produzir.

O caso da saúde está cheio de características que tornam a provisão através dos mercados altamente ineficiente. As decisões que um toma para a sua saúde têm impacto sobre terceiros (veja-se o caso da pandemia e a decisão de tomar ou não tomar uma vacina, ou de se proteger ou não se proteger). Isso chama-se de externalidade, algo que o mercado ignora. Também por isso, há uma dimensão de bem público, uma dimensão que diz respeito a todos e não só ao indivíduo que toma a decisão no mercado. Assim, o mercado erra.

Depois, há uma elevadíssima assimetria de informação, porque nós não sabemos o que é melhor para nós em termos de saúde, são os médicos que sabem. Também nos seguros, como as empresas de seguros não sabem o nosso verdadeiro estado de saúde, protegem-se dessa assimetria criando um sem-número de exclusões e limitações, que tornam o próprio seguro ineficaz na protecção sustentada da saúde das pessoas.

Não se trata aqui de nenhuma questão ideológica. Trata-se de uma constatação de facto: os serviços de saúde só funcionam bem se tiverem mecanismos de coordenação central, de forma a que seja possível cobrir toda a população, durante todo o seu tempo de vida e independentemente de estarem a trabalhar, no desemprego, na reforma ou a estudar. Independentemente de serem saudáveis ou de serem doentes crónicos.

Os serviços de saúde só funcionam bem se as pessoas não tiverem medo do custo do serviço para acorrerem ao dito. A saúde não é como um iogurte que compramos no supermercado. É um elemento central da nossa vida, da nossa dignidade humana.

Obviamente que a produção centralizada, seja directamente através no Estado, seja através de serviços privados contratualizados com o Estado, vai ter sempre dificuldades e falhas. Mas não se pode argumentar que a privatização da saúde é que é boa, é que faria com que tivéssemos um muito melhor sistema de saúde.

Se queremos melhorar algumas das lacunas do nosso Serviço Nacional de Saúde devemos, sim, apostar numa gestão de maior qualidade. Essa gestão deve ter em conta indicadores de produtividade, evolução das listas de espera, qualidade dos serviços prestados, satisfação dos utentes, e deve contratar e premiar os recursos humanos em função das suas capacidades efectivas, não de jogos políticos internos ou corporativos.

Na prática, nenhum sistema é perfeito. Mas, no caso da saúde, a privatização é um erro perigoso.

Portugal tem um bom Serviço Nacional de Saúde que importa preservar e melhorar. A participação dos privados pode ser bem-vinda, desde que cumpram as regras exigidas pelo sistema, exigidas pelo organismo central, e não se apropriem dos lucros extraordinários que o mercado permite.

Quanto às falhas que o Estado vai tendo na produção dos serviços de saúde, têm que ser combatidas através de melhor gestão e incentivos mais apropriados. O segredo está na boa gestão, não na privatização dos serviços que existem.

Nota final para as farmacêuticas: as dificuldades que o mundo está a ter em conseguir vacinar atempadamente toda a população mundial contra a Covid-19 (nomeadamente nos países pobres) é também uma decorrência da ineficiência na produção e distribuição privada de medicamentos, neste caso de vacinas protegidas por patentes, que permitem a obtenção de lucros extraordinários por parte das farmacêuticas.

Gabriel Leite Mota, publicado a 11 de Março de 2021


Monday, March 8, 2021

BORA SER CHUPISTA COMO A IRLANDA!

A Irlanda costuma ser referida como um país exemplar ao nível das políticas económicas, em particular ao nível da política fiscal de atractividade do investimento directo estrangeiro. Os resultados, muitos argumentam, estão à vista: um PIB crescente, muitas sedes de multinacionais, emprego qualificado e mais dinheiro para o Estado irlandês.

Segundo esta estratégia competitiva internacional, os países devem apostar em oferecer aos capitais estrangeiros (e nacionais) as condições mais favoráveis possíveis, de forma a conseguirem os investimentos para si. É a ideia de um país ser “amigo do investimento”. Na União Europeia, não é só a Irlanda que adopta estas práticas: o Luxemburgo, a Holanda ou o Chipre também o têm feito e, agora já fora da União, o Reino Unido. Desde sempre, a Suíça.

Os defensores destas estratégias dizem que estas políticas são inteligentes porque beneficiam muito os países que as adoptam (Luxemburgo, Irlanda e Holanda são os três países da UE com mais PIB per capita), esquecendo-se que esta é uma política oportunista e de roubo: é uma política que desvia os impostos de outros países, nomeadamente dos países de onde provém esse capital, consubstanciando-se como um roubo ao Estado Social dos países de origem.

No caso da Irlanda, o facto de grandes multinacionais como a Apple, a Dropbox, o eBay, o Facebook, a Google, o LinkedIn, a Oracle, a Yahoo, a PayPal, o Airbnb ou o Twitter sediarem-se lá (para as operações fora dos EUA), beneficiando de taxas muito baixas de IRC e de esquemas de movimentação de lucros internacionais, faz com que os EUA (donde essas empresas são oriundas) tenham enormíssimas quebras na sua receita fiscal que, depois, não podem ser utilizadas em despesas de saúde ou educação, ou em diversos investimentos públicos no país. O mecanismo é simples: ao praticarem-se taxas que são verdadeiras amnistias fiscais, transformam-se umas regiões em paraísos fiscais à custa do roubo às demais.

É, ainda, interessante verificar como muito dos defensores destas políticas agressivas ao nível fiscal são fortes opositores de políticas monetárias expansionistas, de políticas de desvalorização da moeda ou de ajudas de Estado às empresas estratégicas (estas, proibidas na UE), sempre com o argumento que essas são políticas que os vizinhos podem copiar (em retaliação) e que, portanto, não são eficazes a médio prazo. Na Economia, essas políticas têm mesmo a denominação inglesa “beggar thy neighbour”.

Ora, acontece que as políticas de concorrência fiscal são exactamente políticas “beggar thy neighbour”, em que uns países vivem à custa dos outros, com esses outros a poderem retaliar, neste caso, baixando também as suas taxas IRC. Se todos os países aplicarem esta estratégia de concorrência fiscal continuada, no fim do dia, todos os países transformar-se-ão em paraísos fiscais e o capital deixará de pagar impostos. Acontece que esse é o verdadeiro objectivo, inconfessado, de quem defende estas políticas.

Na verdade, esta é uma prática imoral e insustentável: se queremos viver em Estados democráticos e sociais, precisamos de impostos para financiar os bens públicos e corrigir as enormes imperfeições dos mercados. Mais, precisamos que o factor capital pague muito mais do que paga hoje: sabemos que, nas últimas décadas, tem havido uma distorção no sentido da perda do peso dos rendimentos do trabalho, face aos rendimentos de capital, na distribuição do rendimento. Isso tem de ser corrigido.

Aquilo que a União Europeia tinha de fazer era uma política agressiva de combate aos paraísos fiscais, começando pelos que tem dentro de portas, nomeadamente, o Luxemburgo, a Holanda e a Irlanda. Tínhamos de estabelecer taxas europeias mínimas de IRC e determinar a tributação não em função da localização da sede, mas em função do local onde os proveitos são gerados. Isso sim, é justiça, isso sim, é moralidade económica. A burla fiscal da Irlanda, Luxemburgo ou Holanda equivale a querer viver à custa de outros, querer que o bem-estar próprio seja ganho através da perda do bem-estar alheio.

É, mais uma vez, curioso verificar que muitos dos defensores das tributações baixíssimas para o capital são grandes opositores dos subsídios de inserção social ou mesmo de rendimentos mínimos garantidos, por serem contra a subsidiodependência. Mas se for um capital não tributado, tudo está bem. Acontece que um capital não tributado é, na prática, uma subsidiodependência obscena: é a sociedade não cobrar ao capital o que está a cobrar ao trabalho ou ao consumo.

Sejamos sérios e defendamos políticas económicas eficazes, mas morais. Caso contrário, é a lei da selva.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 8 de Março de 2021


Monday, March 1, 2021

O PROLETARIADO INTELECTUAL EM TELETRABALHO

Em entrevista ao Jornal i, a professora de economia, Susana Peralta, declarou que uma forma de subsidiar quem está a ser muito prejudicado pelos encerramentos causados pela pandemia seria através da cobrança de impostos extraordinários àqueles que ela designou por “burguesia do teletrabalho” ou trabalhadores dos serviços, que são os mais qualificados.

Nas palavras da própria, “Houve uma parte substancial das pessoas em Portugal que não perderam rendimentos, toda a burguesia do teletrabalho, todas as pessoas do sector dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas, o que também me inclui a mim. Esta crise poupou muito as pessoas que trabalham neste sector e são as pessoas com mais escolaridade”.

Antes de começar a analisar a justeza de tal proposta, convém esclarecer um ponto inicial: tecnicamente, burguesia é a classe social dos detentores dos meios de produção para além do trabalho, isto é, os detentores do capital, donos de empresas, que contratam assalariados. Aqueles que vivem apenas dos rendimentos do seu trabalho não são burgueses, são assalariados.

Na verdade, podemos dividir esses assalariados entre proletariado e classe média. Com a distinção a ser feita em função das qualificações das pessoas e dos rendimentos auferidos.

Nos países desenvolvidos, durante o séc. XX, conseguiu-se que muitos assalariados deixassem de pertencer ao proletariado (que, no séc. XIX, eram operariado do sector industrial) porque, através de maiores qualificações académicas e de direitos laborais conquistados, obtiveram rendimentos do trabalho que lhes permitiram ter um melhor nível material de vida.

Acontece que uma das transformações significativas nos países desenvolvidos, nos últimos 40 anos, tem sido a progressiva destruição das classes médias, através da erosão dos rendimentos do trabalho das pessoas qualificadas e da perda de direitos laborais.

A partir do momento em que cada vez mais pessoas obtêm qualificações avançadas (em Portugal a escolaridade obrigatória já está no 12.º ano, e uma grande percentagem de jovens completa o ensino superior), a entrada no trabalho dessas pessoas faz-se com condições laborais muito degradadas, começando pela precariedade dos contratos e acabando nos baixíssimos salários auferidos.

Essas pessoas, por mais qualificações académicas que detenham, tornam-se parte do proletariado, já não mais da classe média. E nunca burgueses.

A partir daqui, percebe-se o erro inicial da proposta de Peralta: quando fala na “burguesia do teletrabalho”, está a utilizar uma concepção vulgar da palavra burguesia, que aponta para pessoas privilegiadas. Sendo Peralta uma professora de economia, essa confusão terminológica devia ser evitada.

Refere-se, também, ao facto de as pessoas dos serviços estarem em teletrabalho e ser nos serviços que as pessoas mais ganham (porque mais qualificadas). Aqui, escapa-lhe a complexidade da realidade: durante a pandemia, há burguesia que tem ganho e perdido, em todos os sectores de actividade, e há trabalhadores que têm mantido as suas condições de trabalho intocáveis, independentemente de pertencerem ao sector dos serviços ou não (veja-se algum pessoal da construção e da indústria). Mais, há pessoas do sector dos serviços (vide turismo e comércio) que são das mais afectadas.

Lembremo-nos que, numa economia desenvolvida como a portuguesa, a esmagadora maioria das pessoas trabalham nos serviços, pelo que estar a dizer que são essas pessoas que têm que suportar os custos da pandemia não faz sentido.

Facto é que algumas empresas do sector tecnológico (vide o caso do Zoom) têm beneficiado enormemente com os confinamentos e a necessidade das pessoas praticarem o teletrabalho. Essas empresas, sim, que são beneficiárias extraordinárias da pandemia, deviam ajudar os perdedores extraordinários da pandemia (como as pessoas da restauração, do turismo, da hotelaria ou do comércio) que viram impossibilitada a continuação dos seus trabalhos. Aliás, no turismo e comércio, todos perderam: os grandes, os pequenos e os médios burgueses, assim como os assalariados de maiores ou menores qualificações, de maior ou menor salário, ou seja, das classes médias ao proletariado.

Acresce, ainda, que temos um conjunto de pessoas que não beneficiaram, nem perderam, financeiramente com a pandemia. Muitas dessas, é certo, fazem parte do sector dos serviços e estão em teletrabalho. Mas porque pedir a essas pessoas contribuições extraordinárias, se nada estão a lucrar com a pandemia?

Mais, estamos numa situação provocada por uma catástrofe natural, que a todos prejudica, que condiciona a nossa liberdade de movimentação e de expressão. E muitas das pessoas que a Susana Peralta classifica de “burgueses do teletrabalho” estão em casa, a ter que cuidar dos filhos em ensino à distância, em situações mais complexas do que aquelas que viviam quando podiam ir para os seus escritórios e deixar os seus filhos nas escolas.

Já que a palavra burguesia foi trazida à baila, convém usá-la com rigor técnico e científico.

Aliás, a classe social é, e nunca deixou de ser, a grande clivagem económica entre as pessoas numa sociedade capitalista: aquelas que detém os meios de produção e aquelas que dependem exclusivamente do trabalho para ganhar a vida.

Note-se ainda que, na burguesia, não se incluem os profissionais liberais (muitos em teletrabalho), por mais recibos verdes que passem, ou empresas em nome individual que possuam, já que a maior parte desses profissionais liberais nem o escritório detém (pagam renda ao senhorio).

Um profissional liberal, tipicamente, era enquadrado na classe média, dadas as suas maiores qualificações académicas e os rendimentos mais generosos que tendiam a auferir. Mas isso reporta-se a um tempo que já passou. Em Portugal, há 50 anos, ser arquitecto ou advogado correspondia a ter uma posição social interessante, com a autonomia de se ser profissional liberal (dono de si próprio) e com os rendimentos generosos que eram obtidos, dada a falta de concorrência, dada a falta de pessoas qualificadas nessas áreas.

Actualmente, arquitectos e advogados estão, genericamente, proletarizados. Pessoas que, muitas vezes, já não conseguem ser profissionais independentes, e vivem como assalariados a recibos verdes, sem direitos laborais, com baixíssimos salários. Tantos, acabam mesmo por desistir dessas áreas profissionais e empregam-se noutros sectores.

O mesmo se diga de médicos e enfermeiros, qualificações profissionais que, outrora, conferiam posições económicas muito favoráveis e, actualmente, se precarizaram e proletarizaram: veja-se a quantidade enorme de enfermeiros emigrados.

O que a massificação do ensino e a concorrência internacional trouxeram a um mercado laboral como português, foi uma absoluta precarização do trabalho intelectual.

O ensino superior, aliás, é um exemplo paradigmático de um mercado dual, em que há pessoas que estão confortavelmente instaladas em universidades públicas, com bons contratos e com total estabilidade laboral, enquanto outros, pouco mais novos, não conseguiram aceder a essas oportunidades e se vêem hoje enredados em contratos precários, em bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento, ou a dar aulas em universidades privadas por metade do salário e com contratos precários. O ensino superior, também ele, se precarizou.A reacção forte de crítica, que surgiu nas redes sociais, à proposta de SP, é bem demonstrativa de como as pessoas não se reviram na classificação de “burgueses do teletrabalho”, nem sequer privilegiados do sector dos serviços.

A grande maioria das pessoas que trabalham nos serviços em Portugal é proletária, a grande maioria das pessoas que, outrora, cabiam na classe média, hoje, estão proletarizadas.

Seria completamente injusto pedir a essas pessoas uma contribuição adicional para acorrer a uma crise, quando existem, sim, os verdadeiros burgueses do mundo virtual – pense-se nos donos do Facebook, da Google ou do Zoom, que estão a lucrar imensamente com esta crise; ou pense-se nos investidores dos mercados financeiros (que continuam a bater recordes de capitalização).

Se há proposta que faria sentido, mais do que nunca, é taxar os investimentos em bolsa, a especulação financeira e as grandes empresas da internet, que abusam do seu poder de mercado para retirar dividendos extraordinários, mesmo em tempos de pandemia.

Aliás, essa discussão já estava a ser tida antes da pandemia, por causa do aproveitamento de conteúdos que empresas como a Google ou Facebook fazem, sem nada contribuírem para isso, e que, recentemente, a Austrália está a tentar corrigir impondo um imposto a essas empresas. Mas, depois, já sabemos, o poder negocial dessas mesmas empresas, desses burgueses, é tal que, mesmo Estados têm muita dificuldade em competir à mesa das negociações com essas entidades de poder supranacional.

Numa altura de dificuldade e de polarização como a que estamos a atravessar, convém acertar o alvo. Vir dizer que quem deve pagar a crise é uma suposta classe média, que quase já não existe (ainda para mais chamando-a de burguesa), é dar um tiro ao lado.

Gabriel Leite Mota, publicado no Público a 1 de Março de 2021


Friday, February 26, 2021

OS IRRESPONSÁVEIS PODEM, OS RESPONSÁVEIS NÃO


Um tema que tem sido alvo de continuado debate na actualidade é a questão da liberdade de expressão. A liberdade de expressão, que está consagrada como direito fundamental em muitos ordenamentos jurídicos do mundo ocidental, tem sido palco de batalha a propósito da ideia do politicamente correcto.

A consagração da liberdade de expressão como um direito fundamental parte de uma ideia, liberal e democrática, de que as pessoas têm direito à sua opinião, e a expressá-la privada e publicamente, ou seja, não há delito de opinião, nem pode uma pessoa ser presa por aquilo que pensa ou diz.

Ao mesmo tempo, como qualquer direito, há um pressuposto de responsabilidade e de limites. Ou seja, não só há limites legais à nossa liberdade de expressão (nomeadamente quando aquilo que dizemos constituiu injúria ou difamação, ameaça séria ou incitamento à violência e ao ódio), mas também uma noção de que o que dizemos tem consequências.

E é aqui que muitas discussões se põem. Os defensores mais acérrimos da liberdade de expressão declaram o direito a ofender como única forma de tornar o direito à liberdade de expressão real: é que se não pudermos ofender ninguém com aquilo que dizemos, então, nada poderemos dizer, pois qualquer coisa que digamos pode sempre ferir a susceptibilidade de alguém.

Ao mesmo tempo, não perceber a perigosidade de certos pronunciamentos e discursos pode conduzir-nos a situações complexas, em que, sob a capa da liberdade da expressão, se deixa poluir o espaço público com violência verbal e mentiras de consequências muito nefastas.

Aliás, essa tem sido a estratégia de muitos populistas, neofascistas, negacionistas e delirantes conspiracionistas, reivindicando o direito de tudo poder dizer na praça pública, onde se incluem as redes sociais, mesmo quando os que pronunciam esses discursos têm responsabilidades acrescidas, nomeadamente políticas ou técnicas.

O caso mais paradigmático foi mesmo o de Trump, enquanto presidente dos Estados Unidos da América, que sempre que se manifestava publicamente mentia e/ou incentivava à violência, ao ódio e à destruição. Tudo isso com a complacência dos meios de comunicação social e das redes sociais. Foi preciso esperarmos pelo fim do seu poder político para que essas instituições banissem a voz de Trump.

Por cá, temos os “movimentos pela verdade”, André Ventura e demais ramificações do Chega, que utilizam essas tácticas de guerrilha comunicacional para singrarem eleitoralmente e manipularem o ambiente social. Esta é uma discussão complexa que não se resolve com posições dogmáticas: a liberdade de expressão não é um direito absoluto superior à vida ou ao bem-estar colectivo.

Ao mesmo tempo, a ideia do politicamente correcto como forma de não ferir susceptibilidades também não pode ser imposta dogmaticamente, sob pena de se esmagar o direito fundamental da liberdade de pensar e de dizer.

Creio que uma forma inteligente, e prática, de resolver esta questão passa por distinguir não só o tipo de discurso, mas sobretudo quem, e em que posição, diz o discurso. A liberdade de expressão tem que ser calibrada em função da posição de quem se expressa.

As coisas que o Presidente da República pode dizer em público têm que ser muito mais limitadas e controladas do que as coisas que o cidadão Marcelo de Rebelo Sousa pode dizer. E se podemos conceber que uma pessoa faça discursos diferentes, investida ou não do cargo que exerça, o mais prudente é, enquanto alguém exercer cargos de alta responsabilidade, policiar as suas afirmações públicas como se fossem, sempre, investidas pela posição que ocupa.

Uma coisa é o que diz um juiz, o Presidente do Tribunal Constitucional, um professor catedrático, um médico, um governante ou um gestor público, outra coisa é o que diz um “bitaiteiro” enquanto comentador da actualidade.

Isto significa que um artista, humorista, ou os referidos opinadores devem gozar da mais plena liberdade de expressão. Devem poder dizer o que pensam, mesmo que o que pensam seja a mais profunda estupidez, ou a mais comprovável das mentiras. Porque, no fundo, são uns irresponsáveis. A sociedade não lhes atribuiu competências técnicas, de representação ou de direcção.

Por mais que desgostemos, e possamos fazer um juízo moral, um artista (seja escultor, pintor, cineasta ou escritor) tem direito de fazer comentários racistas, xenófobos, machistas, negacionistas ou anti-semitas.

Já um juiz, um professor na sala de aula, um médico a falar em público, um governante ou um jornalista nas suas funções, têm que moderar o seu discurso pela responsabilidade dos cargos que ocupam. Em Portugal não podem, por exemplo, fazer pronunciamentos anticonstitucionais, como dizer que se deve exterminar uma minoria, que o fascismo é que era bom ou que o lugar das mulheres é em casa a lavar pratos.

No caso dos jornalistas, note-se que aqueles que aparecem como opinadores profissionais perdem a investidura jornalística. Aliás, é incompreensível o excessivo protagonismo da opinião dos jornalistas. A função nobre dos jornalistas é encontrar a informação, processá-la e transmiti-la, nomeadamente através de reportagens e de jornalismo de investigação. Opinar é uma actividade para qualquer um. Não entendo, por exemplo, o porquê de existirem programas televisivos de opinião só preenchidos por jornalistas como O Eixo do Mal – confesso que gosto de programas de opinião e que também gosto de opinar. E acho que esses programas devem ser espaços de liberdade. Noto é uma gritante falta de pluralidade (sobretudo homens, residentes em Lisboa, jornalistas ou políticos).

Relativamente ao balanço entre o politicamente correcto e a liberdade de expressão, penso que o equilíbrio está em darmos mais liberdade a quem é menos responsável, e darmos menos liberdade a quem é mais responsável. Devemos exigir um discurso politicamente correcto a um juiz/a, a um professor/a na sala de aula, a um/a militar ou polícia, aos bastonários/as, aos médicos/as e enfermeiros/as, aos cientistas, ao presidente do TC, aos gestores/as públicos/as e aos/às governantes.

Quem não quiser suportar o fardo do politicamente correcto, e quiser ter a liberdade de expressar todas as suas ideias parvas sem freio, tem bom remédio: virar artista de variedades, comediante ou opinador profissional. No fundo, virar alguém a quem a sociedade não confere responsabilidades técnicas ou executivas, gozando do estatuto da irresponsabilidade (estatuto que tantas vezes Ricardo Araújo Pereira, e bem, reivindica).

Gabriel Leite Mota, publicado a 26 de Fevereiro de 2021

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"Desde que Adam Smith publicou “A Riqueza das Nações” que se gerou a noção de que a ciência económica havia de ser a disciplina que nos...