Quando nascemos não sabemos ao que vimos. Temos uma mãe que nos alimenta e mais alguns carinhos… Depois crescemos e começamos a entender o mundo. Acima de tudo, começamos a perceber a precaridade do que nos rodeia e (talvez mais tarde) a nossa. Talvez isso seja a verdadeira definição de adulto: aquele que sente o fim.
Quando começamos a olhar para o mundo e tentamos entender a sociedade, todos temos a ilusão de estabilidade e de exterioridade: as coisas são como são e pouco podemos fazer para as alterar. O Estado, as empresas, as leis, as escolas, os tribunais, os polícias, os políticos e as suas políticas, as leis ou mesmo as tecnologias, parecem-nos como que produtos acabados e sempre existentes. E podemos ir mais longe: a família, as fronteiras do país ou da cidade onde vivemos e até o tempo (a sua contagem), tudo nos parece um dado na nossa existência.
A verdade, porém, é que nada disso está garantido: as empresas podem falir, o Estado colapsar, e os políticos, juízes, polícias e militares deixarem de cumprir as suas funções e terem que passar a procurar comida. Podem as constituições e demais leis desaparecer (ou apenas existirem em papéis enclausurados numa qualquer gaveta) e toda a nossa vida mudar. Pode vir a guerra (em que nos temos que matar), pode vir a fome (de que alguns vão morrer) e podemos ter que parar de contar o tempo que passa.
O facto é que quando se nasce e se cresce em paz e prosperidade (como grande parte das populações dos países desenvolvidos a partir da segunda metade do séc. XX) muito facilmente perdemos a visão da realidade: a mutabilidade e precariedade de todas as coisas!
Hoje muito se fala do ataque à classe média dos países desenvolvidos que as demais políticas neoliberais (primeiro) e de austeridade (agora) estão a consubstanciar. Os que se sentem afectados queixam-se e reclamam pelos direitos adquiridos. Porém, mais do que adquiridos, esses direitos foram consagrados.
Quer isto dizer que mais do que se ter lutado por uma classe média, ela foi inventada. É verdade que existiram lutas operárias que pressionaram as elites em determinado sentido e que o bloco de leste também forçou as sociedades ocidentais numa determinada direcção.
Porém, o facto é que, finda a segunda guerra mundial (foi há tão pouco tempo…), as elites decisoras definiram um modelo social em que uma classe média iria ter um papel central: havia de existir um conjunto alargado de pessoas (a maioria) que, apesar de obterem rendimentos apenas do seu trabalho, iriam auferir remunerações que lhes permitiriam ter uma vida confortável.
Pessoas com formações académicas médias e elevadas que poderiam exibir padrões de consumo e de lazer nunca antes atingidos por uma maioria da população (e que acabavam por ser o sustentáculo do próprio sistema capitalista de consumo).
É verdade também que nessa altura a Europa e os EUA gozavam de uma prosperidade económica e de condições demográficas muito favoráveis à existência de tal modelo socioeconómico que, hoje, já não perduram. Mas essa não é a questão central: o que ditou a criação da classe média foram as regras do jogo (como a existência de salários mínimos, a contratação colectiva, os entraves ao despedimento, as regalias sociais, etc.).
O que a pode destruir são essas mesmas regras. Tirando a questão demográfica (que brevemente estabilizará) todos os outros problemas utilizados como argumentos para a insustentabilidade da classe média ocidental prendem-se com as regras do jogo: a desregulamentação (do comércio, dos mercados financeiros e da fiscalidade mundiais) é uma criação humana reversível! Assim, o problema é político e não técnico: saber quem tem mais força para desenhar as regras. Nesse sentido, as classes médias, se querem continuar a existir como classe têm que lutar (democraticamente) para que essas regras voltem a ser o que já foram.
A grande lição de tudo isto é que nunca podemos tomar nada por garantido, e que temos que lutar por aquilo que nos é benéfico e afastar aquilo que nos prejudica. De resto, a morte é a única coisa certa, já muitos o disseram. Até lá, resta-nos viver sem garantias de prosperidade, estabilidade, conforto ou felicidade, ainda que com a vontade firme de caminhar sempre nessa direcção…
Gabriel Leite Mota, publicado no P3 a 12 de Setembro de 2012
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