Da próxima vez que forem à livraria, já sabem que “sombras” vão comprar? Ou a trilogia milenar? Ou um códex qualquer para ofertar?
Sejam bem-vindos ao admirável mundo dos produtos culturais! O mercado a funcionar: os criadores a criar, os média a divulgar e os consumidores a comprar! Viva a cultura! Vivam os produtos culturais!
Ou talvez não? Paremos um pouco para pensar…
Muito se fala do mercado e das suas virtudes, de como as economias prosperam quando por ele nos guiamos ou de como a justiça e o mérito florescem ao seu redor. Mas muitas vezes esquecemo-nos das suas sombras…
Deixem-me invocar a minha condição de economista: não é verdade que o mercado funcione sempre bem nem que avalie de forma perfeita o mérito das pessoas e das suas criações. E, no caso da criação cultural, o que a história já nos ensinou é que o mercado funciona muito mal: Van Gogh apenas vendeu um quadro em vida; Schubert poupava dinheiro em comida para poder comprar partituras; Carlos Paredes, que não conseguia viver da guitarra, teve que se especializar na meticulosa ordenação de radiografias; Fernando Pessoa era um ajudante de guarda-livros, posto que do seu génio ninguém precisava... E mesmo aqueles que conseguiram sobrevier à custa das suas criações (como Bach, Mozart, Wagner, Goya ou Velasquez), foi graças à vontade (e dinheiro) das elites e nunca do mercado (das massas). E mais, o contrário também foi verdade: a história está cheia de exemplos daqueles que o mercado reconheceu mas que o tempo esqueceu (Dantas é apenas um caso, de que o nome ainda sabemos somente pelo manifesto de Almada…).
De facto o mercado é uma projecção da maioria e os génios não são a maioria e nem a representam… Pelo contrário, os génios criativos são seres humanos especiais que fazem a síntese da contemporaneidade antes de tempo, antes de essa síntese ser feita pela maioria, muitos anos mais tarde… A desgraça desses criadores é não viverem anos suficientes para verem, finalmente, o mercado a funcionar: é que, no longo prazo, o mercado acaba por funcionar premiando com vendas e reconhecimento os grandes criadores (imaginem quantas vezes mais rico seria Bach em comparação com qualquer estrela da música pop actual, tendo em conta os discos que a sua música já vendeu e o número de vezes que a sua obra já foi tocada desde o séc. XVIII…).
O génio está assim, condenado a viver na sombra do mercado. E estou farto de ver os Dantas de hoje pavonearem-se com os seus sucessos mercantis e mediáticos sem terem ninguém que lhes diga a verdade: que não são nada, nunca serão nada e que apenas existem para continuar a provar que nem todos os que escrevem sabem escrever…
Apesar de vivermos em democracia, com liberdade de expressão, sinto a falta, no meio artístico, de alguns insolentes, desrespeitadores do politicamente correcto que sejam capazes de, genialmente, pôr o dedo na ferida e apontar os reis que vão nus (e que horrorosos que são!). Talvez o Alberto Pimenta, o Ricardo Araújo Pereira ou o Rui Zink sejamos os únicos sobreviventes. Mas sente-se a falta de Almada Negreiros, de Natália Correia, de Ary dos Santos, de Mário Viegas, de João César Monteiro ou de Luiz Pacheco… Eram eles que seriam capazes de dizer as verdades sobre os códigos, os códex, as seitas e demais historietas históricas (e histéricas?) de escrevinhadores nacionais ou internacionais. De escritos com criancinhas feiticeiras e triologias milenares ou (as)sombrosas.…
Por isso não consigo deixar de me irritar quando vejo nos média esses instantâneos da criação que, porque ficam ricos e famosos, chegam mesmo a acreditar que existem, quando não passam de meras flatulências do tempo que passa…
Aos génios criadores de pouco lhes vale a glória e a luz que sobre eles pairará depois da morte, quando estão condenados a viver sobra as sombras do presente… Pelo menos que, como aos malucos, lhes seja permitido dizer as verdades!
Gabriel Leite Mota, Publicado no Jornal de Letras a 20 de Fevereiro de 2013