Um dos factos estatísticos da contemporaneidade é o agravar das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento (principalmente na riqueza). Seja dentro de um país, seja à escala global, a tendência que se verifica é para os 1% mais ricos acumularem cada vez mais riqueza e rendimento (principalmente no topo 1% desses 1%).
Este processo iniciou-se no fim da década de 70 do séc. XX, por causas específicas: financeirização da economia; liberalização do comércio internacional; desregulação dos mercados financeiros; expansão dos paraísos fiscais; mudanças tecnológicas (que beneficiaram muito certas pessoas, certas empresas e certos países).
De notar, porém, que, no pós Segunda Guerra Mundial, tinha-se assistido a um processo inverso, de desacumulação da riqueza e do rendimento nos 1% mais ricos, à boleia da criação dos Estados Sociais, do aumento dos impostos sobre os mais ricos e da implementação de mecanismos de cooperação internacional. Ou seja, o processo de agravamento das desigualdades não é “natural” nem irreversível. É político.
Assim, o que se tem que debater é se queremos que este processo se adense, ou se achamos que deve ser combatido.
Embora comece a existir uma maioria (mesmo entre os economistas) que considera este estado de coisas obsceno, imoral e pornográfico – em que as 400 famílias mais ricas dos EUA detêm mais riqueza que as 60% mais pobres (e pagam menos impostos que a classe média, pela primeira vez num século, como bem relatam Gabriel Zucman e Emmanuel Saez no seu recente livro “O Triunfo da Injustiça”) ou, em Portugal, onde o top 10% das famílias mais ricas detém metade da riqueza nacional e as 50% mais pobres acumula apenas 8% dessa riqueza – há quem considere isso normal, uma consequência do mérito, do esforço e do trabalho (actual ou herdado), assegurando que não se pode mexer nessa distribuição, sob pena de se estar a roubar/confiscar o que os mais ricos têm por direito.
E é aqui que entra a discussão filosófica e científica.
Científica, na medida em que é fácil provar que estas acumulações só acontecem devido a economias de escala, a poderes de oligopólio e de monopólio e a efeitos bola de neve, enfim, a círculos virtuosos de riqueza, e os simétricos círculos viciosos de pobreza, onde se fica mais rico porque se é rico e mais pobre porque se é pobre, que nada têm a ver com mérito, apenas sorte onde se nasce e cresce.
Filosófica, na medida em que uns aceitam isso como justo, enquanto outros denunciam essa realidade como imoral e anti meritocrática.
Na verdade, as assimetrias da actualidade só acontecem devido às já referidas opções políticas e às dinâmicas próprias da economia desregulada e da mudança tecnológica acelerada. Ou seja, há muito espaço de intervenção.
Quem – sabendo que os três primeiros anos de vida são fundamentais para o nosso desenvolvimento e que a classe social dos nossos pais é determinante no nosso sucesso – defende uma igualização de oportunidades e um afastamento, no máximo possível, da sorte na determinação do futuro, tem que estar ao lado dos que combatem as desigualdades extremas na riqueza e no rendimento que caracterizam a contemporaneidade. Tem, por isso, que defender políticas fiscais e sociais redistributivas que permitam que quem nasce desfavorecido deixe, facilmente, de o ser durante a vida.
Só com acesso universal, livre e de qualidade à saúde, ao ensino (inclusivamente o superior) e às redes de poder (que costumam estar em círculos muito fechados) é que se consegue mitigar a força da sorte. Aceitar as acumulações de riqueza e rendimento de hoje é aceitar a perpetuação de círculos fechados de poder nas mãos de poucas famílias à escala mundial. É aceitar a destruição das classes médias e a proletarização das massas, algo que é insustentável, como já se viu pelas convulsões deflagradas no séc. XX quando as assimetrias atingiram tais patamares.
Não se pode ficar à espera que sejam os 1% mais ricos (e os 1% mais ricos desses) a aceitar benevolamente a mudança de cenário. Temos de ser nós, os 99%, a, democraticamente, repormos a justiça através de uma redistribuição sã da riqueza.
Gabriel Leite Mota, publicado a 16 de Janeiro de 2020