Um dos grandes sucessos da democracia portuguesa é o seu Sistema Nacional de Saúde (SNS).
De um sistema de saúde miserável provindo da ditadura, que deixava milhões de portugueses sem acesso digno à saúde e, consequentemente, retornava altas taxas de mortalidade (infantil e adulta) e baixa esperança média de vida, passámos para uma realidade em que um país medianamente rico como o nosso consegue ter das mais baixas taxas de mortalidade infantil do mundo, uma esperança média de vida muito boa – por exemplo, superior à dos EUA (de longe o país mais ineficiente do mundo na gestão do seu sistema de saúde) – e um acesso universal ao sistema público de saúde.
É, sem dúvida, uma das grandes conquistas da democracia que importa preservar e fortalecer.
Entretanto, o século XXI tem trazido desafios para o SNS: 1) O envelhecimento populacional faz com que cada vez mais pessoas necessitem de recorrer ao sistema; 2) Os problemas de gestão dos recursos, e a sua eficiente utilização, são muito complexos, dada a dimensão e pluralidade do sistema (veja-se o problema da compra de medicamentos, da construção de infra-estruturas ou alocação dos profissionais); 3) A contenção financeira provinda da crise e o nível de endividamento fazem com que o sistema não esteja a ser capaz de responder a necessidades crescentes da população e à oferta de profissionais; 4) O crescimento do sector privado de saúde tem trazido algumas perversidades ao sistema (ex: ADSE e SNS a sustentarem esses hospitais).
A verdade é que um SNS é, por definição, uma máquina muito pesada. Mexe com muito dinheiro, com muita gente, logo, com muitos interesses. A pouca transparência inerente à complexidade favorece decisões pouco claras, muitas vezes más, ineficientes ou mesmo corruptas.
Ao contrário do que alguns defendem, um SNS tem especificidades (é um bem público e exibe assimetrias de informação, externalidades, economias de escala e monopólios naturais) que tornam o mercado muito fraco na provisão deste serviço (o já referido caso norte-americano é o exemplo mais paradigmático).
Não quer isto dizer que o sistema público seja perfeito. Mas é melhor, desde que se efectuem algumas correcções: 1) Gestão eficiente dos recursos humanos e materiais combatendo as duplicações e desperdícios; 2) Transparência nas decisões; 3) Avaliação e responsabilização dos gestores e demais recursos humanos em função dos resultados produzidos na saúde da população.
É nesta senda que adianto a proposta em título: não faz sentido que as Universidades públicas que criam profissionais de saúde a um custo muito superior ao que cada aluno paga pela sua formação, os desperdice: ora forçando-os à emigração (muitos enfermeiros e alguns médicos), ora deixando-os escapar para o sector privado.
A lógica tem que ser inversa: como as necessidades de recursos humanos são relativamente previsíveis a médio prazo, as Faculdades públicas de saúde têm a obrigação de apenas abrir vagas em função das necessidades do sistema, ao mesmo tempo que devem obrigar os profissionais de saúde aí gerados a contribuírem para o SNS durante o tempo suficiente para pagarem o investimento neles feito.
Por exemplo, um médico, depois de ter acesso à especialidade, terá que ficar ligado ao SNS, aos hospitais e centros de saúde públicos, e ser colocado no país em função das necessidades de distribuição geográfica do mesmo, até ter retribuído para o sistema o que nele foi investido.
Ou seja, a carreira de muitos profissionais de saúde deveria passar a ser parecida com a dos magistrados: em exclusividade, colocados por todo o país e com emprego garantido com remuneração adequada (desejavelmente com mais transparência, avaliação e responsabilização do que no caso da magistratura).
Doutra forma, o país está a investir na produção de recursos humanos que vão ser absorvidos por outros países ou pelo sector privado, que não pagaram a sua formação e com eles lucrarão. Obviamente que deve ser dada liberdade de escolha aos profissionais de saúde: se um médico especialista quiser ir exercer para o privado ou estrangeiro, bastará pagar ao Estado a sua formação. O mesmo se aplicaria a enfermeiros e afins.
Ditadas as regras, ab initio, não se gerariam expectativas frustradas, nem desemprego nos profissionais de saúde. E os que integravam o SNS ficariam avaliados e absolutamente dedicados.
Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 3 de Janeiro de 2019