Vivemos num tempo em que o discurso ideológico tem perdido força para um situacionismo fatalista em que tudo parece ter que ser como é. A democracia (como sistema político) e o capitalismo de mercado (como sistema económico) são apontadas como as melhores (senão únicas) soluções para organizarmos a sociedade.
No fundo, é a ideia de que chegámos ao “fim da história”. Na verdade, tal não passa de um mito: enquanto existirem seres humanos a história nunca findará… Porém, o perceber que não chegámos ao “fim da história” não equivale a dizer que qualquer ideia alternativa é válida, muito menos quando muitas são versões modernizadas de ideias antigas que nunca demonstraram a sua exequibilidade. E se queremos progredir, e contribuir com alternativas válidas, temos que perceber que algumas dessas ideias estão objectivamente erradas! É por isso que penso ser importante discutir anarquia e ultraliberalismo.
Afinal, o que significam? A rotulagem caricatural normalmente feita diz-nos que a anarquia é uma doutrina de esquerda (feroz opositora do capitalismo) defendida por libertinos irresponsáveis vestidos de preto, uns parasitas andrajosos (e potencialmente revolucionários) que vivem à margem do sistema e que o ultraliberalismo é uma ideologia de direita, defendida por indivíduos bem-postos, de gosto requintado, com camisas e blêizeres engomados e cabelo bem penteado.
Para os anarquistas, o bom seria abolirmos as leis e todas as formas de governo: cada ser humano viveria, então, de acordo com as suas vontades, em liberdade e num clima de harmonia social não coerciva… Para os libertários (ou ultra-liberais), os seres humanos, através da negociação feita nos mercados (ó instituição omnipotente), conseguiriam chegar a todos os equilíbrios sociais, que seriam os mais desejáveis possíveis. Posto assim, parecem duas realidades muito distintas, quase opostas.
Mas olhemos com mais atenção. Ambos estão obcecados com a ideia de liberdade e acreditam que a desregulação é o caminho para a atingirem. Só diferem no “modus operandi”: os anarquistas atacam as regras sociais; os libertários, as regras económicas. Mas uns e outros, respectivamente, parecem acreditar que só podem ser virtuosas as consequências da anarquia social na economia e as consequências sociais do liberalismo económico.
Na prática, ambos estão muito convictos da superioridade intelectual e da exequibilidade do seu ideal e ambos caem na mesma falácia primordial: a crença de que a máxima liberdade é atingida através da mínima regulação.
Porém, o que ambos propõem nem sequer chega a ser utopia senão mera impossibilidade lógica. Assim como os economistas austríacos do início do séc. XX demonstraram que um qualquer sistema de planeamento central da economia estava vetado ao fracasso, por incapacidade de gestão da informação, também se prova facilmente que não existem sistemas de organização humana sem regras nem coerção.
A única coisa que podemos escolher é o modo de definição dessas regras. Em democracia, são os eleitores que, por delegação (ou directamente) as determinarão. Em anarquia, ou num sistema libertário, essas regras passariam a ser definidas por minorias que se apropriariam do poder e dominariam o sistema! O facto é que a anarquia ou o ultraliberalismo não são sonhos difíceis para os quais possamos caminhar: são simplesmente impossibilidades! Assim como não conseguimos violar as leis da termodinâmica, também não conseguimos escapar ao facto de que as sociedades humanas sempre foram, e sempre serão, regidas por leis (implícitas ou explícitas), instituições e hierarquias. E a anarquia ou o ultraliberalismo não conseguem escapar a isso. Pelo contrário, ao caírem na ilusão de que sem regras todos os seres humanos ficariam mais livres, estão a criar o espaço mais propício à apropriação por poucos das liberdades dos muitos.
A grande lição é: se a liberdade individual é um valor maior, então, temos que impedir que as falácias anarquistas e liberais façam caminho. Pelo contrário, é através da defesa um Estado de Direito forte e democrático que conseguimos que todos tenhamos a maior liberdade efectiva possível.
Gabriel Leite Mota, publicado no P3 a 24 de Maio de 2012
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