É por causa disso que temos as democracias liberais do ocidente, as Repúblicas, os Estados laicos, os Direitos Humanos, a “liberdade, igualdade, fraternidade”, os sistemas de mercado capitalistas e outras instituições que se baseiam na autonomia do indivíduo e/ou no respeito primeiro pela vida dele.
Importa, no entanto, perceber que este movimento político, filosófico e económico acontece no séc. XVIII como oposição aos sistemas antigos de centramento nos deuses ou nos reis (como representantes terrenos das divindades) e nos Estados, mais uma vez materializados nas figuras dos seus chefes supremos.
Foi, por isso, um movimento revolucionário, que passou a dar a todos os indivíduos a possibilidade de serem iguais entre si, em direitos e deveres, e a escolherem as suas lideranças e as suas crenças.
O caminho, porém, ainda só agora começou, uma vez que abundam os regimes e as culturas iliberais e não humanistas e permanece a obsessão pelo culto a certas pessoas, imagens ou livros (mesmo nos regimes ditos colectivistas, onde o culto do individual, nomeadamente do líder na nação, é doentio).
Nesse aspecto, o surgimento do liberalismo e do capitalismo abriram foi as portas para mais cultos de personalidade: já não só os deuses, os livros sagrados ou os líderes do Estado, agora os desportistas, os empresários ou os artistas (entre outros).
Não deixa de ser importante que, agora, mais pessoas possam aceder a esse estatuto de personagens de culto. Mas o correcto seria acabar-se, para sempre, com a elevação de coisas, pessoas ou escritos ao estatuto de sagrado.
Para sermos todos iguais em direitos, deveres e oportunidades, nada nem ninguém pode ser sagrado. E a sacralização de certos indivíduos e do individual, não só é ontologicamente errada como origina e justifica desigualdades absurdas entre os seres humanos.
A discussão que agora está a acontecer a propósito das estátuas derrubadas nas manifestações anti-racismo poderia ser enquadrada por este prisma. Como as sociedades mudam, os seus valores também. E, assim, o estatuto que conferem às coisas e às pessoas.
Indivíduos que, outrora, foram considerados muito importantes e merecedores de imortalização escultórica estão, hoje, a ser reinterpretados e considerados imorais, logo, desmerecedores das honrarias obtidas. Por isso, destroem-se os símbolos que os representam.
Sou contra a vandalização de estátuas. Antes, defendo uma discussão democrática sobre as mesmas. Mas acho que ninguém merece uma estátua. Acho que devemos reservar a escultura pública para a estética, não para louvores individuais.
É que tudo aquilo que alguém faz no seu tempo vida (um microssegundo na escala do universo) é sempre muito pouco significativo e, acima de tudo, é o resultado de uma acção colectiva: Einstein nada seria sem todos os outros pensadores do passado e seus contemporâneos, sem os seus colegas de primária, sem a sua família, amigos, professores, etc.. Nunca teria chegado à percepção da teoria da relatividade sozinho.
Cristiano Ronaldo, que muitos disseram que não devia ter uma estátua e um aeroporto com seu nome – até porque ainda pode fazer muitas imoralidades até à sua morte – nunca seria o jogador que é sem os treinadores que teve, os seus colegas e adversários, os médicos e fisioterapeutas que o acompanham, ou toda a sociedade que produz comida, ciência (que, criou a internet e a televisão, sem as quais Ronaldo não seria o que é), transporte e todas as infra-estruturas que permitem aos indivíduos existir e prosperar. E logo num desporto colectivo como o futebol, onde ninguém vale nada sozinho. Mais, não tivesse Einstein formulado a teoria da relatividade, outro viria que a formularia. Outros “Ronaldos” estão a caminho.
Se há coisa bem percebida relativa à natureza da humanidade é que somos um animal social, que só em sociedade consegue sobreviver e progredir. Há é um erro de percepção, dando-se um destaque desmesurado aos contributos individuais como sendo decisivos, quando são sempre marginais (sejam positivos ou negativos).
Ou seja, os indivíduos são o reflexo da sociedade. Quem avança ou regride é o conjunto dos indivíduos, a sociedade, não cada um isoladamente. Todos os indivíduos pertencem a um contínuo social, diversos, mas interdependentes.
Nesse sentido, não há qualquer lógica em se criarem estátuas ou cultos (promovendo a ideia de perenidade e maior importância) à volta de indivíduos, ou de livros escritos por eles (ainda que digam que foi uma entidade divina que os ditou) ou de imagens cridas por eles (ainda que digam que são imagens do divino) ou mesmo de ideias propagadas (que estão sempre em transformação).
A evolução do ser humano faz-se em conjunto, e com o universo, sempre em constante mudança. Nada é eterno nem sagrado.
Gabriel Leite Mota, publicado no Jornal Económico a 18 de Junho de 2020
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